“Negar o aspecto comercial da cultura é fugir do tema sem encontrar soluções”Entre os dias 10 e 14 de Setembro acontece em Cancún o quinto Encontro Ministerial da Organização Mundial do Comércio, onde serão discutidas as provisões a regularem o mercado mundial nos próximos anos. Com a inclusão de Cambodia, já aprovada no dia 11 deste mês, e a quase certa inclusão do Nepal, a OMC passará a contar com 148 membros, expandindo seus quadros aos países do grupo menos desenvolvidos do mundo.

Ainda há, claramente, uma atenção maior da OMC aos países mais ricos do mundo. O número de reclamações enviadas por Brasil, Ìndia, China e México, por exemplo, que é um indício da participação dos países na Organização, foi de 53 desde de 1995, enquanto os Estados Unidos apresentaram, sozinhos, 75 no mesmo período. No entanto, a tendência iniciada pela Rodada de Doha, a partir de 2001, em se atentar, ao menos formalmente, aos países não plenamente desenvolvidos se intensifica. Naquele ano já foi assinado um acordo especial para os países em desenvolvimento e a partir de então buscam outros desdobramentos na Organização.

No atual encontro de Cancún, como estratégia de fortalecimento de seus requerimentos, o Brasil, com outros países incluindo China e Índia, formou o grupo dos 21, que busca garantir a quebra dos protecionismos e subsídios agrícolas praticados especialmente pelos países da União Européia e Estados Unidos. A pressão para mudanças de perspectivas dentro da OMC para favorecer os países do grupo dos 21 é grande (do mesmo modo que o movimento oposto) e vem conquistando aliados. A fala do ministro Celso Amorim confirma isso, ao afirmar que a OMC corre o risco de se tornar irrelevante caso não acate as reclamações dos países em desenvolvimento. A ameaça procede, pois uma intransigência dos delegados pode acarretar a formação de acordos bilaterais, que não envolvam o organismo, e que satisfaça apenas partes contratantes.

A cultura parece, neste ano, um assunto subordinado a grande temática da agricultura. No entanto, sua discussão é fundamental quando partimos para a análise de comércio de serviços e é necessário que a força conseguida pelo grupo dos 21 também seja aproveitada pelo setor cultural. De início, devemos perceber a relevância da discussão.

A cultura passou a figurar na pauta de discussões com a criação do Acordo Geral de Comércio em Serviços (GATS). Isso porque o acordo previu os serviços culturais como parte de sua esfera regulatória, reservando aos países que aderissem positivamente a sua lista as regras de liberalismo comercial que envolve a OMC. Assim, uma das regras primárias desse acordo é a cláusula do Most Favoured Nation (MFN) pela qual um país não pode ditar vantagens comerciais em serviços a um país e a negar a outro.

Como sistemática, os países membros da OMC podem apresentar seus indicativos de discussão até uma determinada data, no ano anterior o encontro do GATS. A partir dessas reivindicações, que são ou não acatadas pela OMC, forma-se a lista de serviços que deverão figurar nas regras da Organização.

Até o encontro de Cancun estávamos sendo regulados pelas determinações ocorridas em Doha, 2001, e vale uma breve divagação sobre os posicionamentos mais importantes no que se refere ao audiovisual.

Em intenções enviadas à OMC em 2000, três países, especialmente, demonstraram suas visões quanto aos serviços culturais, sendo os audiovisuais os mais relevantes na questão. De um lado posicionou-se a França, que cunhou o termo hoje tão reconhecido de ?exceção cultural?. De acordo com essa visão, o governo francês pretendeu entender a cultura como um serviço peculiar, não podendo ser tratado como apto a regras comuns de comercialização. No fim da linha, propunha a França, que teve o Canadá como seu grande aliado, que a cultura não mais deveria ser tratada na esfera da OMC, devendo-se criar uma outra esfera internacional para o assunto ou dar à Unesco a exclusividade de tratamento. Esse posicionamento firmou a visão francesa e angariou alguns adeptos (o Brasil chegou a manifestar apoio informal e depois recuou), mas entrou em colisão por negar um aspecto básico da questão: o comércio.

Na verdade, o que se discute não é cultura em si, mas comércio de serviços, no qual a cultura é um elemento. E a esfera de discussão para isso não pode ser outra senão a própria OMC. Negar o aspecto comercial da cultura é fugir do tema sem encontrar soluções. A Unesco não tem função regulatória, nem capacidade de sanção, o que a desabilita de tratar a cultura em sua variante comercial, muito embora seja fundamental quando se trata de cultura como bem humano. Portanto, é necessário que se encontre, na OMC, um tratamento especial à cultura, que leve em conta suas peculiaridades, suas necessidades, sem negar o aspecto comercial.

Em oposição ao posicionamento francês, situam-se, especialmente os Estados Unidos e o Japão, que entendem o serviço cultural como um comércio qualquer devendo ser regulado pelas regras liberais que imperam na OMC. As conseqüências dessa posição são óbvias, levando ao enfraquecimento dos países em desenvolvimento, limitando a prescrição de normas nacionais de proteção a suas culturas.

Por fim, a terceira posição que foi apresentada, pelo Brasil, argumentava ser a OMC a esfera internacional apta para a discussão do tema, mas reivindicava a adoção de regras anti-dumping, evitando, o que entendia ser, a enxurrada de produtos internacionais que invadem nossos mercados já com suas produções pagas. Em outras palavras, o que os diplomatas brasileiros entendiam, conforme foi apresentado à OMC em 2000, é que fosse entendido como dumping a prática de se enviar, em um pacote único com um filme âncora, diversos produtos audiovisuais que já tiveram o retorno de receita desejado, tomando o lugar da produção nacional. A posição brasileira foi negada, pois não há previsão no GATS de regras anti-dumping.

Ainda sim, no ano seguinte, 2001, o Brasil, ao contrário da França (que também não teve suas reivindicações acatadas) e em acordo com os Estados Unidos, incluiu seus serviços audiovisuais na lista positiva do GATS. Neste ano de 2003, no entanto, o Brasil não se manifestou quando devia, perdendo o termo da inclusão.

É importante que se compreenda os benefícios e os malefícios do posicionamento do Brasil em relação a 2001.

O comércio internacional de serviços já representa no Brasil 60% do total de nossas relações comerciais. Em países europeus e mesmo nos Estados Unidos esse total representa mais de 80%. De um modo geral, a tendência clara é uma superação do comércio de produtos pelo de serviços em todo o mundo. Segundo a Unctad, em 20 anos o comércio de serviços cresceu 283% contra 197% de produtos, representando em 2000 1,4 trilhões de dólares. O Brasil, portanto, tem o interesse de ver sua fatia de serviços comercializados internacionalmente aumentar.

Ainda, se olharmos para dados estritamente culturais temos que esse comércio representava no Brasil, em 1997, 6 bilhões de dólares (0,8% de nosso PIB), enquanto em 1980 era de 422 milhões (0,2% do PIB). Um crescimento estrondoso, sem dúvida. No entanto, desse total, mais de 65% refere-se a importações. Portanto, a intenção brasileira de exportar é extremamente plausível.

Dos serviços culturais que o Brasil exporta, os audiovisuais são os que mais crescem (segundo relatório do Bacen). As exportações de merchandising, que se relacionam com as telenovelas da rede Globo, exportaram sozinhos, fora questão de direito de propriedade, entre 99 e 2001, 1,5 bilhão de dólares. Desde de 73 a rede Globo já exportou 313 programas para 130 países. Hoje, a Globo atinge, fora do Brasil, um público de 150 milhões de pessoas em 65 países.

Os filmes brasileiros a partir do fim da década de 90 passaram a ocupar diversas salas pelo mundo, angariando prêmios e público internacionais. Só este ano, o Grupo Novo (que distribui filmes brasileiros pelo mundo) já vendeu mais de 60 títulos nacionais para Estados Unidos, França, Argentina, Cuba, Rússia, Alemanha, China e para pelo menos outros dez países.

No entanto, o outro lado deste processo pode ser extremamente maléfico. Muito embora com um mercado em crescimento, o cinema nacional ocupa apenas 20% das salas de exibição no país e apenas 10% do total de público dirige-se a filmes nacionais. São números, como se nota, extremamente baixos para nosso potencial. Ainda, é muito claro que a retomada do cinema nacional deveu-se em grande conta ao surgimento das leis de renúncia fiscal (pelos governos federal e estaduais) e por apoios oficiais (como da Fundacine no Rio Grande do Sul).

Percebe-se que o mercado brasileiro de audiovisual está em processo de afirmação. Não há uma indústria real de cinema e a atuação do Estado em proteger esse mercado, dando-lhe estruturas, é fundamental. Nesse sentido, entra-se em choque com a tendência liberal da OMC, que coíbe práticas protecionistas em detrimento a entrada de serviços internacionais, incluindo os audiovisuais. Numa perspectiva realista, a adoção de regras da OMC leva a um fortalecimento da entrada de serviços de países desenvolvidos no Brasil, limitando a diversidade de produção e distribuição de filmes, levando ao monoculturalismo estético ao público nacional.

Isso é prejudicial especialmente para os mercados em desenvolvimento, como o Brasil, e precisa fazer parte das ações do grupo dos 21. A nova força reunida por esses países deve entender a oportunidade de desenvolvimento que o comércio internacional de serviços culturais pode representar, mas também a ameaça à diversidade cultural quando não regulado estrategicamente. A Rodada de Cancún que se inicia dia 14, Genebra (sede da OMC) deve ser o palco de uma reviravolta na perspectiva de comércio cultural, respeitando suas peculiaridades e preservando as expressões nacionais com a criação de um novo acordo específico para a cultura.

A economia brasileira tem o desejo legítimo de se incrementar e gerar divisas, mas nossa produção cultural ainda precisa de estruturas sólidas que permita seu desenvolvimento pleno. Estamos fadados a enfrentar o mercado, que tanto receamos, e o que nos resta é nos armar com alianças e bons argumentos. Nosso exército começa a se formar em Cancun e irá marchar para Genebra. A hora é própria para apoiá-lo e fazer a cultura parte dessa legião.


Michel Nicolau é consultor da Brant Associados, com especialização em Políticas Culturais na Inglaterra.

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Michel Nicolau


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