?O modelo inglês não é um montante de ações isoladas, mas parte de um processo histórico e social extremamente complexo. Busca responder às exigências que a sociedade e a história lhe impõem?Em artigos anteriores publicados na Cultura e Mercado, estivemos falando sobre as características do sistema de apoio cultural na Inglaterra. Tentamos demonstrar, inicialmente, o macro-sistema com a caracterização da esfera federal através do Departamento de Cultura, Mídia e Esportes (DCMS) e seu órgão autônomo incumbido de apoiar a arte (o Arts Council) com suas secretarias regionais (os Regional Boards). Depois, discutimos a visão inglesa para o patrocínio oficial da arte. Partimos, na ocasião, da visão doutrinária da aristocracia, buscamos entender as mudanças ocorridas com o apogeu da burguesia, em que o patrocínio à arte passou a ser visto também como um gasto público, para nos anos oitenta, sob o comando do partido conservador de Margareth Tatcher, ser enxergado não só como um gasto público mas como um investimento e, nos moldes capitalistas, como algo que devia ser rentável. Chegamos então aos anos noventa, quando o governo trabalhista, com Tony Blair, mudou um pouco a justificativa do apoio à cultura privilegiando o benefício social a ser provido pela arte. Por fim, num último artigo, buscamos estudar através de um caso mais específico como se dava no âmbito local as idéias vinculadas pelo comando central. Podemos perceber que nos Boroughs londrinos as artes são encaradas como produtoras de bem-estar social capaz de regenerar uma região.

Em 1984, em um estudo encomendado pela Funarte aos estudiosos Sérgio Miceli e Maria Alice Gouveia, entitulado ?Política Cultural Comparada? os autores notam que: ?A aristocracia inglesa protegia os grandes retratistas e comprava antigas obras-primas mas passava sua vida em lugares e espaços privados (castelos, residências, clubes etc.), longe das salas de espetáculo. Esse estilo de vida não acontecia nessa escala no restante da Europa. Destarte, as obras culturais cuja produção exigia uma organização mais pública do que privada (as artes cênicas, em especial) acabavam ocupando um espaço reduzido. As doutrinas da economia de mercado foram estendidas às artes, fazendo florescer companhias privadas de teatro e garantindo uma renda aos pintores através de um clientela privada. A força dessa tradição deve ter-se enraizado a tal ponto que até hoje procura-se justificar a concessão de subvenções importantes aos teatros nacionais e à Ópera em virtude dos benefícios que tais gêneros poderiam propiciar à indústria do turismo? . (Esse estudo data de 19 anos atrás, antes do governo trabalhista e das mudança por ele implementadas, das quais já falamos). Embora o aparente esquecimento pelos autores das companhias inglesas de teatro itinerante, tão importantes entre os séculos 17 e 19 que chegaram a influenciar grandes artistas e pensadores europeus como Goethe, nota-se que realmente a política cultural inglesa preza pela arte enquanto algo que se justifica por fins práticos.

Em uma oposição ao caso francês em que a ?política cultural constitui um item decisivo da própria política nacional? carregando em si o orgulho da nação, na Inglaterra, citando ainda os autores de Política Cultural Comparada, ?segundo a tradição protestante liberal, cada um é juiz do que lhe convém tanto em matéria de religião e política como no que se refere a arte e cultura, não havendo portanto qualquer razão substantiva para se pensar que as atividades culturais e o acesso a essas atividades devesse ser impulsionados em ?cima? quer pelos políticos, quer por especialistas, quer por uma elite cultural? . Embora, novamente deva-se relativizar a assertiva, pois o momento histórico da escrita era mais radical naquele sentido, realmente não se nota de forma clara uma intenção do governo ou de um elite cultural em desenvolver um padrão artístico sublime para sua produção cultural. Tanto é assim que na primeira página do site do DCMS o governo inglês, em destaque, aponta com orgulho o sucesso de exportação dos Tele-Tubbies e a incrível venda de CDs de artistas pops britânicos . Está claro que a excelência aí perde lugar para a quantidade de libras esterlinas. Como bem apontam Sérgio Miceli e Maria Lucia Gouveia, e já apontado por nós em outra oportunidade, ?um dos critérios importantes para alocação de verbas são as regras provenientes dos espectadores, pagantes, tornando assim o nível de audiência um critério tão relevante quanto a qualidade dos serviços prestados ou a pretensa relevância artística da obra subsidiada.?

As revoluções francesa e russa, as unificações italiana e alemã fixaram no poder um novo grupo de comando excluindo o antigo, destruindo o seu legado de início e depois o restaurando e anexando ao ideário nacional, deixando sempre claro qual a classe governante. Na Inglaterra, por sua vez, o paradoxo sempre persistiu. No século XIII, ainda no período feudal, os grandes produtores de terra forçaram o rei, conhecido como João Sem-Terra, a assinar um documento jurando respeito às posses daquela classe. No entanto, mantiveram o rei. Na revolução anglicana, iniciada por Henrique VIII no século XVI e efetivada por seus filhos sucessores, Eduardo e Elizabeth, por lei mudou-se a religião oficial do país, mudou-se a língua de pregação (passando a ser o inglês em detrimento do latim) e deu ao rei o poder antes reconhecidamente papal. Ainda assim, boa parte dos bispos católicos mantiveram seus postos jurando ao rei sua lealdade. Mais tarde, durante a Revolução Gloriosa, no século XVIII a burguesia obrigou o rei, representante eterno da aristocracia, a jurar a constituição e respeitar as ordens do parlamento. Tirou-se o poder do rei mas o manteve em sua posição de honra. No século XX, em virtude de sucessivas leis o poder real se resumiu a decoração chegando ao cúmulo de ser proibido, por lei do parlamento, que qualquer membro da família real opine sobre política. Paralelo a isso, no parlamento sucessivamente os burgueses, eleitos por voto direto e para mandatos determinados, foram acumulando poderes para sua câmara representativa (dos Comuns) deixando a câmara da aristocracia (dos Lords) com funções basicamente burocráticas. Ainda assim, a rainha e a câmara dos Lords existem e são respeitados.

Criou-se um código tácito de cavaleiros. Do mesmo modo que a aristocracia não pode participar da vida política da sociedade dos ?comuns?, essa deve fechar os olhos para as ações da primeira respeitando suas manias (obviamente dentro de um certo limite). Por esse motivo, além da existência de uma câmara parlamentar e de uma família real ?de cera?, atividades, como caça a raposas, são permitidas a despeito dos protestos de ecologistas, com toda pompa e circunstância na Inglaterra.

As belas-artes, ou as artes clássicas, determinadas por padrões estéticos estabelecidos durante séculos e que podem ser reconhecidos por exemplo na música erudita, na dança e na pintura clássicas tiveram sua imagem atrelada à aristocracia. Por sua vez as artes populares, a música pop, o cinema fazem parte ativa da sociedade em geral. Com isso, criou-se um abismo entre a sociedade dos ?comuns? e a arte clássica (que atualmente tenta-se cobrir com ações como entrada grátis à população aos museus britânicos) do mesmo modo que da aristocracia e a arte popular. Assim a arte aristocrata deixou de ser vista pela sociedade dos ?comuns? como sua própria, como parte de seu movimento civilizatório, mas como parte de uma outra classe que deveria por si só a sustentar.

A arte na Inglaterra, então, desenvolve-se sem especialmente a elevação do erudito em detrimento do popular; sem o exemplo dos padrões estéticos envoltos de uma tradição que remontam à Grécia Antiga. E para atender essas características as políticas governamentais para a cultura optaram por abdicar de um critério qualitativo ou apoiar a arte, preferindo critérios mais assimiláveis pela sociedade. Ou seja, financia-se o que trouxer divisas ou benefícios sociais.

Pode parecer uma análise negativa do sistema inglês especialmente para aqueles que enxergam na arte uma função própria. No entanto, é por essa característica que a história e sociedade inglesas possuem que tantas artes inovadoras encontraram na ilha um campo fértil. É por uma visão menos poluída, ou talvez mais inconformada, pelo cânone do passado, que se desenvolveram tantos movimentos importantes de música pop, desde o rock dos Beatles e Rolling Stones até o punk dos Sex Pistols. Do mesmo modo, foi nesse mesmo país de tantas contradições que surgiu a Arte Pop que depois tomou os museus de praticamente todo o mundo. Também foi, não apenas, mas de forma marcante, em solo britânico que surgiu a vanguarda literária com James Joyce e Virginia Woolf. Grandes companhias de dança, grandes inovações arquitetônicas, como os prédio do Lloys Bank, da galeria de arte Tate Modern, ou da nova Biblioteca nacional se multiplicam e se misturam na Inglaterra. Ao mesmo tempo a aristocracia (por diversos meios) ainda mantém dezenas de prédios históricos tombados, um alto nível de música erudita (com o suporte do governo inglês), grandes museus de arte clássica (como o Britânico, a National Gallery), um grande teatro de Ópera e outros monumentos de sua cultura.

Além disso o modelo inglês possibilita uma democratização da arte ao entregar às localidades boa parte das verbas destinadas à cultura. Assim, as comunidades, que por terem seu foco de decisão mais próximo da população do que o governo central, são representantes muito mais fidedignos para decidirem como aplicar as verbas públicas para cultura. Assim, sem a imposição estética de um poder central a arte regional pôde florescer com mais constância e com muito mais variedade.

O modelo inglês de apoio à cultura, como se viu, não é um montante de ações isoladas, mas parte de um processo histórico e social extremamente complexo. Ele busca responder às exigências que essa sociedade (ou ainda deve-se dizer, sua economia e política) e a história de seu espaço lhe impõem. Assim não deve ser julgado como negativo ou positivo, mas adaptado ou não à realidade em que se encontra. De qualquer modo, ainda que com várias anomalias, é inegável que esse sistema desenvolveu idéias inovadoras e respostas importantes para o planejamento cultural de uma sociedade. A isso, nós que buscamos pensar em respostas para os problemas do setor cultural do nosso país, devemos atentar.

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Michel Nicolau


editor

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