“Nesta nova ordem mundial em que vivemos, na qual o emprego está se tornando algo obsoleto, e o indivíduo tem de depender unicamente de si mesmo para existir e sobreviver, a capacidade de adaptação – ou para usar a palavra da moda, a flexibilização, o exercício constante da flexibilidade -, tende a se tornar uma necessidade imperiosa”
Percebe-se hoje, neste nosso mundo interconectado, uma tendência preponderante a aceitar com maior naturalidade a intersecção de disciplinas e uma real necessidade mútua de se interpenetrarem, a fim de assim poderem continuar evoluindo. De Fritjof Capra à discussão sobre a interdisplinaridade no ensino tradicional, a maioria de nossa espécie já se deu conta de que é preciso agora ampliar os horizontes e abrir mão dos dogmatismos e das verdades científicas absolutas.
Certamente, isso acontece num contexto onde impera a visão da realidade global, da qual fazem parte o telefone celular, as influências econômicas online e sobretudo a internet. No mundo informatizado distingue-se cada vez mais o conhecimento da informação, mostrando que a moeda corrente do futuro será acima de tudo o conhecimento, a competência e a acumulação de experiências, já que a informação tende a ser completamente democratizada e facilmente acessível.
Mas como adquiri-lo, ou melhor, como construí-lo? – Há a forma escolar tradicional, compartimentada, na qual o saber acumulado nos é transmitido como coisas/fatos isolados que acontecerem por si sem nenhuma ligação com os demais setores da sociedade; algo assim como se todos nós tivéssemos vivido numa bolha de sabão, sem quaisquer inter-relações. Acresce-se a isso as influências da família e da sociedade. Influências devidamente esmiuçadas pela Psicologia e pela Sociologia, respectivamente.
Esta formação compartimentada impõe uma espécie de camisa de força no indivíduo, obrigando-o a ser uma única coisa na vida, a desempenhar um único papel. Nesta nova ordem mundial em que vivemos, na qual o emprego está se tornando algo obsoleto, e o indivíduo tem de depender unicamente de si mesmo para existir e sobreviver, a capacidade de adaptação – ou para usar a palavra da moda, a flexibilização, o exercício constante da flexibilidade -, tende a se tornar uma necessidade imperiosa.
Após a queda do muro, a derrocada do comunismo, o chamado fim das utopias e a sanha guerreira norte-americana, dois movimentos antagônicos se evidenciaram no mundo: a busca da identidade, uma necessidade de afirmar o próprio, o característico, o específico – seja na política, na economia ou na vida cultural (Lembremos das inúmeras etnias que de repente surgiram no mundo tentando se agregar como nações independentes). Ao mesmo tempo, há a necessidade de se conectar aos outros, de inter-depender, de formar uma rede. Não é à toa que esta se tornou a palavra chave nesta virada de milênio: a rede ou a teia como afirmaram Fritjof Capra e outros defensores de uma visão holística da vida, onde tudo está associado a tudo. Na Física fala-se, por sua vez, em Efeito Borboleta.
Contudo, ao se observar a maioria das escolas percebe-se o óbvio. O ensino tradicional, – sobretudo no Brasil onde imperam o descaso, as más condições de trabalho, os salários ridículos e uma miséria sempre degradante -, parece estar com os dias contados, seja na estrutura física, seja na concepção. Caem cada vez mais as barreiras entre “Humanas” e “Exatas”. Neste sentido, acredito que a arte, a prática artística e todo o instrumental da arte, podem ser de muita valia neste novo processo de construção do conhecimento.
Sabemos que no fundo, como já disseram os gregos e inúmeros filósofos, o conhecimento maior é conhecer a si mesmo. Sócrates que o diga, pois foi quem difundiu esta verdade há mais de dois mil anos. E mais ainda: ao ato de conhecer os gregos associaram o prazer. Aristóteles, na Poética, disse que o maior dos prazeres é aprender. Constatação marcante para quem dá valor à sensibilidade. Pois bem, a arte – dentre as criações humanas -, talvez possua o instrumental mais rico para concretizar esta combinação: o conhecimento de si mesmo e o prazer, a seriedade e a diversão, o obrigatório e o espontâneo, a imposição das regras e a liberdade absoluta, o individual e o social. Na sua origem na Grécia antiga, o teatro, por exemplo, acarretou um avanço significativo dentro do processo civilizatório.
Os escritores românticos alemães no século XIX, ao seu modo, também perseguiram objetivos similares: fazer da arte (da literatura, no caso) um instrumento de formação do indivíduo, juntando a formação do caráter com o conhecimento do mundo. Goethe, na Alemanha criou o chamado Bildungsroman (romance de formação), no qual o herói “aprende a viver” num mundo sempre adverso. Schiller reivindicou a ästhetische Erziehung (educação estética), que almejava ensinar através da arte as noções básicas da existência, ou seja, a verdade, o bem e o belo. Jean Jacques Rousseau, na França com sua “Nova Heloísa” e seu “Emílio”, compartilhou também ideais semelhantes. Os românticos tentaram assim resgatar as origens culturais gregas e em parte, também latinas. Para estes afinal, a arte era bem mais que simples entretenimento. Era uma forma de educação do espírito e da sociabilidade. Vale lembrar neste sentido a função social da comédia nos teatros romanos, segundo os quais ridendo castigat mores.
São concepções e realizações que resgatam o sentido de totalidade subjacente à arte. Por isso, a aprendizagem da prática artística pressupõe o acesso a todas as esferas da vida humana. Para praticá-la é preciso aprender a pensar a criação como um todo, onde tudo já existe, tudo está dado, podendo-se apenas descobrir novas combinações. Ou seja, criar pressupõe também descobrir-se e acima de tudo ver-se como um ser criador, como alguém dotado de vontade própria e, portanto, capaz de alterar a ordem das coisas, não importa em que dimensão.
Essa consciência pode levar o homem a ver o mundo de fato como uma unidade, como um todo orgânico, onde todos somos interdependentes. A Ecologia, por exemplo, tenta a todo o momento convencer os poderosos do mundo com esta verdade básica: tudo está associado a tudo. Obviamente, isso não significa dizer que todos deveriam ser artistas de profissão, ou qualquer utopia semelhante. Evidencia apenas que a arte desenvolveu ao longo da história os instrumentos mais eficazes para a descoberta e o desenvolvimento das habilidades humanas individuais, a educação estética e a socialização. Além disso, como sua aprendizagem está centrada no potencial do próprio indivíduo, na autoconsciência e no autoconhecimento, sua valorização dará sem dúvida uma relevante contribuição para o advento de um mundo mais humano e dotado de valores éticos profundos.
Erlon José Paschoal
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