?O mercado musical sempre foi norteado pelo lucro e não por uma mescla de receita com materialização cultural e preservação de tradições, como deveria ser. O castigo não tardou?É de amplo conhecimento que a revolução ensejada pela Era Digital afetoudrasticamente os negócios do entretenimento no mundo, em especial o segmentoda música. A possibilidade de baixar músicas ao toque de um “mouse” a partirde um computador pessoal em qualquer parte do mundo, gratuitamente, levouao desespero a indústria estabelecida do disco, que efetivamente se viuprivada de uma hora para outra de milhões de dólares em receita de vendas.

Por outro lado, esta verdadeira revolução tecnológica desnudou a verdadeiraface de um mercado desigual, extremamente capitalista e que durante décadasse locupletou em cima do aproveitamento econômico da criação intelectualalheia, superfaturando e malversando royalties legítimos de compositorese artistas no mundo inteiro.

Capitaneado pelas grandes multinacionais (as “Big Five”), Universal Music,Warner Music, Sony Music, EMI e BMG, o mercado musical sempre foi norteadopelo lucro e não por uma mescla de receita com materialização cultural epreservação de tradições, como deveria ser na realidade. O castigo não tardou.O caso Napster, que foi o início do grande terremoto que se abateu sobrea indústria, é apenas um das dezenas de exemplos de sítios existentes na Internet dedicados ao download gratuito de músicas.

Com a sombra da pirataria gradualmente estendendo seu largo manto em quase todos os mercados do mundo (o Brasil já figura entre os cinco países com o maior índice de pirataria de CDs) e a corrida tecnológica rapidamente apontando para a substituição do CD como meio de transporte musical em menos de cinco anos, é urgente que sejam adotadas medidas definitivas para o controle do Direito Autoral na Grande Rede, sem contudo incorrer em violação de direitos constitucionais garantidos.

É certo que o incremento das discussões sobre o Direito Autoral resultante da explosão da Internet ? e por conseguinte da multiplicação exponencial da capacidade de reprodução quase infinita de qualquer obra intelectual em questão de segundos ao redor do mundo ? veio apenas fortalecer a assimilação por parte de compositores, artistas e intérpretes do verdadeiro feixe de Direitos que lhes assiste pelas leis autorais internas dos seus países e das convenções internacionais em vigor sobre a matéria, contribuindo sobremaneira para ampliar a visão real que podemos ter hoje do universo legal que fundamenta o setor, antes sempre imerso na obscuridade para deleite dos produtores fonográficos e capitalistas investidores do segmento.

Por outro lado, a Internet, com sua vertiginosa possibilidade de comunicação global, deixou compositores, artistas e intérpretes muito mais expostos à usurpação dos seus direitos face à inexistência de mecanismos jurídicos de proteção. Estudos constantes em andamento realizados por especialistas em Direito Eletrônico, acenam para um cenário misto, em que leis hoje já existentes seriam complementadas e adaptadas com novos dispositivos legais capazes de lidar com as novíssimas possibilidades tecnológicas viabilizadas pela Internet a partir de criações intelectuais em trânsito no ciberespaço.

Tribunais virtuais, legislação supranacional e a implementação de convenções multilaterais são aspectos que vêm ganhando força nos estudos hoje em andamento por advogados, juízes, especialistas em tecnologia de informática e criadores intelectuais. Tais esforços certamente resultarão no aperfeiçoamento do ordenamento jurídico existente, de forma que se possa lidar com as múltiplas possibilidades de contrafação, reprodução ilegal e fraude aos Direitos Intelectuais.

Migrando do macrocosmo do mercado mundial da música para o microcosmo brasileiro, existem ainda duas questões importantes que foram mencionadas nas discussões entabuladas no Fórum Mundial Social de Porto Alegre, a saber o ?jabá?, o incentivo fiscal do ICMS para a música e o ECAD.

O ?jabá?, uma prática corrente no mercado brasileiro que foi herdado do mercado americano no início da década de 60, consiste no pagamento de favores a programadores e proprietários de estações de rádio, geralmente via dinheiro ou bens materiais, para que determinada(s) música(s) ?estourem? na programação, com o conseqüente reflexo direto nas vendas do produto. Considerado como o grande vilão causador da atual situação do mercado brasileiro, o ?jabá? é, na verdade, um elemento desaglutinador da classe artística, fecha as portas de acesso de artistas estreantes às ondas hertzianas e condena a grade cultural do segmento a baixíssimo nível cultural e artístico em um país com dimensões continentais como o Brasil e com múltiplos gêneros e tendências musicais. Norteado pela sanha de acumulação de lucros da indústria fonográfica ? a grande estimuladora da prática do jabá através de mecanismos às vezes até ilegais oriundos de incentivos fiscais que deveriam ser empregados no desenvolvimento de novos talentos nacionais ? o mercado musical brasileiro tem primado pela falta de qualidade, pelo sucesso da hora e pela massificação da chamada ?música dos milhões?, aquela voltada unicamente para o atingimento de metas de venda e de receita, com notório prejuízo à qualidade artística e à manutenção da tradição cultural do país.

Nos Estados Unidos, país onde a prática nasceu nos anos 50 com o estouro do gênero ?rock and roll?, o ?jabá? é crime federal, resultando em multas pesadas e até privação de liberdade, e mesmo assim não deixou de existir, apenas diminuiu a intensidade. Uma das propostas da classe artística para o futuro de médio prazo seria a criminalização da prática do ?jabá? no Brasil, primando pela penalização pecuniária, cumulada com a perda da concessão radiofônica e outras punições na esfera criminal. Estudos estão em andamento para a apresentação de um projeto em Brasília, destinado a ampliar o conhecimento dos parlamentares sobre o assunto para que possamos ter um embrião de trabalho dentro de menos de dois anos que venha coibir, de uma vez por todas, em forma séria, essa prática nefanda que só faz contribuir para o retrocesso e a perda absoluta de qualidade do cancioneiro popular nacional.

O incentivo fiscal do ICMS é outro assunto explosivo quando dentro do universo da música brasileira. Viabilizado a partir do Convênio CONFAZ/90, na realidade esse incentivo já existe desde meados da década de 70, quando por obra do poderoso lobby da indústria fonográfica multinacional junto ao então Governo da ditadura, foi criado um mecanismo ?que deveria ser para incentivar o desenvolvimento de talentos musicais nacionais?. A prática e os anos vieram mais uma vez comprovar a falácia da argumentação ? e da intenção ? de certas pessoas em determinados segmentos. Alcançaram verdadeiras fortunas em valores anuais as importâncias que as gravadoras deveriam pagar ao Governo em forma de tributos ? pelo convênio as majors têm direito a pagar apenas 30% do montante de ICMS gerado mensalmente, ?devendo reaplicar a diferença na busca e no aperfeiçoamento de artistas brasileiros?. Mas não é o que acontece na íntegra, quando sabemos que outros destinos inconfessáveis são dados a esse dinheiro, que acaba desaguando em propinas, ?jabás?, agrados materiais a executivos de empresas e sonegação pura e simples mesmo. A idéia levantada no Fórum Social Mundial de Porto Alegre pelo artista Lobão, e que conta com nosso integral apoio, é mudar um pouco de lado esse pêndulo e destinar o incentivo fiscal do ICMS apenas para as gravadoras pequenas e independentes. Às chamadas majors, que dele já se beneficiaram deveras nos últimos 25 anos, caberia o dever cívico de passar a recolher integral e corretamente os seus impostos sobre a venda de produtos musicais. As pequenas e independentes produtoras fonográficas passariam a contar então com uma poderosa alavanca de trabalho, em sua busca incessante ? e reconhecida ? para não deixar morrer o verdadeiro talento musical do Brasil. Deixamos esse argumento como reflexão para os nossos ilustres parlamentares em Brasília/DF.

A questão do ECAD também é bastante delicada, mas de mais fácil solução, haja vista que o órgão foi criado por lei federal (5.988/73) e mantido pela nova lei autoral brasileira (9.610/99). O problema maior que envolve o ECAD são os seus critérios de avaliação e arrecadação dos direitos conexos de execução pública no Brasil. Pouco divulgado entre os usuários, mal-cobrado por muitos dos despreparados fiscais da entidade, o ECAD se transformou no ?enfant terrible? do mercado musical, embora em essência tenha como escopo uma atividade fundamental e insubstituível na preservação dos direitos conexos devidos a compositores, artistas intérpretes, músicos e similares. Uma das propostas interessantes seria a criação de um escalonamento de usuários, dividindo-os em pequenos, médios, grandes e muito grandes, criando uma grade de arrecadação que mais se aproximasse da realidade de mercado. Importante também rever o conceito de arrecadação aplicado pelo órgão, que deveria funcionar em regime de pós-cobrança e não como atualmente, quando o usuário é compelido a pagar qualquer evento antes de sua realização, sem sequer saber o número de freqüentadores, sob a séria ameaça de interdição do espetáculo. Verdadeiro terrorismo autoral. Sem falar na balbúrdia do repasse às entidades arrecadadoras que obrigatoriamente fazem parte do ECAD e que, muitas das vezes, levam meses para efetuar o pagamento dos direitos autorais aos legítimos criadores das obras musicais. Muito ainda há por fazer também nesse setor, que ainda se vale largamente da ignorância do grande mercado e da impermeabilidade dos executivos do setor, que certamente prefeririam que esta discussão nunca acontecesse.

Finalizando, existe o problema das rádios comunitárias, que vêm crescendo exponencialmente por todo o país, mas andam sob fogo cerrado da ABERT ? Associação Brasileira das Empresas de Rádio e Televisão e do Governo. A explosão das rádios comunitárias apenas demonstra a inviabilidade da manutenção do status quo atual do mercado, eivado de irregularidades, concessões de ?padrinhos? políticos no tempo da ditadura e diversas outras ilegalidades latentes. Não há mais como fugir da realidade: o Governo precisa arregaçar as mangas e partir para uma análise séria e isenta do problema, criando mecanismos legais para abraçar ? e reconhecer ? a existência das rádios comunitárias e criar regras para seu escorreito funcionamento, contribuindo assim decisivamente para trazer à luz um tentáculo cultural inescondível e que chegou justamente para preencher a lacuna deixada pelas emissoras convencionais, todas sem exceção unicamente preocupadas com o lucro e sem qualquer compromisso com a tradição histórico-cultural.

Temos certeza de que a abertura desses canais de discussão e debate a partir das reuniões realizadas no Fórum Social Mundial de Porto Alegre 2003 é apenas um embrião do fundamental e indispensável aperfeiçoamento das estruturas jurídicas envolvendo o Direito Autoral no Brasil neste limiar do Terceiro Milênio, em resposta ao clamor que brota em toda a nação dos verdadeiros criadores intelectuais da música brasileira.


Nehemias Gueiros Jr., professor da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, é advogado especializado em Direito Autoral, Show Business e CyberLaw.

Nehemias Gueiros Jr


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