?Alguém consegue imaginar o Governo exigindo contrapartida social para a educação? Para a saúde??Sabemos que na sua condição de mecanismo psicológico o ato falho só poderia acometer indivíduos. No entanto, como o Brasil é um país surpreendente, estamos testemunhando uma variação rara deste fenômeno e que está se manifestando não na comunicação de pessoas, mas em alguns aspectos da política do atual Governo, inaugurando uma nova modalidade, o ato falho institucional.

Refiro-me a esta novidade da política cultural brasileira, a famigerada contrapartida social da cultura. Para aqueles que não estão acompanhando de perto, vale a pena esclarecer que inúmeras autoridades ligadas à cultura de várias esferas governamentais têm se declarado favoráveis ao atrelamento da produção cultural incentivada a programas de caráter social. Não, não se está propondo ingressos mais baratos para o público, nem doação de lotes de livros para bibliotecas públicas. Isto sempre se fez em larga escala desde o advento das leis de incentivo fiscal à cultura no país. O que se quer, embora nem sempre se diga com todas as letras, é que os produtores culturais, quando financiados por incentivos fiscais, desenvolvam programas assistencialistas no bojo de seus projetos. As sugestões são variadas e para todos os gostos. Vão de contribuições ao Fome Zero até ações que visam inibir a violência juvenil.

A Secom (Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica) órgão que vai controlar os recursos incentivados oriundos das empresas estatais, nega que o critério da contrapartida social seja eliminatório, mas nem precisa ser. O simples anúncio de que será um fator valorativo nas propostas bastará para abrir uma corrida entre os produtores ávidos de conseguir um diferencial para os seus projetos e agradar a quem tem poder decisão. A conseqüência, evidentemente, será o prejuízo para os requisitos artístico-culturais que não tardarão a passar para segundo plano.

Sugiro que os artistas não percam mais tempo com aperfeiçoamentos, estudos e saberes ligados ao mundo da cultura. Comecem o quanto antes a se reciclar se especializando em desnutrição infantil, violência urbana, doenças epidêmicas e endêmicas, saneamento básico e outros babados afins, porque isto sim poderá garantir um lugar ao sol nos novos tempos que se avizinham.

O feito extraordinário que alguns dos nossos cineastas conseguiram recentemente, colocando vários filmes brasileiros na lista dos dez mais vistos nos cinemas de todo o país, desbancando milionários filmes norte-americanos e recuperando territórios ocupados no imaginário da nação terá importância apenas relativa para os novos administradores das verbas da cultura. O importante, o que será bacana, é se este ou aquele cineasta está ou não disposto a organizar um ?sopão? para moradores de rua.

Em qualquer país civilizado a expressão ?contrapartida social da cultura? não passaria de pleonasmo. Entre nós a coisa é tratada como achado político e citado por autoridades como se fora um invento inteligente. Vamos nos socorrer no velho e bom Aurélio.

?CONTRAPARTIDA : lançamento em conta feito por oposição ao lançamento em outra conta e em sentido oposto, para completar uma partida dobrada. Compensação. Contrapeso.?

A definição fala por si.

Não chega ser novidade o fato de as lideranças políticas brasileiras enxergarem a cultura como artigo supérfluo e cosmético. O que surpreende é que a atual administração tenha se distraído a ponto de cometer um ato falho tão espalhafatoso e, ao mesmo tempo, tão triste. Ela passa o recibo definitivo de que localiza o fazer cultural fora do âmbito social, ?um outro prato? que depende de contrapeso. Uma atividade inteiramente dispensável que por não possuir qualidades autônomas precisa apresentar compensações para se legitimar. Construção da identidade? Afirmação da cidadania? Auto-estima nacional? Tudo patacoadas. Querem coisas, digamos, mais concretas que se possa ver, medir, pesar, apalpar. É uma visão matuta, convenhamos.

Os bens culturais e artísticos são para eles uma espécie de guloseima social. Agem como mães vigilantes que dizem ao filho ?Tá bom, pode devorar este pacote de balas carameladas, mas no almoço vai ter de comer um nutritivo bife de fígado com agrião?; ou então: ? deixo você ingerir esta porcaria de refrigerante desde que me prometa beber um belo copo de suco de beterraba antes de dormir?. Descontadas as ?firulas? e a demagogia de praxe, esta é a lógica oculta por de trás desta idéia de jerico da Secom.

Alguém consegue imaginar o Governo exigindo contrapartida social para a educação? Para a saúde? Na verdade esta idéia maluca só põe a nú o que estamos cansados de saber, aquela antiga sensação de que cultura só é prioridade na retórica dos candidatos em campanha e artista só é bom mesmo para enfeitar palanque.

Ninguém se nega a oferecer vantagens especiais como retorno à população quando o produto cultural é financiado com incentivos fiscais. Como já foi dito acima, desde que entraram em vigor as leis de incentivo, milhares de espetáculos teatrais, shows, óperas, concertos, exposições, têm praticado políticas de preços populares em suas temporadas. Apresentações beneficentes são realizadas com bastante freqüência, centenas de eventos oferecem entrada franca. Livros e CDs são distribuídos com clara redução de custo. Sempre houve inúmeros projetos específicos de arte-educação envolvendo seminários, oficinas, palestras, cursos profissionalizantes, de curta duração, no seguimento artístico. Projetos nos quais a tônica educativa é uma finalidade em si e que são planejados e desenvolvidos por profissionais com formação adequada para isto. Tudo com recursos incentivados e, em boa parte dos casos, com acesso gratuito. Não é necessário obrigar um cineasta a se esfalfar para anexar em seu empreendimento cinematográfico um plano mirabolante de cunho pedagógico, assunto que não domina. Mesmo com boa vontade, o resultado será sofrível.

Ouço com freqüência de servidores aflitos que muitas Secretarias de Cultura estão atulhadas de livros e publicações com alta qualidade editorial e gráfica, encaminhados por produtores que realizaram os seus projetos com dinheiro público e que, por força de compromisso, destinaram o material. Pois bem, as obras não conseguem ser escoadas por falta de estrutura. Permanecem lá embolorando em ambientes inadequados e cedo ou tarde terminarão incineradas devido à falta de espaço.

Se a Secom, no âmbito da ?Gestão Estratégica? presente no seu nome, pudesse ajudar a resolver os complexos problemas de logística envolvidos no escoamento de todo este material (talvez algumas toneladas) fazendo com que chegasse às bibliotecas públicas, escolas e centros-culturais mais distantes do país, já estaria prestando um grande serviço à sociedade. E, já que estamos no assunto, poderíamos chamar estas providências de contrapartida governamental.


Paulo Pélico, dramaturgo e produtor de cinema e teatro, escreveu a peça “Viva oDemiurgo”; é produtor associado do Filme “Sábado”, de Ugo Giorgetti, eco-produziu a peça “HONRA” em parceria com a atriz Regina Duarte.

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Paulo Pélico


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Coprodutor do espetáculo "Liberdade, Liberdade", de Flávio Rangel e Millor Fernandes, e diretor do documentário "Fora do Figurino", sobre o caráter do jeitinho brasileiro.

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