O autor de “O Brasil pode ser um país de leitores?” critica as ações desencontradas do MEC para distribuição de livros nas escolas

Com o nome de Programa Nacional da Biblioteca na Escola, o MEC desenvolveu, desde 2001, uma série de ações que consistiam em doar  coleções de livros para os alunos de quarta e oitava séries do ensino  fundamental. No âmbito da educação de jovens e adultos (EJA), o  programa agora é conhecido como Literatura para Todos.

Critiquei essa prática de distribuir livros, no livro “O Brasil pode  ser  um país de leitores?”, por várias razões: a) não constituía  realmente uma  biblioteca na escola, com a diversidade dos títulos  implícitos nesse  conceito; b) substituía a prática educativa de  ensinar os alunos a usar  biblioteca pela ilusão de que alguns livros  doados podiam substituí-la; c) desprezava a imensa diversidade da  oferta de livros infantis e juvenis existentes no mercado; d) exigia  pesados investimentos das editoras, limitando a participação das  pequenas e médias (comprovado pelo fato de  que apenas as grandes  editoras se beneficiaram da “seleção”); e) desrespeitava as diferenças  de projetos pedagógicos.

O ministro Tarso Genro e sua equipe mudaram radicalmente o programa: abriram inscrições para análise de livros já existentes nos catálogos, selecionaram quinze acervos de vinte títulos cada, para posterior  escolha pelas escolas. Os livros estão na etapa de serem entregues às  escolas, para acervo de suas bibliotecas e uso nas salas de aula. Os  alunos poderão tomá-los emprestados, é claro, como em qualquer  biblioteca.

Foi um enorme avanço, que pode ainda ser aperfeiçoado, e representava uma ruptura com o modelo anterior. Mas parece que uma parte do MEC não  sabe o que a outra está fazendo. A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) lançou em dezembro edital para o  1º Concurso Literatura para Todos. Serão premiados oito textos que  serão editados pelo próprio MEC. Um enorme retrocesso.

O sr. Tancredo Maia Filho, coordenador-geral de alfabetização do MEC, afirma que “não temos livros voltados para esse público e por isso  decidimos realizar o concurso”. Cada autor “premiado” ganhará R$ 10  mil pela cessão de direitos para a publicação de uma edição inicial de  300 mil exemplares e quaisquer outras reedições por um prazo de cinco  anos.

O Brasil tem mais de 250 mil títulos no catálogo ativo das editoras. Dizer que não existem títulos adequados e voltados para esse público é inconcebível. A Secad simplesmente não absorveu o que a Secretaria de Ensino Fundamental começou a fazer. O programa Brasil Alfabetizado  quer dar autonomia ao “neoalfabetizado” desde que este leia o que o  MEC acha bom. Grande autonomia, que de fato é um enorme desrespeito e  uma expressão de paternalismo. Os “neoalfabetizados” são reduzidos a  cidadãos de segunda categoria, e compartem essa situação com todos os  que não podem comprar livros e não os encontram nas bibliotecas públicas.

O prêmio de R$ 10 mil oferecido aos autores é muito inferior ao que receberiam os autores caso lhes fosse paga a tradicional porcentagem  de 10% sobre o preço líquido de aquisição de livros do MEC junto às editoras. Sem contar que essa “fortuna” se refere tão somente à primeira tiragem das obras. Sabe-se lá quantos livros podem ser  publicados em cinco anos…

Finalmente, o MEC se mete na seara de virar editora, contrariando a prática já longamente estabelecida de adquirir as obras —selecionadas  e avaliadas pelo ministério — dentre as disponíveis no mercado. Começa agora por um “concurso” e daqui a pouco poderá surgir uma comissão  para elaborar o livro didático único, sempre usando o mote do dever do  Estado. E dane-se a diversidade de opiniões, abordagens e metodologias  de ensino.

O programa é um desrespeito para com os “neoalfabetizados”, por não reconhecer sua autonomia para se dirigir a uma biblioteca e escolher o que quiser ler — e estas sim, não são atualizadas e vibrantes porque o Estado não cumpre seu dever; é um desrespeito para com os autores, tratados como diletantes que não serão condignamente remunerados por  seu trabalho dentro dos padrões mínimos de retribuição de direitos  autorais; é uma ameaça à diversidade e porta entreaberta para a  transformação do MEC em editora e para a adoção do livro único.

Felipe Lindoso


Antropólogo, jornalista e consultor de políticas públicas para o livro e leitura, é autor do livro "O Brasil pode ser um país de leitores?"

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