Setor complexo que passa por grande crise financeira e de rumos receberá ajuda do BNDES para se reinventar. Financiamentos devem ser equivalentes ao que o Banco já oferece ao audiovisual
O Brasil é conhecido em todo o mundo pela sua diversidade musical. O setor, o mais movimentado da economia da cultura no país, passa hoje por grandes dificuldades. Embora as novas tecnologias da informação tenham possibilitado maior acesso aos produtores (nunca foram lançados tantos álbuns de forma independente), a facilidade de cópias virtuais e de cedês e devedês gerou prejuízos enormes à grande indústria do entretenimento. Resultado: hoje grandes gravadoras como a Warner Music não mantêm mais de vinte artistas ou bandas em seu catálogo no país.
A música se reinventa com produtoras e gravadoras independentes e, diretamente, com o trabalho dos músicos. A carência de investimentos e a falta de planejamento e entendimento do setor, no entanto, dificultam o desenvolvimento. Assim, o Ministério da Cultura realizou em fevereiro, em Recife, a Feira Música Brasil 2007 (saiba mais – s://cartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13302), com o objetivo de difundir a qualidade e a diversidade da produção brasileira. O evento, que deve se tornar anual, pretende ser a grande vitrine da música brasileira e de seus produtos, atraindo compradores de dentro e de fora do país.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), segundo maior patrocinador da cultura no Brasil, foi um dos organizadores do evento. Seu intuito era conhecer as especificidades desse complexo setor da indústria criativa, para criar um plano de financiamento apto a contemplá-las. À frente do desafio, a chefe do Departamento de Economia da Cultura do Banco, Luciane Gorgulho, explicou à Carta Maior e à Cultura e Mercado os tipos de incentivo e as linhas de financiamento que o BNDES oferece e os planos para reinventar o mercado fonográfico brasileiro.
Carta Maior – Esse pensamento de “economia da cultura” é uma discussão recente no Brasil, apesar de o setor ser um dos que mais cresce no mundo. Por quê?
Luciane Gorgulho – É um fenômeno mundial. Foi em 2001 que a expressão surgiu pela primeira vez, com o livro de um especialista australiano. Alguns organismos internacionais dissiparam a idéia, e o Ministério da Cultura, com Gilberto Gil, embarcou na proposta. O Fórum Cultural Mundial concretizou essa idéia, e o MinC criou um programa específico, o Programa de Desenvolvimento da Cultura. Assim, identificamos que a cultura pode ser um instrumento de desenvolvimento fundamental. É até curioso que isso tenha nascido nos países mais desenvolvidos. Basta ver a produção cinematográfica dos Estados Unidos. Sendo o BNDES o principal braço de financiamento de longo prazo do país, começamos a pensar nisso.
CM – Que modelos de financiamento e patrocínio na área de economia da cultura o BNDES oferece?
LG – O BNDES há muitos anos apóia as atividades culturais, mas era sempre através de patrocínio, o mecenato. Desde 1985, eram promovidos shows abertos à comunidade na sede do Banco no Rio de Janeiro. Depois disso, começamos a apoiar o cinema. No início não era nem por edital, só depois desenvolvemos o sistema de edital que utilizamos hoje, parecido com o da Petrobrás. Isso começou em 1995 e, dois anos depois, o BNDES começou a apoiar o restauro do patrimônio histórico brasileiro, através da Lei Rouanet. Em um primeiro momento, trabalhamos com as igrejas barrocas e hoje apoiamos qualquer patrimônio tombado pelo IPHAN (www.iphan.gov.br). Isso pode ser feito individualmente, conforme cada caso, ou em contratos com as cidades pólos. Isso porque é preciso discutir como um todo. Às vezes, a reforma de uma única igreja não faz muita diferença. Mas a revitalização de vários patrimônios históricos de algum lugar pode alavancar o potencial turístico de uma região. Já fizemos isso em Olinda, Ouro Preto e Rio de Janeiro. Vamos começar outros, mas ainda não escolhemos as cidades que serão beneficiadas. Além disso, patrocinamos também a preservação de acervos museulógicos, bibliográficos e arquivistas. É o restauro do conteúdo histórico, além dos prédios patrimoniais. Até hoje já foram investidos mais de R$ 200 milhões. Este ano, o patrimônio histórico recebe cerca R$ 21 milhões, R$ 12 mi para o cinema e R$ 6 mi para acervos.
CM – Isso tudo em mecenato. E os financiamentos?
LG – Em julho do ano passado foi criado o Departamento de Economia da Cultura, cuja chefia eu assumi, para administrar os patrocínios e criar mecanismos de financiamento para o setor cultural. O termo “economia da cultura” vem aparecendo há um tempo para delimitar as indústrias ligadas ao setor. É um olhar não só pela questão da identidade, diversidade e expressão artística. O objetivo é pensar o desenvolvimento econômico. O BNDES quer incentivar esse setor, com o pensamento do governo de que a economia da cultura é um setor estratégico.
O primeiro programa criado foi o financiamento do audiovisual. Isso ocorreu porque era um setor que a gente já conhecia. Já tínhamos algumas linhas de incentivo a salas de cinema. Mas não estava adaptado ainda à realidade, pois não havia garantias. Como toda indústria criativa, o cinema não tem ativos reais, ativos tangíveis. Tudo é baseado em bens intangíveis, conhecimento, cultura. Nesse sentido, criamos o Procult para apoiar todo o setor audiovisual, baseado nas receitas que os setores geram. Hoje podemos vincular a nossa garantia até à receita de bilheteria, além do imóvel. Estabelecemos também taxas de juros mais baixas. A idéia do Procult era abrir para novos setores também. Nisso envolvemos até o financiamento de construção de estúdios, aprovado neste mês com R$ 7 milhões.
O próximo passo é a música. Por isso estivemos presentes de forma ativa na Feira Música Brasil 2007, em Recife. Lá pudemos conhecer um pouco da realidade do setor, que é muito complexo, e em breve devemos lançar algum programa de financiamento.
Além disso, o BNDES não faz investimento em fundos de capital de risco, mas, pela Lei do Audiovisual, o Banco investe no FunCine e tem interesse em investir em novos fundos que forem criados.
Além disso, existe o cartão BNDES, que na verdade é um investimento que o Banco já possui há 2 ou 3 anos, que cada vez mais vem sendo utilizado por todos os setores. O que estamos fazendo no caso dos setores culturais é estimular o credenciamento de fornecedores específicos deste setor. O cartão BNDES funciona como um cartão de crédito, e os clientes usam para comprar equipamentos etc. Já é pré-aprovado, há um limite que pode ser usado, a taxa de juros é pré-fixada e abaixo do preço de mercado. O esforço agora é de credenciar os fornecedores dos setores culturais. Já houve este esforço com o setor do audiovisual, depois vamos fazer com a música, de forma a levar esses produtos e atender esses setores culturais também. Resumidamente, o Procult passou a ter um orçamento de R$ 175 milhões até 2008 para o audiovisual, depois criaremos também um investimento para a música, que terá uma dotação suplementar.
CM – Mas ficará incluído no mesmo programa, no Procult?
LG – Sim, essa foi uma opção nossa, de não ficar criando vários nomes e projetos diferentes.
CM – Há algumas semanas, na Agência Brasil, foi publicada uma entrevista com a Sra. sobre a ocasião da Feira da Música, quando seria lançado esse programa de financiamento para a música. Já tem alguma dotação orçamentária específica? Seria aproximadamente o equivalente à do audiovisual, como na notícia? Existe alguma previsão?
LG – Não, nem foi anunciado nada na Feira da Música. Nós estávamos usando a Feira, o BNDES até patrocinou, para conhecer melhor esse setor, pois cada setor tem características diferentes. Por exemplo, a questão dos recebíveis do cinema: com a música não funciona da mesma forma, pois não há bilheteria, não há uma base de shows na parte amadora. Então, nós estamos conhecendo melhor o setor para criar o programa já com características que atendam as especificidades. Por isso, não temos uma data ou prazo, mas pretendemos fazer isso o mais rápido possível. Estamos em reuniões com o setor, porém ainda não temos uma dotação prevista. Eu suponho que seja talvez semelhante à do audiovisual, mas ainda não temos essa codificação.
CM – Nesta primeira impressão, já passada a Feira, como vocês analisam esse setor? O que vocês acham mais fundamental: trabalhar com os produtores independentes, com os quais foi feita parceria na Feira da Música, ou são as grandes gravadoras com problemas financeiros que precisam de um aporte, ou o músico independente, que é o maior produtor musical hoje em dia no Brasil? Como vocês entendem que deve funcionar essa linha de financiamento? Qual é a primeira impressão de prioridade nesse setor?
LG – Nós não temos uma prioridade e nem precisamos, porque o orçamento de desembolso total do Banco é de R$ 70 bilhões: não deixa um problema de carência de recursos que o BNDES poderia oferecer ao setor. Agora é estabelecer condições para os financiamentos que os clientes possam tomar como financiamento, sem problemas. Mas em termos de uma análise, como você perguntou, nós sabemos que o setor da música está passando por uma grande transformação por conta da queda da venda de CDs fixos, por causa das vendas digitais e da pirataria, fixa ou virtual. Então, percebemos que é um setor que está precisando se reinventar, descobrir novas formas de comercialização do seu conteúdo ou ações associadas, adicionar valor agregado aos produtos que estão sendo feitos. Antes só existia o CD, agora deve ter um leque de produtos associados àquilo. As grandes gravadoras seriam talvez um foco, pelo fato de elas terem, nesse momento, de redirecionar seu planejamento estratégico e, para isso, precisarem de recursos. Da mesma forma, existem as distribuidoras, que têm de se adaptar às distribuidoras digitais com as músicas, e elas precisam crescer e também precisariam de recursos. As distribuidoras fixas sofrem também com as mudanças do setor. Há também as fábricas de discos que trabalham com um paradigma anterior, e teríamos de ver como elas responderiam a isso. A única coisa que você mencionou com a qual não acreditamos que haverá possibilidade de trabalhar é em relação aos músicos, pois o projeto não tem tradição de trabalhar com uma pessoa fixa. Existem pouquíssimas exceções com catadores de papel, mas é uma ação mais social. O BNDES tipicamente trabalha com empresas. Então, o nosso objetivo é fortalecer as empresas do setor.
CM – Vamos fazer um balanço da Feira. Vocês já desenvolveram, fecharam alguns negócios e anunciaram algumas coisas, como a questão da TV MPB …
LG – Isso não foi uma ação tão específica que fizemos na Feira, foi uma ação que chamamos de Venture Forum de negócios. É uma roda de negócios entre empresas e investidores, tipicamente investidores de capital de risco. Mas essa não é uma ação que o BNDES desenvolve regularmente, foi uma oportunidade da Feira da Música. Nós éramos os patrocinadores e gostaríamos de ter um contato maior com o setor. Até pelo BNDES não ter uma linha de financiamento para atender ao setor, gostaríamos de colocar as empresas em contato com os investidores que poderiam se interessar em capitalizar os negócios. Então, nós fizemos um trabalho inspirado nessas rodas de negócios, mas lá o foco é para as empresas de tecnologia. O objetivo deste trabalho foi trazer as empresas e dar algum tipo de assessoria a elas no seu plano estratégico, como negócios (os números da empresa, qual estratégia seguir para sua sobrevivência no novo paradigma, qual a necessidade de recursos para investimento, quanto ela precisaria captar e até onde ela consegue chegar com isso). Assim, dar toda uma assessoria para essas empresas terem condições de captar investidores, e também para o BNDES poder conhecer melhor as empresas, suas dificuldades e características, para formatar nossa linha de financiamento. Porém, só para ressaltar, essa foi uma ação muito interessante por essa empresa (TV MPB) e não só com gravadoras. Teve empresas de softwares, de ensino de música, redes de canais de MPB para a televisão, então não foram só gravadoras tipicamente.
CM – Saiu uma notícia nessa semana sobre o apoio do financiamento do BNDES à teledramartugia. Isso seria um diferencial aos produtores independentes, que poderiam financiar até 90% do projeto de novelas ou mini-séries. Como vai funcionar exatamente essa questão das novelas e mini-séries?
LG – Realmente, no final do ano passado, o BNDES aprovou um programa grande para a TV digital, que envolve a parte de infra-estrutura, fornecedores e conteúdo. Ainda não houve uma divulgação ampla, ainda está sendo divulgado pelo presidente Lula. Haverá o financiamento para o conteúdo, considerando-o uma obra audiovisual, como filmes para a TV, documentários, séries. O Procult, na verdade, já permitia o financiamento deste tipo de obra audiovisual, a diferença é a questão justamente da TV digital.
Carlos Gustavo Yoda – Carta Maior
Conteúdo desenvolvido em parceria editorial com a Agência Carta Maior