Quando o Estado assume uma postura, elege uma doutrina, aponta estéticas, ele, além de ficar inchado, pesado, constrói uma legião de cultura marginal. Quando o mesmo Estado propõe que o domínio cultural passe necessariamente por uma lógica de caráter social, pior, constrói mitos de uma sociedade rica e culta, ele dá uma espécie de senha para que todo pensamento em torno do ambiente cultural obedeça o desenho da pirâmide que revela toda a nossa forma de organização social.

A arte não tem traço de caráter científico capaz de produzir idéia clara de superioridade ou inferioridade de qualquer manifestação. Este é, de todos, o pior dos erros que o Estado ou o governo pode cometer. Toda essa orientação é remetida a este mesmo plano nas universidades, nos departamentos de cultura, nos departamentos de marketing, orientados pela mesma régua invisível, lógico. E aí, vamos assistindo os remendos de um soneto que nos acompanha há alguns séculos. Me impressiona como tudo isso resiste, até os dogmas religiosos, muitos deles já cairam, mas esses dogmas culturais estão impregnados como uma crosta cerebral que não nos abandona. O pior é que essa crença tão irracional, tão destrutiva e sem justificativa não obedece um mínimo sequer de lógica para a aceitação tão pacífica de tudo. Isso causa um profundo desânimo. Uma sociedade chantageada por sistemas, corporações, grupos sociais, entidades de classe, compra, sem muito esforço, um pensamento pronto e, consequentemente, não consegue explicar todas as distorções, que não são poucas. Então, ao invés de discutirmos frontalmente essas questões, vamos criando as nossas emendas para compensar o erro sagrado que obedece, nada mais do que a uma liturgia sócio-econômica rio acima.

A Lei Rouanet e, agora também os pontos de cultura, são mecanismos que, de uma forma ou de outra, estão presos a essa teia, discute-se de tudo, mas não a essência de todo esse erro. Não podemos ter um resultado satisfatório quando o pensamento de base está focado num enorme erro. Ficaremos aqui, de governo em governo, de lei em lei, de programa em programa, tentando consertar o que já vem torto da fonte central que é o próprio Estado brasileiro. Se não discutirmos tudo isso antes, não teremos leis ou programas que se enquadrem na realidade brasileira que caminha a léguas de todo um conceito oficial que magnetiza e destrói toda a tentativa de se criar políticas que atendam de forma democrática às expressões escolhidas naturalmente pelo povo brasileiro.


Bandolinista, compositor e pesquisador.

2Comentários

  • Sérgio Sobreira, 2 de setembro de 2008 @ 13:16 Reply

    Carlos Henrique,
    Em nome de um democratismo cultural assistimo a uma crescente instrumentalização político-ideológica dos campos da criação e da produção cultural. É lamentável que o debate não alcance a dimensão que seu comentário reinvidica. Assistimos passivos a um deslavado dirigismo cultural que, sob a égide da farsa do “social”, estabelece sentido e relação de valor sobre o que pode, o que deve e o que merece ser feito.
    Se de um lado temos o apetite financeiro do mercado que orienta as expressões culturais de potencial mercadológico em função de parâmetros oportunistas e mercantis, do lado das políticas públicas somos constrangidos a construir relações e vínculos improváveis e inexequíveis com a agenda social da fome, da miséria, da desigualdade, da exclusão como se perante os (des)governos a arte só tivesse mérito se fosse capaz de ferar contrapartidas sociais… Não seriam os temas, as estéticas, as poéticas e as demais dimensões artísticas contidas em uma expressão cultural portadoras, em si mesmas, de mérito e relevância para a humanidade, algo bem maior que essa tutela da atenção à pobreza? Só cabe ao artista cuidar das causas sociais? É essa a função contemporânea da arte?

  • Carlos Henrique Machado, 2 de setembro de 2008 @ 20:08 Reply

    É verdade Sérgio
    É justamente essa, a grande sacada dos nossos civilistas, criar dificuldade para vender facilidade e, infelizmente, o ninho desta cobra está escondido no discurso dos nossos salvadores messiânicos da cultura, antigo, caquético, tronal, mas que funciona com o arbítrio que destrói a auto-estima e depois oferece a salvação na bacia das almas. Logicamente o bem intencionado messias cobra pelo serviço de salvar os pagãos, um quinhão pesado para nos tirar do purgatorio social através de um obediente comportamento cultural.
    A grande hipocrisia está no espetáculo ser direcionado para um público da zona sul. Mas, de olho nas verbas, o artista descursa afirma que é a grande saida para os males das classes sociais menos favorecidas.
    Essa arrogância e malandragem é antiga no Brasil, jogam toda a culpa no pobre, por uma suposta ignorância cultural, e prometem que lá da zona sul vão salvar o pobre da favela. Essa equação nunca fechou, mas já encheu o bolso de muita gente.

    Como já vi o bom mocinho convencer a sei lá quem, de que saindo de São Conrado, ele foi dar aula de cultura afro em quilombos, não duvido de mais nada. O que sei é que essa fôrma que elege estéticas em nome de um pensamento único, faz do maestro fanfarrão um deus, e é normal que isso aconteça para uma platéia ávida por uma griff, porque lá no buraco quente o cara se faz, fazendo, se não rolou, cai fora, pois a fila tem que andar. Mas no mundo gordo da subjetividade, dos intermináveis “ora veja”, um chute na bandeira de córner, dependendo de um bem manuseado fotoshop, o nosso ilustre vai para a capa dessas revistas de ilhas que o jet set cultural se aprochega de mansinho, pois tem que dar uma casa para a sua mãe. O mesmo sujeito que aparece no quadro grosseiro que, aliás, está sendo imitado pelos marketeiros políticos como aquelas festinhas de aniversário que já vêm com bufet pronto, que tem um vídeo que mostra a primeira professora, a vovó, a titia, é o mesmo que vai ao congresso no Cancão dar murros na mesa em nome da salvação da pátria. O que temos de verdade no Brasil, é a política do grito cultural, quem berra mais forte ou quem tem juizo de obedecer aos mandatários. Não posso acreditar num discurso que eleja seja lá qual for o modelo, época ou pensamento. Essa cidadania de cabresto é uma das mais espetaculares formas de blefe libertário. Todos neste país, sobem no tijolo e se elegem como um libertário. Temos libertários de todas as formas entre o chique e o comercial. Com o mesmo traço fisiológico, fazem um discurso, se auto-proclamam de acordo com a freguesia, com menos talento que o vendedor daqueles remédios miraculosos que o camelô sua pra vender no cochilo do rapa no Largo da Carioca, sendo observado por jovens pintados de prata ou ouro na condição de estátua em cima de latas à espera de moedinhas, imobilizados pelas armadilhas que não lhes dão outra opção para a sobrevivência, pois o mercado cultural está mapeado pelos caciques.
    Lógico que este quadro tem como paisagem ao fundo o BNDES, a Caixa Econômica e a Petrobrás, uma espécie de símbolo do triângulo das bemudas da cultura brasileira.

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