Há muito conhecemos na Pindorama a história de que existem leis que “pegam” e leis que “não pegam”. Proponho um acréscimo a essas categorias: a das leis inúteis.

Leis inúteis porque realmente não servem para nada. E que, infelizmente, refletem a realidade de um Congresso que não tem o que fazer nos intervalos entre as aprovações de medidas provisórias e projetos do Executivo – além das pirotécnicas CPIs, é claro.

Observar esse processo exige o apelo ao velho método etnológico de buscar as conexões e ligar os pontos para entender a estrutura subjacente. De quebra mostra também como o eventual descaso do distinto público ajuda na aprovação dessas leis inúteis. No caso que veremos, o distinto público quase totalmente omisso foram várias entidades e associações do mercado editorial.
De boas intenções…

Recentemente foi divulgada a notícia de que o projeto de lei apresentado pelo Deputado Eliene Lima propondo que fosse obrigatório o uso de papel reciclado pelos editores em pelo menos 30% de suas publicações, tinha sido examinado pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, e que tinha sido aprovado substitutivo apresentado pela relatora, deputada Rebecca Garcia. Nesse substitutivo a deputada sugere tão somente que sejam “abertas linhas de crédito especiais para as editoras que cumpram percentuais progressivos de utilização de papel reciclado em suas publicações”.

A história da tramitação desse projeto de lei – que está longe de terminar – é ilustrativa de vários aspectos da formulação de políticas públicas e do processo legislativo, assim como da intervenção – ou não – dos segmentos diretamente interessados no assunto discutido. No caso, o deputado que apresenta; o relator que encaminha; a relação com a legislação vigente, os órgãos públicos do setor e com as instituições representativas dos interessados: CBL, SNEL, ABRELIVROS.

O Deputado Eliene Lima (PP-MT) apresentou em outubro de 2007 o Projeto de Lei 2308/2007, com dois artigos. No primeiro estabelecia a obrigação das editoras usarem papel reciclado em pelo menos trinta por cento de suas publicações. No segundo tentava objetivar o que é papel reciclado: “é aquele proveniente do reaproveitamento de aparas produzidas pelos fabricantes, antes do consumo, ou a partir da coleta pós-consumo”.

O projeto acrescenta um artigo e um parágrafo à Lei 10.753 (Lei do Livro). (1)

Quem conhece o setor editorial já vê de cara o problema: trinta por cento de quê? Dos títulos produzidos ou dos exemplares rodados? Só isso dá pano para muitas mangas.

Infelizmente, também, a sapiência do deputado é curta. A definição de reciclado – genérica – está correta. Acontece que no mundo da produção industrial a coisa não é tão simples. Será reciclado o papel que usa apenas uma porcentagem de celulose obtida de aparas na sua produção, ou o que é totalmente produzido a partir de aparas pós-consumo? Que porcentagem? Nos Estados Unidos, por exemplo, a norma técnica considera como reciclado o papel que tiver pelo menos 20% da celulose obtida através da reciclagem pós-consumo. No Brasil a ABTCP – Associação Brasileira Técnica de Celulose e Papel – não elaborou a Norma Técnica Brasileira sobre o assunto. Continua em estudos.

O sítio da Cia. Suzano define seu produto “reciclato™” como: “Papel offset 100% reciclado, é constituído por 75% de aparas pré-consumo e 25% de aparas pós-consumo, retiradas diretamente dos resíduos acumulados nas grandes cidades”.

A definição é uma amostra dos problemas: as fábricas de papel sempre reaproveitaram as aparas pré-consumo. Essas aparas são o resultado do corte das enormes bobinas que saem das máquinas e se transformam em resmas de papel plano em diferentes tamanhos, adaptados para diferentes máquinas e necessidades. Um procedimento que gera aparas imediatamente reaproveitadas, já que nenhum fabricante de papel joga dinheiro fora.

O uso de 25% de aparas pós-consumo faria o “reciclato™” ser enquadrado dentro das normas americanas. Mas, para a definição do deputado, se o fabricante desenvolvesse um papel usando 100% das aparas pré-consumo, esse também seria um produto “reciclado”. Ou seja, seria tão somente uma marca que utiliza uma prática corrente do setor de celulose e papel para desenvolver uma estratégia de marketing.

Na justificativa do projeto, o deputado superestima sistematicamente a economia de matérias-primas e insumos usados na produção de papel. Diz ele que a tonelada de papel reciclado “poupa, em média, sessenta árvores (eucaliptos adultos)”. O portal Ambiente Brasil (www.ambientebrasil.com.br), com informações especializadas e atualizadas, afirma que uma tonelada de aparas “pode substituir de 2 a 4 m2 de madeira, conforme o tipo de papel a ser fabricado… uma nova vida útil para de 15 a 30 árvores”.

Mas, para além dos dados sobre os insumos, o deputado afirma “apenas 49,5% do papel que circulou no país em 2005 – correspondente a cerca de 2 milhões de toneladas – retornou à produção por meio da reciclagem”.

Segundo a BRACELPA – Associação Brasileira de Celulose e Papel, a produção total de papel em 2005 foi de 8.597.307 toneladas. Naquele ano o consumo de aparas e papéis usados foi de 3.497.000 toneladas. Ou seja, um pouco mais de 40% do total. Esses são os números oficiais da entidade dos produtores de papel e celulose.

O papel reciclado é usado principalmente nas embalagens e no papel tissue – papel higiênico e toalhas de papel. Os demais usos – papel Kraft, papel para imprimir, etc., são bem menores.

O Brasil produziu, em 2005, um total de pelo menos 306.463.000 exemplares de livros. É muito papel. Difícil de calcular exatamente, pois nas estatísticas o consumo para livros está englobado com o dos demais papéis para imprimir e escrever.

Mas é muito papel.

E os livros, felizmente, têm uma vida mais longa que muitos outros impressos. Ou seja, do total da produção, a parcela empregada em livros volta muito pouco para a reciclagem. Além dos livros existe também o papel usado em escritórios, repartições, tribunais etc., que é arquivado e não volta para ser reciclado.

Outro tipo de papel que não se presta para a reciclagem (mas é feito com pasta reciclada) é tissue – papel higiênico, toalhas de papel, etc. O papel higiênico usado, infelizmente, não pode mais ser reciclado. Se fosse talvez pudesse até salvar árvores, mas a companhia dos coliformes fecais desaconselha isso…

Segundo as avaliações de técnicos da ABTPC, a reciclagem de papéis na indústria e no comércio é altíssima e a margem para aumento não é grande. É possível reciclar ainda um pouco mais o papel de uso doméstico, principalmente de embalagens. Mas, se formos transportar aparas de regiões muito longínquas para os centros onde se produz papel, o gasto com combustível não apenas tornaria a operação antieconômica quanto aumentaria a emissão de carbono.

Ou seja, os índices brasileiros de reciclagem de papel são bastante bons. E pelas mesmas razões pelas quais são bons os índices de reciclagem de alumínio – latinhas de cerveja – e outros metais: a miséria e o subemprego proporcionam farta mão de obra para a coleta desses materiais. O preço de alguns metais é tão alto que, além da reciclagem normal, estimula o furto de cabos e fios elétricos para venda do cobre. Mais um dos nossos paradoxos: os índices de reciclagem são altos porque a miséria ainda é muita.

E mais: para aumentar o uso de papéis reciclados é preciso em primeiro lugar AUMENTAR O USO DO PAPEL FABRICADO COM CELULOSE VIRGEM. Para que haja reciclagem é preciso primeiro haver o uso da matéria prima básica.

É que, ao contrário do alumínio e de outros metais – e mesmo do vidro – a celulose reciclada se degrada, não pode ser reaproveitada indefinidamente. Por isso mesmo em várias situações, para se conseguir uma pasta homogênea, a que é obtida a partir da reciclagem tem que ser complementada com celulose nova.

A Deputada Rebecca Garcia teve o cuidado de consultar outras fontes além das citadas pelo autor do projeto. Comete um erro em relação à reciclagem do papel, afirmando que se o projeto fosse aprovado “o índice de reciclagem… subiria rapidamente para porcentuais próximos aos das latas de alumínio”. Só se fosse compulsório picar os livros recém lidos e reciclar o papel higiênico.
… está calçado o caminho do inferno.

A relatora chegou a emitir parecer favorável à aprovação do projeto, mas teve o cuidado de convocar uma audiência pública para ouvir os interessados, no dia 3 de abril de 2008. Estiveram presentes representantes da BRACELPA, ABRELIVROS (2) e do FNDE. Mais tarde o MEC enviou oficio à relatora manifestando-se contrário à aprovação do projeto. Toda a argumentação dos presentes na audiência segue, em linhas gerais, a que aqui é apresentada, indicando a inviabilidade de que fosse atendido o objetivo do projeto (3).

A partir dessas informações a Deputada Rebecca Garcia apresentou o substitutivo propondo um incentivo creditício para quem usar o papel reciclado.

A diferença de preços, no mercado, entre o papel virgem e o reciclado é, hoje, cerca de 30 a 40% (o reciclado é o mais caro). Propor linhas de crédito especiais para quem use o reciclado dificilmente terá algum efeito. As editoras usam e usarão o reciclado na medida em que o custo se aproxime mais do papel virgem (e isso dificilmente acontecerá pelas razões estruturais que vimos), ou em projetos especiais. Crédito não resolve.

O papel reciclado para imprimir é hoje usado em escala por um tipo muito específico de cliente: grandes bancos. É uma jogada de marketing. Os bancões anunciam que estão salvando a floresta e podem suportar perfeitamente o custo maior do papel de seus impressos e cheques, pois acabam repassando isso para nós, correntistas. Os fabricantes de papel, conscientes também das possibilidades de marketing que a disponibilização de uma linha de papéis desse tipo oferece, têm apresentado o papel cortado em resmas para uso doméstico e de escritório (formatos “ofício” e A4) a preço apenas ligeiramente mais alto que o papel virgem. É bom para a imagem dos fabricantes de papel.

O projeto terá ainda uma longa tramitação na Câmara dos Deputados, antes de seguir para o Senado Federal. Se for aprovado e sancionado, algum dia, não modificará em nada de substancial a Lei do Livro (que provavelmente ainda não estará regulamentada, vista a velocidade de bicho-preguiça aleijado que o MinC imprime a esse processo).
Vendo a banda passar.

Mas importa destacar aqui, à guisa de conclusão:

A primeira é a ausência das entidades do livro vinculadas à produção dos não didáticos nessa discussão. Aliás, se a Deputada não convocasse a audiência pública, provavelmente nenhuma das entidades teria se mexido para exercer seu papel legítimo de lobby e evitar a aprovação desse tipo de lei.

Existem literalmente centenas de propostas desse tipo circulando pelas duas casas do Congresso. Propostas feitas certamente com as melhores intenções por parte de Deputados e Senadores. Mas às quais falta o detalhe essencial do contraditório, do debate, da exposição de posições que possam matizar as boas intenções para que estas não se transformem em trilhas para o inferno.

A segunda questão diz respeito ao resultado desse tipo de iniciativas para o próprio parlamento. Não é o primeiro exemplo que conheço no qual o relator de um projeto francamente inviável – embora motivado por boas intenções – encontra no Relator uma mão amiga que esteriliza a proposta (4). Dessa maneira o parlamentar continua ganhando crédito junto ao seu eleitorado – no caso o Deputado Eliene Lima pode continuar se apresentando como um grande defensor do meio-ambiente e do papel reciclado – embora a relatoria o transformasse em um projeto esterilizado e inócuo. Inútil. O que não faz bem para o parlamento como instituição, embora talvez seja ótimo para a chamada “cortesia parlamentar”.

O pano de fundo que deve preocupar os que temem por nossa democracia é que esse tipo de iniciativas se deve, em grande medida, à impotência real do parlamento, travado pelas iniciativas do Executivo, manietado por inúmeras restrições e quase reduzido a um papel homologatório.

Precisamos de um parlamento que efetivamente legisle, que aprove um orçamento mandatório e não simplesmente autorizativo e que assim possa romper a brincadeira de fazer leis que “não pegam” ou são simplesmente inúteis.

________________

(1) Lei do Livro foi promulgada em 30/10 de 2003. Está para completar seu quinto aniversário sem ter sido regulamentada pelo MinC, apesar de haver minuta em discussão desde 2005. Uma pequena mostra da incompetência administrativa e operacional do Ministério da Cultura.

(2) Em algumas ocasiões o representante de uma entidade do livro assume a representação conjunta de todas. Não foi o caso. O senhor Frederico Wickert identificou-se como representante exclusivo da ABRELIVROS. Não havia, portanto, representantes da CBL e do SNEL na audiência pública.

(3) A Deputada não estava obrigada a consultar órgãos do Executivo na tramitação do projeto. Ter feito isso demonstra um cuidado especial. Mas, note-se, o Ministério consultado foi o da Educação. O da Cultura, para variar, não piou no assunto.

(4) Um exemplo que acompanhei foi um projeto da então Senadora Heloísa Helena, propondo cotas de publicação em Braille para todas as editoras. O Relator apresentou um substitutivo no qual afirmava que cabia ao MEC proporcionar o acesso aos livros em Braille para todos os deficientes visuais. O projeto foi aprovado no Senado e está vagando ainda hoje pela Câmara


Antropólogo, jornalista e consultor de políticas públicas para o livro e leitura, é autor do livro "O Brasil pode ser um país de leitores?"

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *