Um rápido passeio por aí e podemos constatar que a arte brasileira flui em todas suas formas, original, pulsante, belíssima. Flui espontaneamente, independente de qualquer política de governo. E flui ainda mais quando essa onda que vem encontra um fator propulsor pelo caminho. Esse fator é algo imponderável. Os produtores de cinema, de música, de teatro, artes visuais, dança, literatura e outros nunca sabem de onde ele vem. Seja do falsete da mídia, da realidade do contexto urbano, mesmo de uma ação do governo, ou sei lá.
Depois que parou de fazer poesia, Rimbaud saía por aí dizendo que estava procurando a “verdadeira vida”, aquela que é feita não das coisas utilitárias, mas da plenitude de si e cujo sucesso é medido pela densidade poética dessa existência.
Sei que pouca gente, muita pouca mesmo, sabe do que estamos falando. Quando o assunto é qualidade de vida, somos uns neófitos. Afinal, o que é mais importante, a comida no prato, prato feito, ou a cabeça feita? É mais importante ter trabalho e moradia ou ouvir uma boa música? A resposta é evidente e orquestrada. É preciso, primeiro, sobreviver. Mas será que viemos ao mundo apenas para sobreviver?
Pobre de uma nação, pobre de um cidadão nacional que apenas sobrevive. Queremos é viver, diz o Rimbaud que há em todos nós. E são os artistas os responsáveis por essa realização hoje tida como extra e que deveria ser uma pretensão ordinária. São eles, os artistas, que podem fornecer esse algo tão sutil e fundamental em nossas vidas e que faz com que ela não seja uma mera questão de sobrevivência. Isso não cabe a nenhum médico, político, construtor civil, empresário ou professor. É tarefa intransferível dos artistas.
E que nos perdoem os excluídos culturais, mas a vida é feita da música, da escultura, da leitura de um livro, de sessões de cinema, de um quadro na parede, de teatro, sobretudo deste, atuantes que somos de nossas várias máscaras, sim senhor.
Já ouvi alguém dizer que se os artistas entrassem em greve, as pessoas só iriam perceber daí a cinco anos. Essa frase foi cunhada para ser piada, mas pode até ser verdadeira, o que não diminui em nada a importância e a seiva vital da arte. Ao final destes hipotéticos 5 anos, o mundo iria perceber que estacionou no seu desenvolvimento humano, pois aumentar a produção industrial, fazer crescer a bolsa, gerar emprego e manter longe a inflação, todas essas metas diárias de que tratam com tanto destaque os jornais, mesmo quando satisfeitas, elas não redimensionam o homem na sua trajetória evolutiva, não fosse a cultura que paralelamente ele vai produzindo.
A cultura não é um bicho de sete ou mais cabeças. Tem gente que pensa fugir dela sem perceber que isso é impossível. Sem saber, ao fazerem isso essas pessoas já estão assim expressando, embora pobremente, sua maneira cultural de ser. A cultura não é tampouco nenhuma coitada, à mercê do socorros dos governos ou carecendo de sua atenção. Ela está presente na nossa natureza e em todas as relações e dimensões humanas. Não se discute saúde sem cultura. Não se discute moradia e comida sem cultura.
Mais que racional, o homem é, na verdade, um animal cultural. Porque mais que racionalizar, a cultura faz refletir, faz sentir e expressar, intercomunicar. Não é preciso ir muito longe. Aposto que aí na sua família existe um tio que toca violão ou uma sobrinha que canta num coral. Senão, um avô que tem lá seus escritos guardados, alguém que faz teatro, um primo que toca numa banda, um pentelho metido a fotógrafo ou mesmo um irmão que é pintor.
Às vezes não percebemos o espaço que a cultura tem em nosso cotidiano justamente por ele ser grande demais, maior que qualquer outro.
Dai-nos, senhor, cotidianamente, tanto mais de um, quanto de outro, a comida no prato e a cultura na cabeça. Esse deve ser o nosso regime. Como dizia aquele prêmio nobel, cara bem alimentado, “cabe-nos fazer de tudo para sermos bons ancestrais”. Sem arte, meu caro, não dá. Vai aí mais uma porção de batata frita?
PX Silveira é cineasta documentarista, dirige a Fundação Nacional de Arte em São Paulo, órgão do Ministério da Cultura. E-mail: rasilveira@hotmail.com
Px Silveira