A fragilidade do patrimônio audiovisual nacional ainda encontra poucas iniciativas de combate à situação. O projeto Mnemocine é uma delas. Uma entrevista exclusiva com um de seus fundadors, Flavio Brito
A preservação do patrimônio audiovisual de um país é uma dificuldade mundial, aumentada no Brasil por razões específicas. O projeto Mnemocine estimula práticas de pesquisa, preservação e reflexão sobre a documentação e preservação da nossa memória cinematográfica e divulga a produção de cineastas brasileiros, sendo um importante instrumento de apoio para professores, estudantes e pesquisadores.
Cultura e Mercado entrevista um dos fundadores do projeto, Flavio Brito. Atuando no ensino e pesquisa da história do cinema, ele é professor das universidades FAAP e Belas Artes, em São Paulo, e especialista em tecnologias de informação e comunicação aplicadas à educação.
CeM: Como surgiu a iniciativa do Mnemocine, e como o projeto vem sendo sustentado?
FB: A proposta de Mnemocine surgiu em 1998 a partir do diálogo entre profissionais e educadores vinculados ao audiovisual e às ciências humanas e possui diversas motivações, entre as quais eu destacaria o desejo de investigar o potencial da Internet e das mídias digitais junto às nossas atividades pedagógicas e a carência de informações de qualidade sobre cinema e fotografia disponíveis na rede.
O site foi lançado em agosto de 1999 e nestes quase sete anos, além de um crescimento constante de visitantes e textos publicados, realizamos parcerias e apoiamos projetos e instituições, transformando Mnemocine em referência pedagógica para cursos de cinema (e comunicação) de todo o Brasil.
Neste período a edição de conteúdo e a manutenção das despesas operacionais foram realizadas principalmente por seus fundadores (Flavio Brito e Filipe Salles), contando em vários momentos com doações de colaboradores e dos cursos que o site divulga e para os quais desenvolve material pedagógico on line.
A qualidade do conteúdo publicado deveu-se à generosidade de centenas de colaboradores que enviaram textos, imagens e indicações de pesquisa. Os créditos procuram expressar a gratidão pelas contribuições recebidas.
Embora o sucesso de Mnemocine tenha sido surpreendente, uma série de perspectivas previstas em seu projeto original ainda não foram implementadas. Para tal, iniciamos uma política de captação de recursos que possibilite o desenvolvimento de novos conteúdos pedagógicos, soluções de navegação e programação visual.
CeM: Além do site, quais as ações que o Mnemocine vem realizando para alertar sobre a situação da memória cinematográfica brasileira?
FB: O site é a manifestação mais visível de uma série de ações realizadas por seus colaboradores. A questão da memória cinematográfica encontra-se presente tanto em nossas atividades de produção, nos cursos de graduação e formação técnica, como nos projetos sociais que se utilizam das linguagens audiovisuais para registro e avaliação de suas atividades.
Nesse período, realizamos parcerias e apoiamos diversas iniciativas e instituições, incluindo o desenvolvimento de sites de mostras e festivais e a elaboração de material pedagógico on line para cursos e oficinas.
No âmbito acadêmico, além de atender a dúvidas técnicas, indicações de pesquisa e da publicação de textos de importantes pesquisadores, Mnemocine disponibilizou o Banco de Teses do Cinema Brasileiro, desenvolvido por José Inácio de Melo Souza e elaborou o site de “Aruanda” – Laboratório de Produção e Pesquisa em não-ficção – da Escola de Comunicações e Artes da USP.
CeM: A fragilidade do patrimônio audiovisual é um problema maior em países como o Brasil ou é uma questão mundial?
FB: É uma questão mundial na medida em o patrimônio audiovisual muitas vezes é relegado a segundo plano diante de necessidades entendidas como mais urgentes, o que muitas vezes funciona como justificativa para o descaso.
E também por que a fragilidade do patrimônio audiovisual é um problema de estrutura do próprio objeto. Filmes são sensíveis às altas temperaturas, à alta umidade ou alterações bruscas de ambas. Fitas de vídeo são mais sensíveis ainda e os novos suportes merecem estudos detalhados sobre sua capacidade de preservação das informações. No caso de países tropicais, o problema é agravado pelo clima naturalmente ruim para a conservação do patrimônio audiovisual.
Portanto, no Brasil devemos considerar tanto as questões relacionadas ao clima, como aquelas pertinentes aos países em desenvolvimento, onde encontramos uma menor sensibilidade com a preservação da memória e uma reduzida disponibilidade de recursos, em comparação aos paises europeus, por exemplo.
CeM: Quando se fala em patrimônio audiovisual, discute-se muito a preservação e o restauro de cópias de filmes, e pouco a documentação. Como está o Brasil nessa questão? Quais são as dificuldades comumente encontradas?
FB: Este é mais um dos fatores que merece uma política de conscientização. O fundamental é a compreensão de todo o processo, que se valoriza cada vez mais quando estas esferas encontram-se integradas.
Segundo Fernanda Coelho, da Cinemateca Brasileira: “Quando um filme é restaurado, todo trabalho de documentação foi feito antes. É o trabalho de catalogação de acervos que consegue identificar os filmes. É o trabalho de documentação que consegue trazer dados para avaliar a relevância de uma obra audiovisual que, por sua vez, justifica o investimento de uma restauração. É o trabalho de preservação que consegue reconhecer que uma obra está em vias de desaparecimento e dá o alerta para a necessidade de restauração. A restauração em si é a etapa final do processo. Hoje é possível dizer que o patrimônio audiovisual brasileiro está muito mais documentado e catalogado do que preservado e restaurado. Enquanto se descobrem 100 filmes que precisam ser restaurados, consegue-se recursos para restaurar 5 ou 10“.
A importância de um filme (e de qualquer documento) relaciona-se diretamente com disponibilidade do maior número possível de informações acerca de sua produção, incluindo versões de roteiro, fotos de cena, depoimentos dos participantes, reportagens e repercussões do filme em sua época, assim como influências e reflexões posteriores.
Nesse sentido, merece destaque o trabalho desenvolvido pelos profissionais da Biblioteca Jenny Klabin Segall, do Museu Lasar Segall, que reúne um dos principais acervos documentais de cinema, fotografia e artes plásticas, além de realizar projetos fundamentais como a recente digitalização de todos os fascículos das revistas Scena Muda e Cinearte, as primeiras do Brasil especializadas em cinema (s://www.bjksdigital.museusegall.org.br)
CeM: Como você vê a atuação da Secretaria do Audiovisual e da Cinemateca Brasileira na preservação do nosso acervo cinematográfico?
FB: A Secretaria do Audiovisual (ao qual a Cinemateca é subordinada), foi a primeira a colocar como lei o depósito legal. Significa dizer que toda produção nacional que utilize os benefícios da Lei do Audiovisual é obrigada a depositar uma cópia de preservação na Cinemateca Brasileira.
Quanto à Cinemateca, ainda que em toda sua história operasse com uma verba insuficiente para sua manutenção, o trabalho de seus dedicados profissionais permitiu realizações extraordinárias. A Cinemateca Brasileira é o maior arquivo da América Latina e, a julgar pelo continente latino-americano, estamos melhor do que a maioria dos nossos vizinhos.
Iniciativa pioneira de Paulo Emílio Sales Gomes, em 2006 a Cinemateca Brasileira completa 60 anos de existência, com atuação determinante para que não se perdessem obras fundamentais da cinematografia brasileira. Na década de 80 reuniu a obra de Glauber Rocha e recentemente coordenou a restauração da obra completa de Joaquim Pedro de Andrade, em processo convencional e digital. Está apoiando e coordenando tecnicamente a catalogação e preservação do Projeto Amplavisão, no acervo do Primo Carbonari.
Além do trabalho diário de preservação, catalogação, documentação e restauro de obras audiovisuais, uma das contribuições da instituição tem sido abrir espaço para discussões, troca de experiências e atualização dos técnicos que trabalham em arquivos audiovisuais.
Este mês a Cinemateca Brasileira está sediando o 62º Congresso Internacional da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF) – que acontece de 20 à 29 de Abril – e vai receber profissionais de 57 países diferentes, para discussões técnicas acerca de arquivos de filmes. O tema deste ano é o cinema digital (www.cinemateca.gov.br).
Eles estão ainda fazendo um Censo Cinematográfico. Sabe-se, por exemplo, que apenas 7% do cinema mudo brasileiro (produções até a década de 30) sobreviveu ao tempo. Calcula-se que cerca de 30% da produção até 1950 sobreviveu. Estas percentagens tendem a aumentar com o tempo, com o surgimento de novos arquivos, a preocupação acerca da preservação e o crescimento da consciência da classe cinematográfica.
CeM: O interesse do grande público pelo cinema brasileiro parece limitado até mesmo quando se fala da produção mais recente. Como então despertar o interesse para o nosso acervo audiovisual? As escolas e universidades poderiam ser agentes importantes nesse processo?
FB: O interesse pela produção cinematográfica nacional depende de uma série de fatores e também reproduz carências de outras áreas culturais. Certamente as escolas e universidades desempenham um papel importante para o reconhecimento da produção nacional. Sua integração ao processo pedagógico pode se dar de diversas formas, incluindo a constituição de acervos de vídeos/DVDs e outras formas de acesso à produção audiovisual.
Compreende investigar o modo o Brasil foi e é representado por imagens e perceber, por exemplo, que algumas temáticas de nossa produção recente como a favela ou o Nordeste (e as questões sócio-econômica de forma mais ampla) dialogam com uma extensa tradição.
O papel da televisão historicamente tem se mostrado fundamental nesse processo e atualmente vivemos um momento crucial para a definição do futuro mercado audiovisual. Embora os debates sobre o sistema de televisão digital a ser adotado pelo Brasil adquiram maior visibilidade, devem ser consideradas as implicações sobre os conteúdos veiculados, a preservação e o acesso às produções.
CeM: Como formar platéias para o cinema nacional?
FB: Esta é uma questão que acompanha toda a história do cinema nacional, desde os anos 1910, quando a produção norte-americana se tornou hegemônica, passando pelos congressos de cinema nos anos 1950, pelos debates em torno da Embrafilme nos anos 1970 e 80 até aqueles relacionados ao “renascimento do cinema nacional”.
O processo envolve o amadurecimento de todo o circuito da produção audiovisual, incluindo exibidores, produtores, instituições de ensino, de pesquisa, de preservação e as políticas (governamentais ou não) de apoio à produção e à formação de público.
A utilização (criteriosa) de filmes (e da produção audiovisual de forma mais ampla) no contexto pedagógico, iniciativas do estado, de centros culturais, fundações e ONGs tem configurado um panorama bastante promissor.
No entanto, embora o cenário atual não seja dos piores, o chamado “renascimento do cinema nacional” ainda deve ser visto com cautela. A complexidade da questão, dos atores e interesses envolvidos pode ser exemplificada a partir de fatos recentes: os sucessivos adiamentos da definição do padrão de televisão digital a ser adotado pelo Brasil e da regulamentação das atribuições da ANCINAV assim como, no ano passado, a renovação sem alterações das leis de incentivo. Após 10 anos de funcionamento, os representantes do setor, do governo e do Congresso Nacional, entenderam que não havia clima político para o aperfeiçoamento da legislação, nem havia se configurado o previsto amadurecimento da indústria que, portanto, não poderia prescindir de incentivos.
André Fonseca
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