“Uma sociedade é sustentável quando consegue articular a cidadania ativa com boas leis e instituições sólidas. São os cidadãos mobilizados que fundam e refundam continuamente a sociedade e a fazem funcionar dentro de padrões éticos”. (Leonardo Boff) .
Celebrar ou repudiar as relações incestuosas entre a Lei Rouanet e as grandes corporações foi uma pauta que a nossa doutrina oficial cristalizou em nossos apaixonados debates sobre cultura brasileira nesses últimos maus tempos.
As necessárias reflexões sobre a discriminação e o preconceito hipocritamente se reservaram a uma pauta branca, caótica, escravizada pela freqüente inquietação de ganhos financeiros, dos financiamentos e etc.
“No caso do Brasil a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema é a existência, no país de um problema negro. Essa equivocação é, também, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Otávio Lanni, para quem, entre nós feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo”. (Milton Santos).
É certo que a inversão dessa ética foi uma luta sem trégua do Ministro Gil. Essa é uma das suas grandes virtudes dele à frente da pasta, que contagiou também a administração de Juca Ferreira. O enfrentamento da questão negra e indígena nas manifestações fundamentais da vida nacional.
Porém, as classes dominantes e sua conhecida intolerância e inconformidade com a necessidade de celebrar um novo conceito de humanismo, de nação, impediu que essa gestação viesse à luz para uma busca igualitária contra a muralha chamada “ética conservadora”.
Os ostensivos ressentimentos expostos durante o governo Lula, contra a mudança de paradigmas nas políticas sociais, receberam os mais venais ataques. Sem dizer, é claro, que as cotas nas universidades públicas e o programa Bolsa Família mereceram dessa visão conservadora os maiores insultos.
No Brasil são comuns esses ataques planejados das classes dominantes que não querem a inversão da pirâmide, o comando, o destino do país tem que lhes servir sempre num primeiro, num segundo e num terceiro planos.
Impressiona a produção de falsos argumentos que ganham destaque em uma das mídias mais facciosas do mudo, que é a mídia brasileira. Ela, com predominante voz nos lares brasileiros e com sua maneira reacionária, afasta o aprofundamento desse debate em suas programações. Os partidos, as grandes instituições culturais vivem insistentemente de refrões retóricos. O centro da questão é frequentemente deslocado para um olhar ambíguo, onde a ordem racial vigente no Brasil, há 500 anos, fica intocável.
É impressionante como as convicções escravocratas sustentam o estereótipo sem querer atravessar o limite do simbólico e mergulhar numa convivência cotidiana, equilibrada das vozes todas do Brasil.
No Brasil, as instituições oficiais de cultura são retratos do fracassado projeto que só se mantém de pé como instituição pelo lobbie financeiro/político da escravidão estética, imposta pelo conceito branco, europeizado no Brasil. Às mesas de comando dessas instituições retratam tudo, menos o Brasil.
Essa ditadura de autorizados pelo Estado concentra uma idéia de pensamento superior que, cada vez mais, hipertrofia a corporeidade preconceituosa.
A individualidade, a cidadania e a sociabilidade são temas que deveriam ser emblemáticos, mas a nossa frieza intelectual neste patrimônio público/privado identifica só a linha demarcatória traçada por essa visão tirana.
Poderíamos perfeitamente trazer como imagem de toda essa política segregacionista uma frase de Almir Guineto, cantada no rico ambiente do samba, “Palmatória racha a unha, chicote deixa vergão”.
Os pontos de cultura são pontos que tentam suturar a cotidiana prática segregação que insiste em viver divorciada da nossa entidade racial.
O internacionalizado, o respeitoso civilismo normativo em que somos jogados pela força do comando estratégico da cultura institucional no Brasil ainda, por seu complexo de inferioridade, aceita a subserviência e quer transformá-la em pauta oficial.
Esse discurso colonialista jamais teve eco na sociedade do ponto de vista de suas livres manifestações. No entanto, no Brasil, a condição humana, sobretudo nas classes deserdadas, é lutar para desembaraçar-se dessa tara branca que brota da miséria, do flagelo institucional que é o nosso pensamento de excelência e entusiasmo mórbido.
A oposição ao negro, ao índio é, nesse ambiente, uma concepção didática. Não há nisso uma inocência funesta, uma displicência infantil. A mercantilização da cultura sustenta a sua cúpula com este ideário.
Enquanto isso se mantiver, enquanto todos nós covardemente não colocarmos a nossa voz rouca de tanto gritar contra o exercício cotidiano de segregação, ficaremos aqui nesta interminável selva branca sonhada e vivida a ferro e fogo pelos idealizadores de um Brasil branco, europeu e absolutista.
“Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Muitas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações, de vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro – imagem fácil – E não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva. Sem dúvida, o homem é seu corpo, a sua consciência, a sua sociedade, o que inclui a sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consciência não suprime a realidade social e seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania. Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação de ambigüidade a que já nos referimos cuja primeira conseqüência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional”. (Milton Santos)
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De fato, é preciso discutir a ditadura do padrão branco ético-estético no apartheid à brasileira. Mas é preciso também horizontalizar o debate, discutindo essa pauta sob a luz de nossas peculiaridades; as de um povo largamente miscigenado formado por 'minorias' diversas, com suas éticas e estéticas respectivas e oprimido por uma classe branca dominante. Em nosso 'apartheid' a divisão não acontece somente entre brancos e negros (ou entre quaisquer outras duas 'raças').
As representações midiáticas das divisões étnicas, aqui como nas sociedades 'desenvolvidas', são escravas dos interesses financeiros de uma minoria branca, como bem disse o autor. O sistema vigente produz uma massa sempre crescente de excluídos em todas as etinias em função dos desejos incutidos pela política empresarial hegemônica; isso não é diferente na mídia brasileira. O diferencial está na diversidade de nossas minorias que, mesmo sendo variadas ainda formam uma nação coesa. Nos países desenvolvidos a classe branca dominante, desde sempre, evitou o quanto pode a miscigenação. Fazendo do racismo, embasado em falsos 'estudos biológicos' e até mesmo no interesse expansionista da religião Católica em relação à conversão dos povos 'primitivos', a mola mestra da mais valia colonialista. Fato que colabora muito com o aumento das cismas étinicas.
Na massa Brasileira de excluídos pela ditadura do padrão branco ético-estético constam, igualmente excluídos por outros fatores socio-culturais, os mamelucos, os negríndios, os crioulos, etc. Os 'ninguéns' que, no dizer de Darcy Ribeiro, não sendo reconhecidos por nenhuma das suas etnias geradoras 'puras', abriram caminho para novos processos étnicos. O povo brasileiro nasceu da resistência nos sertões - nas capoeiras, nos canhembos, nos quilombos - onde 'o outro', por também ser oprimido, se torna um igual, um companheiro de resistência. Somos fruto, também, de um europeu ibérico já marcado pela mistura desde as invasões nórdicas e, principalmente, pelo domínio árabe-muçulmano que antecede o domínio ocidental greco-romano do império Católico. Este europeu, já inclinado à experimentação étnica e sem acesso à mulheres brancas (que raramente vinham à terra tão hostil), em contato com o indígena, instituiu o cunhadismo e, mais tarde, em contato com as várias nações africanas no Brasil, produz nossa massa crioula. Quase sempre com interesses de exploração, e sem assumir o filho(a) com um igual, é bem verdade. Mas ainda sim um postura colonialista diferente da imposta na maioria dos outros paises explorados como colonias.
De tal forma, nossas questões exclusão 'racial' e social são peculiares e complexas. Avançam além da dupla conceitual ético-estética. Igualmente, formam também nossa identidade cultural característica. Sem dúvida, é preciso lutar contra uma 'ditadura ideológica branca', assim como contra padrões hegemônicos de exploração que perpetuam a condição de pobreza e miséria de nossas 'minorias' (incluindo nestas os brancos pobres). No Brasil, racismo e classismo precisam ser combatidos conjuntamente e considerando, além de nossa história (passada e presente) de abertura à miscigenação, o direito de auto-determinação daqueles que se entendem estritamente afro-descendentes e/ou indígenas, e a marcante estratificação social.
Caso contrário, ao 'importarmos' padrões não-Brasileiros de combate às questões de igualdade étnica, geralmente delineados para outras realidades sociais e desconsiderando assim nossas peculiaridades e questões étinicas e de classe, mesmo que tenhamos sucesso e consigamos criar oportunidades equânimes, o resultado de tal empreitada, possivelmente, nos levaria a um multiculturalismo já comum ao sistema vigente e já fadado ao fracasso por não propiciar as interações necessárias à dissolução das hegemonias previamente estabelecidas e reguladoras de tal perspectiva.
Os 'intelectuais' e tecnocratas brasileiros (brancos, negros ou mestiços), muitas vezes com um complexo de 'subdesenvolvimento' já introjetado, insistem em 'importar' soluções delineadas pelas sociedades ditas 'desenvolvidas'. De fato, tais soluções, dado o estado emergencial em que se encontram nossas minorias, se mostram efetivas, mas apenas até certo ponto. Exemplo disso é o efeito das das ações afirmativas na mídia brasileira que, de fato, propiciou mais visibilidade ao artista negro. Mas que, devido ao lobby das classes brancas empresariais dominantes, não foi suficiente para trazer esse artista aos papeis centrais, o que indicaria uma ideologia aberta a novos padrões sociais. Isso sem falar da ausência de representação de padrões estéticos indígenas e dos que se veêm natural e desinibidamente como brasileiros mestiços.
Ao meu ver um dos enganos que muitas vezes cometemos ao combatermos 'a ditadura branca ético-estética', está na 'importação' de medidas, que mesmo ajustadas, não endereçam propriamente a diversidade de nossas 'minorias' sociais. Ao contrário, precisamos nos ver como um povo singular e, como tal, encorajar a discussão de nossas peculiaridades e o engajamento de nossas 'minorias' em soluções próprias, verdadeiramente democráticas, como indica Leonardo Boff.
Como aponta o Carlos Henrique, este governo tem avançado muito no sentido das questões de igualdade racial e social, ainda que sob a égide do criticismo midiático. Mas ainda precisamos, a todo custo, vencer a imagem introjetada de um povo 'subdesenvolvido' que precisa 'importar' medidas para problemas internos. Precisamos buscar soluções próprias que, ao invés de culminar na perspectiva hegemônica multiculturalista do sistema vigente, possa gerar um paradigma mais brasileiro, mais intercultural. Um paradigma, que propicie discutir nossas intricadas relações de classe e etnia sem que o resultado seja o destronamento de uma hegemonia branca brasileira em favor de uma outra já globalizada.
Olá Eurico
Agradeço-lhe, sinceramente, o seu argumento tão bem exposto. Acho estas saudáveis observações mote fundamental para que avancemos de forma mais segura para o encontro do equilíbrio, tão fundamental para a saúde da sociedade. Por isso as minhas observações vão do ponto de vista, num primeiro plano, da consolidação da democracia que passa obrigatoriamente pelo fortalecimento das instituições e do Estado. Portanto, para tal, o Brasil precisa inaugurar uma outra dinâmica nos assentos institucionais.
Para a saúde do Brasil, melhor dizendo, para a correção de um Estado doente, quase crônico, digo quase porque ele não é estático, e a sociedade pode avançar como as grandes democracias buscando um equilíbrio de vozes, de olhares, de perspectivas através do diálogo com as instituições com um espectro bem mais amplo. O que é indiscutivelmente saudável para qualquer receita do exercício democrático.
O que quero dizer é que o Estado está atrasado há pelo menos duzentos anos em relação à sociedade. As nossas instituições não refletem todo este caldeirão. Carregada de verdade civilizatória dentro de uma visão normativa, estatutária que contempla o ideário do pensamento conservador branco diante das nossas realidades, a estrutura institucional é uma ilha particular dentro das dinâmicas mestiças da sociedade.
Não podemos crer que insistir no desequilíbrio de vozes seja o caminho para o equilíbrio de forças democráticas, mais que isso, que o medo seja uma receita de coragem, seguindo a lógica de que a coragem é um estado de defesa que naturalmente busca no pré julgamento um sentido inverso à própria dinâmica do equilíbrio.
Se reproduzirmos alguns erros nas instituições só o exercício, a dinâmica e o diálogo com a própria realidade poderão nos trazer a serenidade.
O Brasil é um país novo, 509 anos, e insistimos em não observar dois aspectos que mancham a nossa história de convivência racial diante da humanidade, a mais longa e cruel história da escravidão dos negros e o quase absoluto extermínio dos índios por colonizadores que se misturaram sim, mas tantos outros que impuseram a inquisição prévia de cada um daqueles seres humanos.
A acomodação é tanta que em minha região, Vale do Paraíba, é comum festejar em festivais "culturais" patrocinados por grandes empresas estatais e privadas, o período dito pelos classistas de plantão, da belle epoque como o auge do romantismo. E o que seria o romantismo? A fusão da monarquia com a nova burguesia brasileira trocando pares nas danças dos solários enquanto seres humanos, homens, mulheres, crianças mantinham-se debaixo do assoalho nas senzalas num suplício aonde os horrores mais cruéis eram a dinâmica do comando daqueles românticos que estavam a dançar as valsas vienenses.
Os índios foram praticamente extintos por esse mesmo comando. Sim, são três povos que fundem-se em sentimentos, sobretudo na nossa principal representação artística, a música. E por isso mesmo a música, que aqui fora se canta e se toca, é perseguida nos mais altos escalões das nossas escolas musicais, "oficiais", estas flagram em pleno século XXI um conceito segregacionista na sua mais alta cúpula institucional no campo das artes.
Quatrocentos anos de escravidão para quinhentos anos de história, é uma desproporção tão gritante que não podemos afirmar em qualquer hipótese no Brasil uma convivência pacífica. Podemos sim falar em oprimidos e opressores. O silêncio dos que não têm a pele negra, como é o meu caso, aplaudem de forma indireta as cenas cotidianas tão explícitas nesse desequilíbrio. Para qualquer lugar que olharmos, esses quatrocentos anos de escravidão para um país de quinhentos, inevitavelmente nos será apresentada a fatura do desequilíbrio, da segregação racial.
Pretendo continuar escrevendo sobre isso e insistir em trazer nas minhas contribuições a memória viva e as cicatrizes da escravidão, do extermínio e tentar fazer delas uma busca incessante por uma solução cada vez mais avançada sobre toda essa questão. Sim, por tudo isso e mais uma série de aspectos que pretendo narrar, me coloco como militante em defesa das cotas, para que o nosso corpo científico reflita toda a sociedade brasileira.
Um grande abraço e conto com você sempre neste necessário debate.