?Se um roteiro de cultura de uma cidade não difere o quadro de espetáculos do cardápio de restaurantes, então a arte está condenada à sua condição culinária?Por José Fernando Peixoto de Azevedo

O teatro tem muitas especificidades, como qualquer outra atividade terá as suas. No caso, talvez a mais significativa delas seja o fato de que o produto teatral não é separável do ato de produzir. Diante de seu público, o ator é um artista; mas se está subordinado a um empresário, será um trabalhador produtivo. Como artista, sua produção é imaterial, embora possa, num segundo momento, reduzir-se a um bem de consumo. Transformado num trabalhador produtivo, o ator será também um produtor de mais-valia.

Teatro como mercadoria – Grosso modo, um operário, ao colocar à disposição sua força de trabalho, está vendendo-a, em princípio, por um valor que lhe garantiria uma quantidade média de artigos de primeira necessidade à sua vida. Assim, se para tanto será necessário trabalhar 4 horas, e se essas 4 horas equivalem a um preço de R$ 40,00 diários, esse será o valor de sua força de trabalho, seu salário. Ora, aquele que compra a força de trabalho do operário, compra o direito de usar e consumir essa mercadoria. Usá-la significa, no caso, fazer trabalhar. É preciso que essa força de trabalho funcione durante todo um dia de trabalho. Se por um lado o seu valor tem a ver com sua necessidade, por outro, o seu uso terá a ver com sua força ou capacidade de trabalho. Do ponto de vista de quem usa, 4 horas não correspondem às suas “necessidades” – as do lucro -, pois não esgotam a força de trabalho comprada – embora, do ponto de vista daquele que a coloca à disposição, pudessem ser suficientes para a sua sobrevivência. Ao comprar a força de trabalho, o capitalista, agora seu dono, adquiriu o direito de usá-la por todo um dia, que pode corresponder a 8 horas de trabalho.

Desse modo, todo o valor produzido, para além daquelas 4 horas inicialmente necessárias são propriedade do capitalista, dono pro tempore de sua força de trabalho. O capitalista então realizou diariamente R$ 80,00 do que teve de desembolsar R$ 40,00. O excedente é a mais-valia, pelo qual nada teve de pagar. Aquilo que o operário produziu nas 4 horas adicionais saiu de graça para o capitalista. Essa troca desigual faz que o operário se reproduza como operário, garantindo ao capitalista sua reprodução como capitalista.

Logo se vê que estar “dentro” ou “fora” do sistema pode ser uma escolha, mas também e quase sempre, uma ilusão. Trata-se de saber como a atividade teatral se reproduz, e em quais condições. Considerada a figura do empresário e o modelo tradicional da Cia., será preciso definir em que medida o Grupo Teatral se apresenta como alternativa e, principalmente, em que medida sua dinâmica significa a eliminação das figuras do empresário e do assalariado eventuais. Nesse caso, não haveria a subordinação do artista, como produtor de mercadorias, àquele que com tanto obteria o lucro. Mas então ficaria a pergunta: em que circunstâncias o teatro não se apresenta como mais uma mercadoria a ser comprada?

A depender da perspectiva, poderíamos formular a questão nos seguintes termos: o teatro se realiza como atividade consumada no momento mesmo em que é consumido. Pelos extremos: claro que uma encenação de Brecht, por um Grupo decididamente brechtiano, no Brasil, colocará em outra chave essas questões. Isso é bem diferente de uma encenação de um musical americano, com elenco remunerado e subordinado às normas do trabalho empresarial. Mas não bastará constatar tais diferenças se a mera constatação não forja uma política de trabalho.

Viabilização do teatro – Mas quem viabiliza aquela encenação de Brecht? A definição do teatro como sendo atividade cuja efetivação faz coincidir produto e ato de produzir, incide sobre a relação, a mais complexa, entre palco e platéia. Uma pergunta atual e difícil seria: o que está acontecendo com essa relação hoje? O teatro sabe quem é seu público? Se o sabe, como o sabe? Se na prática, essa relação com o público é mediada pelo o ingresso e seu preço – por assim dizer definindo o sentido social do teatro -, trata-se de saber se este é o portador do lucro ou o portador de uma política alternativa. A exigência então é a de definir os “parceiros”.

O teatro, tudo indica, está condenado à convivência com formas de cooptação que a bem da verdade se traduzem em formas de sobrevivência. Mas o teatro tem sua história e sua realidade próprias. O tempo de formação de um ator ou de um dramaturgo exigem, antes de mais nada, que o teatro seja também esse lugar de formação. Formação nem sempre se confunde com “profissionalização”, sobretudo quanto esta se reduz à inserção em mercado (efetiva?). O que não se trata de uma visão utópica. Visto desse ângulo, o teatro reavalia sua relação com o público, pois passa a ver o processo de maneira integrada. Isso exige que sua política seja clara, o que não se pode reduzir a um discurso, mas antes significa reinventar o próprio teatro: trata-se de definir os seus meios e como utilizá-los.

Se o grupo é visto como um agrupamento de interesses que pressupõe uma certa unidade, e se para tanto se exige o abandono do provisório e do descartável como propulsores do trabalho, então a questão sobre os meios de produção passa a ser fundamental. Ora, como viabilizar um espetáculo? Desde a conquista de um espaço até sua viabilização cênica e pública, desenham-se os descaminhos da experiência cotidiana do teatro no Brasil. É evidente, a escolha não será apenas econômica, mas determinará a economia da cena. A pergunta “como” implica a escolha de seus meios, desde o texto a ser encenado até a política de signos a ser implementada.

Teatro como produto de consumo – No Brasil, a arte, e o teatro em particular, são objetos de Lei – de incentivo, é claro. Incentiva-se o empresário a aderir à arte, que é vista como depositária social do lucro. Neste caso, a arte justifica o lucro, como garantia de um retorno – imaginário? – à sociedade – qual sociedade? -, sem prejuízo das condições em que o trato se dê. Ora, pergunta-se pelo papel do Estado como agente mediador e mesmo propulsor de uma produção “reconhecidamente social”. O que não se pergunta é qual Estado se apresenta como tal mediador. Nesse sentido, toda arte com o selo da “Lei” poderá ser utilizada como arte de propaganda. Assim, diversidade passa a ser produto de consumo.

Não é possível separar o problema da produção daquele que diz respeito às condições de produção. Não se quer com isso reduzir tudo aos problemas econômicos, mas reconhecer que cada escolha, para ser conseqüente, implica um domínio dos meios. “Competências”, formas de participação e decisão internas aos grupos, caminhos poéticos, não se evidenciam por mero impulso subjetivo, mas estão imediatamente condicionados. Os meios que um Brecht tinha para encenar uma peça na Berlim, seja em 1930 ou 1953 são bem diversos dos que temos, hoje, no Brasil, para encenar a mesma peça. Reconhecer aí a atualidade do teatro entre nós, ver nele as marcas de nossa modernidade subordinada, será já uma forma de organizar uma outra realidade – no palco como na vida. A solidariedade entre palco e público ocorre sempre que o palco diz a que veio, e se radicaliza quando um jogo de reciprocidades se põe em movimento. A adesão de um em relação ao outro é sempre cifra do estágio atual da vida social de um país.

Apesar de tudo, nunca se construíram tantos teatros gigantes e equipados. A retomada do gênero musical, por exemplo – apesar de uma tradição própria e significativa, da variedade ao teatro político – traz as marcas do tempo. Ora, a arte é o produto da hora, e “civilidade” pode significar também “poder de consumo”, a depender de como vemos “o progresso da humanidade para o melhor”. Se um roteiro de cultura de uma cidade não difere o quadro de espetáculos do cardápio de restaurantes, então a arte está condenada à sua condição culinária. O que nos faz saber se se trata de um destino ou condição a ser superada? Em que medida não estamos já presos à roda-viva que define espectador como consumidor e o teatro como alternativa de cardápio? E em que medida nossa “consciência” pode informar o palco deste impasse?

Quando falamos de uma alternativa para o teatro, para a arte, e trazemos à liça artistas, críticos, poder público, sociedade civil organizada; quando juntamos à discussão a necessidade de uma política de produção como condição para realização de uma nova política efetiva da arte, estamos com isso sugerindo que a arte só é livre quando o jogo das relações sociais pressupõe a liberdade não apenas como abstração cifrada numa cidadania “solvente”. Enfim, quando discutimos relações novas no palco e deste com a platéia, estamos discutindo também imagens “demandadas” ao menos por setores (atuantes? novos? marginalizados?) da sociedade.

O teatro como arte é desnecessário, supérfluo, do que tira sua força e sentido. Numa sociedade em que a noção de supérfluo é aplicada à vida, essa desnecessidade tem sentido político, e aponta para uma outra sociabilidade.

(27/07/2001)

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