Gilberto Gil deve controlar metade da verba de patrocínio das empresas estatais, conforme combinado com o secretário de Comunicação e Gestão estratégicaPor Israel do Vale
06/05/2003
A verba é das estatais, mas a política é do governo. O tiroteio iniciado no meio cultural com o recado dado pelo Governo Federal deve ter um final, se não feliz, ao menos conciliador.A começar da primeira aproximação entre as duas instâncias governamentais envolvidas na discussão. Secom (Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica), do ministro Luiz Gushiken, e Minc, de Gilberto Gil, teriam fechado um “pré-acordo” que dividiria igualmente entre os dois a administração dos recursos das empresas estatais direcionados para patrocínio?cerca de R$ 300 milhões para cada um.
A informação foi dada pelo secretário do Audiovisual, Orlando Senna, ao final de sua participação na mesa de abertura do 4º Fórum Brasil de Programação e Produção, no final da manhã desta terça-feira, em São Paulo.O meio-termo põe fim ao desconforto gerado pela decisão de concentrar na Secom uma verba estimada em R$ 600 milhões. E abre perspectiva de diálogo maior com o setor cultural, contornando a primeira crise conjugal com (parte d)a classe desde a posse do novo governo.
Diálogo
É uma saída intermediária. Se não representa uma volta atrás do governo em sua intenção de exigir contrapartida social de projetos financiados por verba pública, ao menos abre uma porta para a discussão dos termos em que isso se dará.O setor audiovisual é o que tem mais expectativas em relação às políticas do governo na Cultura. A maior parte dos homens em cargos de decisão na área dentro do governo fez parte do processo que levou à criação e instalação da Ancine, a agência fomentadora do setor.
É, aos olhos do mercado, uma equipe afinada com os anseios de novos rumos para o desenvolvimento do filme nacional. Daí a grita geral neste primeiro “descompasso” em relação aos seus interesses.
A posição do Minc foi resumida hoje por Senna: “Para o Ministério da Cultura administrar o fazer cultural no Brasil, ele tem também que ter controle sobre os recursos aplicados nessas operações”. Para o secretário, é a contrapartida natural da ação do Minc como gestor de políticas. “Seria muito contraditório que o Ministério da Cultura realizasse seus projetos e se responsabilizasse pelo resultado deles sem poder estar no controle do início desses projetos, que são os recursos necessários para que eles existam”.
Discurso
Em sua apresentação na abertura do evento, Senna repassou os movimentos mais significativos no jogo de xadrez que conduziu à criação da Ancine, listou os principais itens do programa do governo para o audiovisual e relacionou uma série de ações práticas que estão sendo planejadas para “mostrar filmes brasileiros a milhões de pessoas que não podem vê-los porque estão longe deles e dos canais de televisão pagos ou porque não podem pagar ingresso”.
Entre eles, mencionou projeto de “transmissão instantânea de filmes para vários pontos, via satélite, fazendo uso de centenas de receptores do governo” e a “utilização de espaços alternativos para exibições”. Outra novidade seria a criação de um circuito popular de exibição de filmes, “com preços não superiores a 10% dos ingressos comerciais”.
Leia abaixo a íntegra do discurso do secretário Orlando Senna.
Vou tentar fazer um histórico das idéias referentes à política audiovisual que circularam nos últimos dois anos. Um resumo, é claro. Durante todo esse período os profissionais da atividade audiovisual, principalmente o pessoal do cinema, desenvolveram uma profunda reflexão sobre a cultura audiovisual brasileira e, com mais precisão, sobre o mercado audiovisual. Em junho de 2000, em Porto Alegre, e graças à agitação cultural-política de Gustavo Dahl à qual se juntaram outros cineastas, foi montado o Terceiro Congresso Brasileiro de Cinema, que produziu 69 tópicos, organizados em 16 cápitulos, com sugestões concretas e reivindicações concernentes às relações do Estado com a atividade. Nesse terceiro congresso foi plantada a semente de uma re-organização horizontal e vertical do universo audiovisual brasileiro, que logo vicejou na criação do Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria do Cinema – GEDIC, vinculado à Casa Civil da presidência, cuja missão, cumprida, foi entregar ao governo um pré-projeto de Planejamento Estratégico da Indústria Cinematográfica.
Vicejou, como produto do GEDIC, na criação da Agência Nacional de Cinema-Ancine, com a atribuição de regular e fiscalizar o mercado cinematográfico brasileiro, com poder de cobrança de impostos. E na criação do Conselho Superior de Cinema, com a atribuição de elaborar as políticas públicas para a atividade, a serem aplicadas pela Ancine e pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. O Conselho Superior de Cinema, composto por sete ministros de Estado e cinco representantes da sociedade civil, situa a Ancine em uma posição diferenciada das demais agências reguladoras, que elaboram suas próprias políticas. Uma posição diferenciada e bem mais palatável para um governo petista. A arregimentação política dos trabalhadores audiovisuais resultou também em outra assembléia geral – o Quarto Congresso Brasileiro de Cinema, no Rio de Janeiro, em novembro de 2001- onde o ponto de destaque foi a relação cinema-televisão, como uma reação ao fato do governo Fernando Henrique Cardoso haver excluido a televisão do âmbito de atuação da Ancine, indeferindo uma das propostas mais importantes do setor.
Cito a ata do Quarto Congresso: ?O cinema nacional é produzido com recursos do povo brasileiro, que também é, em última instancia, o financiador da TV brasileira, tendo, portanto, o direito de acesso ao seu cinema em sua TV. É intolerável a persistência do excessivo e quase incontrolável poder dos meios de comunicação social sobre a vida cultural e política da nação. Desta forma, posicionando-se pela inevitabilidade de uma parceria entre o cinema e a TV aberta, o IV Congresso manifesta-se pelo fortalecimento da Rede Pública de TV, pela revisão da legislação de TV por assinatura em todos os meios existentes e por existir?. Os trabalhadores do cinema também se habilitam, no documento, à discussão da transição tecnológica no sistema de transmissão televisiva e ?seu impacto sobre o mercado, a indústria e o desenvolvimento cultural do povo brasileiro?.
Enquanto isso, e paralelamente, desenvolvia-se a campanha eleitoral e o Partido dos Trabalhadores elaborava o seu programa de políticas públicas de cultura, que veio a público em novembro do ano passado com o título ?A imaginação a serviço do Brasil?. O capítulo referente ao audiovisual diz o seguinte:
?Pelo caráter transversal de sua atividade, a produção e difusão audiovisual exigem um cuidadoso processo de discussão. Partimos da convicção de que o governo tem um papel fundamental a cumprir no estímulo à produção, distribuição e exibição do produto audiovisual brasileiro. Pelos fatores que envolve, pela complexidade do processo de elaboração, que conjuga a dimensão propriamente artística e cultural e a necessária dimen-são industrial e comercial – o que exige um tratamento interministerial -, e pelas relações com o mercado, o produto audiovisual deve merecer um tratamento em outros capítulos do Programa de Governo. O papel do Estado se define a partir de suas responsabilidades como representante legítimo, eleito pelos cidadãos e cidadãs, para dirigir uma Nação que se insere de modo soberano no contexto mundial.
?A produção e difusão do audiovisual assumem uma importância cada vez maior no mundo contemporâneo, não apenas como um fator econômico, um ramo dinâmico, gerador de emprego e renda, mas também como portador de valores éticos, históricos, políticos e sociais cultivados pelo nosso povo. O nosso governo não apenas vai prosseguir apoiando e estimulando a produção audiovisual brasileira, mas deverá pautar com a sociedade o debate em torno da distribuição e exibição dos filmes produzidos, para que eles possam chegar ao nosso povo com o maior alcance possível. Não há dúvida sobre o significado da produção, distribuição e exibição da imagem audiovisual como fator de afirmação da identidade cultural de um país como o Brasil no mundo contemporâneo. É preciso, portanto, fixar como diretriz uma política que estabeleça, a exemplo de outros países do mundo, um estreito vínculo entre a produção audiovisual brasileira e os mecanismos concretos de sua difusão – as redes de cinemas, as TVs abertas e fechadas – com as modificações que se fizerem necessárias na legislação. É necessário envolver toda a sociedade nesse debate que ora iniciamos.?
A esta altura da história eu ocupava a Subsecretaria do Audiovisual do Estado do Rio de Janeiro, no governo de Benedita da Silva, trabalhando com o secretário de Cultura Antonio Grassi, e fui honrado com um convite da Comissão de Programa de Governo do candidato Lula para coordenar a elaboração de um documento específico sobre o audiovisual, em cumprimento com o que o programa de cultura anunciva: ?o produto audiovisual deve merecer um tratamento em outros capítulos do Programa de Governo?. Também me foi pedido um texto básico, um briefing subsidiário para uma série de reuniões programadas com as entidades e as personalidades representativas do setor. Trabalhei a encomenda com Nelson Pereira dos Santos, nos esforçando para redigir uma síntese orgânica de toda a massa crítica acumulada e ativada desde a realização do histórico Terceiro Congresso do Cinema Brasileiro em Porto Alegre. O texto, referendado pelas entidades do setor, foi lido por Nelson Pereira dos Santos na reunião do candidato Lula com artistas, intelectuais e cientistas no Rio de Janeiro, no Canecão, em outubro do ano passado, e adotado pelo PT como matéria essencial para a elaboração do programa de políticas públicas de audiovisual . É um texto muito conhecido na nossa praia mas me parece necessário relembrá-lo em um fórum dessa natureza. Vamos a ele.
?As indústrias culturais não podem nem devem estar sujeitas às mesmas regras comerciais aplicadas aos demais produtos industrializados, porque agregam valores que não podem ser medidos apenas através dos preços de compra e venda. A comercialização dos produtos culturais, sejam nacionais ou estrangeiros, não pode estar atrelada exclusivamente aos aspectos econômicos, às leis do mercado, mas sim e fundamentalmente ao respeito à liberdade de circulação da cultura?.
Este caráter de exceção das indústrias culturais é sustentado pela necessidade estratégica, em um mundo globalizado, de mantermos a identidade cultural brasileira, de mantermos a nossa personalidade diante de nós mesmos e diante do mundo. A identidade cultural de um povo, de um país, se preserva e se constrói e se fortalece a cada dia com a alimentação e a potencialização de nossa língua, de nossas manifestações artísticas, do nosso comportamento peculiar, do nosso jeito de ver e pensar o mundo e a humanidade, da nossa capacidade de sermos nós mesmos e de mostrar esta capacidade aos outros povos.
As análises e projeções mais sérias e confiáveis, desenvolvidas por especialistas independentes e por departamentos estatais, indicam que as maiores atividades econômicas das próximas décadas estarão relacionadas às indústrias culturais e à comunicação. Isto significa que o país que não desenvolver e não fomentar sua expressão cultural estará condenado a um papel secundário na economia global. Alguns países, entendendo e antecipando esta mega tendência econômica, já avançaram, já estão ocupando espaços vitais na circulação nacional e internacional de bens culturais. Das dez maiores indústrias francesas, seis são culturais. Das dez maiores indústrias inglesas, cinco são culturais. A maior receita direta dos Estados Unidos vem da indústria bélica e a segunda receita vem da indústria audiovisual, dos filmes que todo mundo compra e que ocupam 80% do mercado consumidor de cinema em todo o planeta. A indústria audiovisual é a segunda em receita nos Estados Unidos porque a estatística se refere apenas à venda dos produtos audiovisuais, mas com absoluta certeza é a primeira se levarmos em conta, como deve ser levado, a sua enorme capacidade de anunciar e vender outros produtos americanos, inclusive as armas.
O audiovisual é a maior e mais importante indústria cultural. O país que não desenvolver e fizer circular nas próximas décadas sua expressão audiovisual (no cinema, na televisão, no vídeo, nas mídias digitais), estará fadado, condenado, a ser um país importador. Não apenas importador de filmes e outros produtos audiovisuais, mas também de uma infinidade de produtos e comportamentos que incidirão direta e gravemente na nossa economia.
A adoção do caráter diferenciado, de excepcionalidade, para as atividades das indústrias culturais, é particularmente necessária e urgente no que se refere ao audiovisual. Os produtos da indústria audiovisual não podem ser tratados como mercadorias quaisquer de consumo, pois possuem um valor distinto das demais mercadorias comercializadas no mercado internacional: o valor da riqueza imaterial, da identidade nacional, da cidadania e da soberania. Esses produtos devem ser protegidos por leis de apoio específicas, incluindo subsídios públicos e benefícios governamentais.
Internamente, tratando-se do nosso mercado consumidor de filmes, temos de garantir um espaço digno e abrangente para a expressão brasileira, sem excluir a circulação neste mercado de bons produtos de outros países, garantindo a reciprocidade de tratamento nestes países. Temos de criar uma rede de distribuição do produto nacional, sem que para isso tenhamos de fechar as portas para a distribuição de produtos de outras procedências. Como foi feito com a Petrobrás, que era uma empresa deficitária até o momento em que criou a BR Distribuidora, espalhando milhares de postos de venda em todo o país. O Brasil extraía e refinava o petróleo e quem o vendia eram as multinacionais. Quando passamos a ter nossos próprios postos de gasolina a Petrobrás começou a apresentar lucros e algumas empresas estrangeiras se retiraram do negócio.
Externamente, temos de conseguir mercados para o nosso produto, já que se trata de uma atividade internacionalizada, e lutar pela adoção de princípios e legislações nacionais e internacionais que garantam uma isonomia entre o atual cinema hegemônico, o dos Estados Unidos, e todos os cinemas nacionais; que garantam o direito de todo cidadão, brasileiro ou estrangeiro, ter acesso à pluralidade cinematográfica que existe no mundo.
Esta posição está estribada no conceito da diversidade cultural, no direito de todos nós de termos acesso às manifestações culturais e artísticas de maneira ampla e irrestrita e não apenas a determinadas manifestações de determinados países. O conceito e a prática da diversidade cultural é o corolário do princípio da liberdade de expressão, sem a qual não podemos exercer plenamente o exercício da cidadania.
Sugestões para um programa de governo:
.Inserir a produção e difusão audiovisual no âmbito das atividades estratégicas nacionais.
.Assumir o princípio de Acesso ao Bem Cultural, direito garantido ao cidadão pela Constituição Brasileira, como fundamento para desenvolver e gerir políticas que promovam a formação e ampliação de platéias e ações alternativas de acesso universal das pessoas aos produtos audiovisuais.
.Instalar plenamente a Ancine-Agência Nacional de Cinema, criando condições excepcionais para o desenvolvimento de suas atividades.
.Ampliar a participação do Ministério da Cultura no fomento à realização de filmes e programas televisivos de produção independente, estimulando a renovação e ampliação dos quadros profissionais, técnicos e artísticos.
.Reformular as leis de incentivo fiscal no sentido de um aproveitamento mais amplo e direto dos recursos por parte dos realizadores e produtores independentes.
.Criar e desenvolver uma política de formação de novos profissionais.
.Inserir na educação básica (desde a escola primária) o ensinamento e a prática da linguagem audiovisual.
.Regulamentar e fiscalizar o acesso da produção brasileira independente e dos cinemas nacionais à programação das emissoras de televisão, atendendo às disposições constitucionais e ao princípio da Diversidade Cultural.
.Instituir a produção televisiva regional (art. 221 da Constituição).
.Criar e fiscalizar a regulamentação específica para o produto audiovisual brasileiro, com o objetivo de preservar sua competitividade em relação ao produto hegemônico no mercado interno, prevendo mecanismos de isonomia competitiva.
.Discutir, junto a Organização Mundial do Comércio-OMC, o efeito das práticas monopolísticas e de dumping de comercialização do produto hegemônico no Brasil e, a exemplo de outros países, defender os princípios da Diversidade Cultural e da Exceção Cultural.
.Desenvolver uma política externa sólida para o audiovisual brasileiro.
.Empreender ações que estabeleçam o diálogo e tomada de posições com paises de processos e princípios similares visando a internacionalização do produto nacional e reforçando a defesa dos interesses comuns?.
O programa de políticas públicas de audiovisual foi elaborado a partir destes princípios e sugestões, re-analisados, formatados e expressos de maneira extensa, clara e ordenada pelo Fórum Nacional do Audiovisual, promovido pela Comissão de Programa de Governo e pela Comissão de Transição na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, no dia 3 de dezembro passado, que reuniu representantes de todas as áreas da atividade audiovisual e de todo o país. Ao ser honrado, pela segunda vez nesta história, com o convite do ministro Gilberto Gil para assumir a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, eu levava a sorte de ter um programa de ação pronto, arquitetado pelos trabalhadores do setor e referendado pelo Ministro da Cultura e pelo PT.
Aqui começa um segundo andamento da sinfonia: o encontro dos projetos com a realidade do ato de governar, das necessidades com as possibilidades, da teoria com a prática. Não se trata de esmorecer diante das imensas dificuldades que um país como o nosso terá de enfrentar na implementação de uma política de resultados no que se refere ao audiovisual, elevado pelo governo, como elemento exponencial da cultura, ao patamar de matéria estratégica. Trata-se de ter a inteligência adequada e atilada para superar tais dificuldades, advindas dos grandes custos das operações, de um mercado consumidor ocupado por um poderoso produto estrangeiro, de um mercado produtor sufocado por esta realidade e das forças formidáveis e retaliatórias que movem a indústria e o comércio planetários das comunicações e do audiovisual. Trata-se de procurar, inventar caminhos novos nesta complexa selva de dólares, balanças comerciais, idéias, ideologias, comportamentos, psicologias, emissões subliminares, identidades nacionais e soberanias. Qualquer atitude, postura ou avanço referentes a políticas nacionais de audiovisual terão de ser assumidos e operados sob a espada de Dâmocles de uma superpotência que sabe que seu espantoso poder advém em grande parte, em bem grande parte, da exibição contínua de seus filmes em oitenta por cento do mercado mundial consumidor de filmes – e com o firme propósito de ocupar os cem por cento, como declarou o presidente da Motion Pictures Association. Não apenas no que se refere ao audiovisual, não apenas no que se refere ao Brasil, a experiência de viver sob um poder hegemônico mundial é inédita, e é inédita para tudo e para todos há muito tempo, desde que o Império Romano foi a pique em meados do século cinco, enfraquecido pela guerrilha espiritual da cristandade.
Diante deste quadro, as estratégias de ação devem ser forçosamente novas, já que de um novo panorama se trata, de um novo teatro de operações se trata. Como realizar o programa de reformatação da atividade audiovisual brasileira, desejado pelo governo e pelo setor, diante de um quadro tão adverso? A questão foi orientada pelo ministro Gilberto Gil e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no sentido de inverter o foco na reflexão sobre a questão. O princípio da política estratégica para o audiovisual é a constatação pacífica de que a sociedade é maior do que o mercado e, portanto, seus movimentos, suas vibrações, suas macro oscilações, suas grandezas e sua fome regulam o comportamento do mercado, o comportamento da economia – embora a massificação operada pela mídia, que não é tão massiva como se apresenta, faça crer aos incautos que a influência se faça ao contrário.
A partir dessa relação de forças – a sociedade é maior do que o mercado – projeta-se um segundo principio estratégico que assim se enuncia: para que o cinema brasileiro ocupe uma faixa de auto sustentabilidade no seu próprio mercado, uma faixa que se traduza em competitividade econômica e em visibilidade condizente com nossa soberania cultural, é necessário que a sociedade brasileira assuma o cinema brasileiro como coisa sua, com o mesmo ardor como assume a nossa música, que o povo brasileiro ame o seu cinema, se apaixone por ele, se orgulhe dele, defenda-o com argumentos emocionados como defende o samba, o futebol e as belezas naturais. Para usar uma frase do nosso presidente, ?é preciso que a sociedade brasileira aconchegue o nosso cinema em seu regaço?.
Leva-se em consideração o fato de que o brasileiro gosta de seu cinema quando tem acesso a ele, como comprovam os altos índices de audiência de mostras de filmes brasileiros na tv aberta, em se tratando da população de baixa renda; como comprovam as altas bilheterias classe média de filmes brasileiros lançados em condições semelhantes aos filmes norte-americanos, como os benditos Cidade de Deus, Deus é Brasileiro e Carandiru. A tarefa é elevar o contingente de dois ou três milhões de brasileiros que gostam de filmes brasileiros a muitos milhões, ao mais próximo possível da nossa grande população.
O princípio é cristalinamente correto: se o povo brasileiro adotar o seu cinema como adota a sua música, os filmes brasileiros serão consumidos em maior quantidade do que os filmes estrangeiros, como acontece com as canções. E esse gosto, essa preferência, invadirá a economia, invadirá o mercado, como acontece com a nossa indústria fonográfica. Como estimular este acontecimento, como colocar filmes nacionais ao alcance de todos os brasileiros, e não apenas como um evento raro, mas com certa continuidade, é, também cristalinamente, o grande desafio, mas um desafio que nos parece de bom tamanho para um governo que se propõe a mudanças substantivas em todos os setores basilares da organização social e aposta no fator cultural como um motor das transformações e tem plena consciência do papel das indústrias culturais no xadrez da globalização. É uma tarefa extremamente trabalhosa, gigantescamente extensa e quatro anos são um período ameaçadoramente estreito para tal façanha, mas temos de fazer isso, é o nosso compromisso histórico, o que só será possível com o apoio majoritário da população, condição que também se aplica aos outros grandes projetos do governo Lula, mormente o mais importante deles que é o Fome Zero.
Estão sendo projetadas várias ações no sentido de mostrar filmes brasileiros a milhões de pessoas que não podem vê-los porque estão longe deles e dos canais de televisão pagos ou porque não podem pagar ingresso. Estas ações incluem desde procedimentos tradicionais como cinema móvel e mostras ambulantes até a montagem de um circuito popular de exibição cinematográfica, com preços não superiores a dez por cento dos ingressos comerciais. Estuda-se a transmissão instantânea de filmes para vários pontos, via satélite, fazendo uso de centenas de receptores do governo, e a utilização de espaços alternativos para exibições, como as Bases de Arte e Cultura propostas pelo presidente da República e as dez mil salas de aula do SESI. Projeta-se, em consonância com o Ministério da Educação e instituições privadas, a exibição regular de filmes e instalação de cine-fóruns nas escolas e universidades.
Mas o veículo exponencial desse vasto plano, desse enorme desejo, será a televisão e, neste sentido, a idéia é re-dimensionar a rede pública de tv. Projeta-se a instalação e operação de uma Rede Pública de Televisão lastreada em cerca de mil canais culturais, educativos, universitários e comunitários existentes no país, a ser operada com participação e co-responsabilidade da sociedade.
Essa ação dirigida à sociedade, com a perspectiva de alimentar a adoção do cinema brasileiro pelo povo brasileiro, coordenada pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura e a ser implementada em um esforço pluri ministerial, não produzirá qualquer tipo de sombreamento sobre as providências que serão (e que estão sendo) concretizadas no que concerne ao mercado, no que se refere à economia audiovisual, cuja administração e desenvolvimento estão sob a responsabilidade da Ancine, que atuará segundo normas e estratégias bem mais inteligentes e ousadas do que as utilizadas até o momento – e sobre as quais teremos o prazer de ouvir nas palavras do presidente da Agência Gustavo Dahl. O incentivo e fomento à produção e à exibição serão incrementados e a Agência labutará dia após dia na ampliação da presença de nossos filmes nas salas de exibição e na televisão aberta e a cabo.
O governo considera que estes dois movimentos, estas duas interferências – na sociedade e no mercado – são complementares e retro-alimentadores durante todo o processo de envolvimento social, da grande inclusão audiovisual a que se propõe. Os dois movimentos são gerados a partir da Secretaria do Audiovisual (a sociedade) e da Ancine (a economia), ambos sob o teto do Ministério da Cultura, que está se aparelhando para fazer face às especificidades e as contingências das indústrias culturais. Estamos tentando superar a esquizofrenia que sempre atanazou o fazer audiovisual, a dicotomia arte/indústria, rompendo as falsas fronteiras, substituindo o ?ou? pelo ?e?, como disse Dahl: não se trata de arte ou indústria e sim de que o cinema, a expressão audiovisual, é arte e indústria. Assim sendo, a Secretaria do Audiovisual e a Ancine são o espírito e o corpo do mesmo ser, da mesma criatura, as duas faces da mesma moeda.
A mim me toca, pois, como Secretário do Audiovisual, expandir e aprofundar a cultura audiovisual por todo nosso território, das periferias das grandes cidades aos mais longínqüos e miseráveis rincões do país, com a dupla intenção de oferecer condições para que todos os brasileiros exerçam o direito constitucional de acesso aos bens culturais, aos seus bens culturais, e de possibilitar um caso de amor entre o homem brasileiro e o seu cinema.
De recursos precisamos, e muito. Estamos na persiga, há gestões para o aumento da dotação orçamentária do Ministério da Cultura, contamos com um montante considerável oriundo das leis de renúncia fiscal utilizadas pelas empresas estatais, estamos criando a Loteria Cultural, a arrecadação a ser feita pela Ancine é outra fonte nova e promissora, já iniciamos a busca em instituições internacionais. É difícil mas possível.
Termino expondo as seis linhas programáticas da Secretaria do Audiovisual, na esperança de que esta apresentação possa arredondar-se com maior clareza.
1. Difusão.
Com o objetivo de contribuir substantivamente para a inclusão audiovisual do povo brasileiro, a Secretaria do Audiovisual promove, estimula e fomenta a exibição de filmes nacionais em áreas e para grupos sociais carentes do direito constitucional de acesso aos bens culturais. Esse acesso deve ser operado por meios tradicionais, por meios tecnológicos modernos e, principalmente, através da rede pública de televisão.2. Promoção.
Com o objetivo de promover o produto audiovisual brasileiro dentro e fora do país, a Secretaria do Audiovisual aporta recursos e estímulos aos festivais e mostras nacionais e a ações que aumentem a visibilidade de nossa produção em festivais e mostras internacionais. Também estimula congressos, seminários, fóruns e eventos similares, publicações, exposições, sites e programas de televisão que aportem divulgação e/ou reflexão ao audiovisual brasileiro.3. Criação.
Com o objetivo de estimular a criação artística, que é a semente da produção cinematográfica e televisiva e da indústria audiovisual, a Secretaria do Audiovisual fomenta projetos de realização cinema/tv direcionados a primeiros filmes, curta e média-metragens, documentários, ensaios, animação, telefilmes, filmes de baixo orçamento, trabalhos de tese de escolas de cinema e roteiros. O Centro Técnico Audiovisual-CTAv oferece suporte técnico a esses programas e a projetos de produção independente.4. Patrimônio e Pesquisa.
Com o objetivo de preservar e ativar o patrimônio audiovisual nacional, um dos elementos basilares da nossa identidade cultural, a Secretaria do Audiovisual incrementa o restauro e conservação de filmes, programas de tv, iconografia e documentação audiovisuais, bem como a exibição de obras restauradas. Mantem e supervisiona as atividades da Cinemateca Brasileira. Desenvolve estímulos à reflexão crítica e à pesquisa e uma política de publicação e divulgação dos trabalhos dos pesquisadores, críticos, historiadores e ensaistas.5. Formação.
Com o objetivo de elevar a qualidade da formação profissional e estendê-la pelo território nacional, a Secretaria do Audiovisual apoia projetos voltados para a descentralização e que integrem capacitação técnica e humanística, pesquisa e produção. O Centro Técnico Audiovisual-CTAv funciona como um núcleo de capacitação e reciclagem, sem prejuizo de sua interface com o estímulo à produção independente.6. Relações Internacionais.
Com o objetivo de subsidiar o Ministério das Relações Exteriores, no que se refere aos interesses brasileiros no âmbito das negociações internacionais, a Secretaria do Audiovisual mantém uma assessoria permanente sobre a matéria, em constante contato com o setor, além de atuar, em conjunto com a Agência Nacional de Cinema (Ancine), na Conferência das Autoridades Cinematográficas Ibero-americanas-CACI e nos fóruns pertinentes.
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