Este mês fez ferver a sociedade paulista há 80 anos atrás, mas uma fervura incômoda, desencaixada e mal-vista. Durante três dias do mês de fevereiro, que derretia a cidade, realizaram-se conferências, recitais, concertos e muita polêmica. Era uma proposta de renovação estética, atenta para uma impressão mais nacional, com a linguagem da velocidade, dos cortes, das incisões para dialogar com uma realidade social marcada pela industrialização, urbanização e individualização das relações.
“Quem teve a idéia da Semana? Por mim não sei quem foi, só posso garantir que não fui eu. O mais importante era decidir e poder realizar a idéia. E o fautor verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado. E só mesmo uma figura como ele e uma cidade como São Paulo, poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana”, como afirma Mário de Andrade 20 anos após a semana.
Foram chamados de os três dias de guerra no Municipal, pois quem se alçou na história literária naqueles anos 20 teve que se provar numa batalha intensa no salão do teatro, nas escadarias e nos saguões do Teatro Municipal de São Paulo, símbolo da burguesia próspera cafeeira, encerrada nos casarões da cidade. Mas o ideal da modernidade iria empurrar os jovens para se erguerem acima das vaias que se seguiam a cada leitura, e dizia Di Cavalcanti: “Sugeri a Paulo Prado a nossa semana, que seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulistana”.
Ao apresentar a exposição de artes plásticas, o então diplomata Graça Aranha afirmou: “a curiosa e sugestiva exposição que hoje inauguramos é para muitos um aglomerado de horrores”, além de outros horrores, descritos como “uma poesia liberta, uma música extravagante mas transcendente”, que “virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas formas do passado”.
As vaias aumentam quando Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida declamam seus poemas. Durante a récita de Ronald, alguém late. O poeta pára e diz: “Há um cachorro na sala, mas não está do lado de cá”.
E se seguiram os diversos tumultos, nas récitas de Oswald e Mário de Andrade, na palestra de Menotti del Picchia, no concerto de casaca e chinelos de Villa-Lobos. Dizia-se que no último dia de eventos, dedicado à música, havia uma cesta de batatas caso os poetas aparecessem. E terminava assim a Semana de Arte Moderna de 1922, como diz um dos participantes, René Thiollier, “o banzé mais divertido deste mundo”.
Mas sentimos que precisamos saber do real significado do que impressionou há 80 anos e nos encanta daí em diante. O sentido de internacionalizar esteticamente as artes brasileiras promoveu a definitiva renovação da linguagem, da abordagem, força e intensidade da nossa literatura. Não se tratava simplesmente de aplicar recursos lingüísticos novos, mas de renovar o próprio repertório imagético de nossos autores, voltado a um umbigo há muito escondido de nós mesmos.
Segundo o próprio Mário de Andrade, “o modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a intelligensia nacional”.
O sentido mais popular que um movimento intelectual pode ter. E a isso reconhecemos o mérito na índole e no produto. Entretanto, isso não nos redimiu de nós mesmos, da nossa arraigada miséria que encolhe nossos horizontes e nos turva a vista. Nossa pobreza assusta, mete medo e bronca, ao mesmo tempo que a pobreza cultural espreme nossos ímpetos do que quer que seja, de renovarmos ou de continuarmos um projeto.
E Mário de Andrade arremata: “em compensação a burguesia semiculta (a aristocracia era inculta: e já irresponsável na sua decadência de então), essa espécie de intelectualidade réptil que abastece as cidades e acaba onde as cidades acabam, com que violência de fulgir e se defender, arremeteu contra nós! Hoje, é irônico evocar os nomes que brilharam lunarmente, iluminados pelo brilho próprio de um estado de espírito coletivo. Tanto os contra como os favoráveis. Destes, os que não desapareceram na poeira de outros caminhos, tornaram-se figuras visíveis da inteligência nacional. Dos contrários, os que tinham valor acabaram aceitando, e muitos aderindo ao movimento renovador. Os outros continuaram pura inteligência de abastecimento urbano. O nome deles acaba onde a cidade acaba”.
É o impulso da força individual potencializada pelo movimento coletivo servindo de mote para o imaginário brasileiro.
Priscila Akemi Beltrame é advogada, formada pela Faculdade de Direito da USP, especializada em propriedade intelectual e relações internacionais pela London School of Economics. Conclui formação em letras pela FFLCH-USP. É free lancer do jornal Gazeta Mercantil.
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Priscila Beltrame