Eleonora Santa Rosa defende engajamento real do Ministério da Cultura em defesa do atual modelo de incentivo fiscal e propõe a implantação de um Sistema de Abastecimento CulturalPor Israel do Vale
17/07/2003
Eleonora Santa Rosa é peça fundamental no desenvolvimento da produção artística e cultural de Minas Gerais, seja como produtora, seja como pensadora de políticas públicas. Pelas suas mãos tomaram forma, por exemplo, a Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte (1993) e a Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, esta última, o principal mecanismo de financiamento cultural em vigor hoje no Estado _pelo menos até que se defina o tamanho do estrago na área trazido pela reforma tributária, que proíbe qualquer forma de incentivo baseado em renúncia de ICMS, cerne das 16 leis estaduais existentes.
Fazendo uso da lei estadual mineira e da federal Rouanet (que também pode virar fundo), Eleonora ajudou a viabilizar projetos como o Fórum Internacional de Dança (o FID, para o qual definiu estratégias e viabilizou a captação de cerca de R$ 900 mil, para três edições, entre 2000 e 2003), Indie – Mostra Internacional de Cinema Independente (R$ 288 mil para duas edições, em 2002 e 2003), Museu do Oratório (R$ 960 mil, de 2001 a 2003) e Arte no Ônibus (R$ 462 mil, em 2002 e 2003).
Atualmente, dedica-se especialmente à coordenação executiva da implantação do Museu de Artes e Ofícios, projeto idealizado e dirigido pela empresária e ex-secretária de Cultura de Minas Gerais, Angela Gutierrez, responsável também pela criação do Museu do Oratório, em Ouro Preto. O novo museu ocupará a estrutura da Praça da Estação, um dos cartões postais de Belo Horizonte. Boa parte do orçamento, de R$ 12 milhões, está sendo viabilizada por recursos oriundos das leis estadual e federal de incentivo à Cultura.
Em sua iniciativa de contribuir para a massa crítica sobre a polêmica em torno da provável extinção das leis estaduais, Cultura e Mercado buscou ouvir a opinião “duplamente de dentro” de Eleonora Santa Rosa, que acompanha de perto a questão. Eleonora avalia as dificuldades da substituição do modelo atual por fundos, critica a condução das mudanças e apresenta, entre outras propostas, a idéia do que chama de Sistema de Abastecimento Cultural. A íntegra da conversa está abaixo.
C&M – A proposta de criação de um fundo em substituição às leis concentraria nas mãos dos governos a decisão dos projetos que receberiam verba. Há estrutura e maturidade para essa mudança?
A questão dos fundos é complexa e merece consideração criteriosa. Em tese, são instrumentos democráticos que refletiriam, com transparência, as regras do jogo, os princípios e condições de concorrência de determinada verba, possivelmente ao alcance de todos os interessados. Inúmeros outros fatores poderiam ser arrolados nesse sentido, mas não cansemos o leitor e vamos ao ponto: a experiência adquirida tem mostrado a verticalização da decisão, a concentração de poder e a nefasta manipulação, para fins políticos, das parcas verbas disponibilizadas nos fundos, vide o Fundo Nacional de Cultura, frustrado e frustrante nas suas finalidades. Todos os que a ele acorreramsabem bem, na prática, como a decisão era tomada e a quem beneficiava. De um lado, a deliberação, quase sempre, era favorável ao poder político e clientelístico dos que tradicionalmente tinham e continuam tendo poder de barganha. De outro, os ingênuos e incautos participantes de uma interminável e crescente fila de espera, aguardando, desesperadamente, a liberação de recursos ínfimos de um Fundo falido.Mesmo com esses problemas, não podemos nos dar ao luxo de excluir qualquer mecanismo, sobretudo este. Assim, necessitamos de um sistema de finaciamento híbrido, composto por fundos (reestruturados e devidamente alimentados), incentivos de mercado, empréstimos reembolsáveis, linhas de crédito, loteria específica, arrecadação de multas e investimentos advindos de empresas interessadas em prestar serviços ao Poder Público, por intermédio de pontuação em editais. Este último mereceria, quando oportuno, tratamento à parte, em função do potencial que apresenta.
C&M – A gestão da verba no modelo dos fundos facilita ou dificulta o benefício de grupos artísticos ou correntes estéticas? De que forma seria possível evitar cartorialismos?
No que toca a projetos de caráter experimental comunitário e patrimonial (restauração, equipamentos, construção de museus, etc), sem dúvida, o caminho é este. O acesso principal seria esse. Entretanto, preocupa-me a questão do cartorialismo e do poder desmesurado exercido pelos gestores, geralmente secretários e assemelhados. Nesse sentido, a adoção desse tipo de mecanismoterá de vir acompanhada de competente, moderna e profissional estruturação, de modo a garantir, com ética e transparência, os critérios e o real acesso a verbas dignas e expressivas.
C&M – É possível pensar num modelo ideal de financiamento público da Cultura? Como ele seria?
Sim, mas, infelizmente, ainda estamos engatinhando nesse campo em nosso País, em que pesem contribuições competentíssimas, em termos de estudos e ensaios, de gente do porte de Isaura Botelho, por exemplo. Seria muito interessante que o MinC voltasse a promover, com regularidade e planejamento, a realização de fóruns especializados, com gente de capacidade comprovada e histórico de atuação no Brasil e no exterior, voltados ao tema do financiamento, da regionalização de mecanismos de incentivo, da gestão de verbas compartilhadas, de fomento à produção cultural, do aporte de pessoas físicas, dentre outros. Por outro lado, seria muito interessante queintroduzíssemos nesses debates a noção de um Sistema de Abastecimento Cultural, entendendo toda a cadeia de produção, distribuição e consumo nessa área. Introduziríamos, assim, o princípio de menos verbo e mais verba.
C&M – Como se estruturaria este Sistema de Abastecimento Cultural?
À semelhança de outros existentes, como, por exemplo, o de alimentos. Assunto complexo, exigiria espaço específico para sua apresentação. Podemos voltar a este assunto em outra oportunidade.
C&M – Como você vê a condução do debate em torno do fim das leis, nas diferentes instâncias do governo e da sociedade civil?
Em primeiro lugar, já é um bom sinal a preocupação dos secretários da fazenda estadual em relação à preservação das leis de incentivo baseadas no icms. É claro que nem todos compartilham este pensamento. Sabemos que a área fazendária, normalmente, é refratária à renúncia fiscal de qualquer espécie.Assim, é chegada a hora da mobilização dos secretários da Cultura, dos governadores de Estado e do setor cultural para a manutenção de mecanismo similar quando da adoção do novo tributo que irá substituir o ICMS.
C&M – Que benefícios as leis estaduais trouxeram que as federais não contemplariam, caso só existissem elas?
As leis estaduais, respeitadas as suas particularidades, são responsáveis pelo florescimento da atividade Cultural nas diversas regiões do País. A partir do exemplo da lei mineira, podemos afirmar que as iniciativas mais significativas no universo cultural do estado só foram viabilizadas em função da existência desse mecanismo, que não pressupõe a renúncia integral do patrocínio. Pelo contrário, no nosso caso, a legislação estabelece quatro alternativas reais e concretas de contrapartida para as empresas, que podem deduzir 80% do valor a ser aplicado no projeto cultural. Além disso, a lei mineira possibilita o uso do patrocínio cultural para negociação da dívida ativa e a compra da dívida de terceiros.
Os instrumentos de incentivo estaduais permitem a descentralização (circulação e itinerância) das ações e bens culturais (mesmo que ainda existam sérias distorções a serem equacionadas), bem com o incremento direto na geração de emprego e renda. Resultados de recente pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, instituição com credibilidade e experiência na realização de estudos e diagnósticos consistentes dedicados ao segmento cultural, aponta que o volume de gastos efetuados no período de 1998-2001 (tempo de vigência da lei mineira), excetuados os projetos incentivados por intermédio da dívida ativa, foi de aproximadamente R$ 44 milhões, a preços médios de 2001. Soma-se a este montante o valor de R$ 11 milhões, a título de contrapartida dos patrocinadores.
C&M – Qual o peso da produção cultural regionalmente, em termos de geração de renda, num estado como Minas Gerais?
O impacto econômico na cadeia de fornecedores diretos e indiretos das atividades culturais é superior ao proporcionado pelos demais setores (comércio, transportes, comunicações etc). Para o conjunto da economia, gastos em Cultura, em Minas, geram mais emprego e renda que outras atividades, em que pese que os efeitos não sejam sentidos de forma significativa devido ao seu reduzido produção dessas atividades, superior aos 2,6% de comunicações e a 0,8% de material de transporte, incluindo aqui a indústria automobilística). Resumo da ópera: as áreas culturais contempladas pela lei estadual de incentivo têm grande capacidade de gerar emprego, renda e impostos.
C&M – É correto dizer que as leis estaduais são mais ágeis e atendem a uma outra a demanda da produção cultural?
Não sei se se a questão principal é a agilidade pois, salvo engano, essas leis abrem edital uma vez por ano e a Lei Rouanet recebe projetos durante todo o ano. Na verdade, o principal argumento é que elas são esconcentradoras, mais viáveis no suporte à negociação do patrocínio com os setores diretivos das empresas, colaborando, de modo inequívoco, para a democratização do acesso e circulação da produção cultural, oportunidades impensáveis se só existisse o mecanismo federal. Vários circuitos de cultura, programas de capacitação de recursos humanos, restaurações, dentre outros que vêm sendo realizados no interior do país, só foram e são possíveis graças às leis estaduais e municipais. O recorte desse tipo de legislação também é distinto, guardando sintonia mais apropriada com as demandas e as características locais.
C&M – Você acredita que haverá articulações para reverter o processo no Congresso?
Acredito que é possível a reversão, sobretudo se já existe a consciência dos impactos que a mera extinção dessa legislação irá causar. Regra de transição deve e tem de ser adotada. Creio que cabe ao Ministério da Cultura, em articulação com as Secretarias de Estado da Cultura, encabeçar o movimento de reavaliação das possíveis medidas negativas, levando ao Ministério da Fazenda e à Presidência da República os pleitos do setor. Essa é uma tarefa inquestionável do MinC. Não é possível o desempenho de papel secundário nesse enredo. Ao mesmo tempo, cabe aos produtores culturais organizados pressionar suas bases no Congresso e nas Assembléias Legislativas, para que o assunto seja tratado de forma específica e conscienciosa. Minas saiu na frente.
C&M – Você acompanhou a etapa mineira do seminário “Cultura para Todos”, promovido pelo MinC? Acredita que ele possa reunir contribuições e trazer mudanças consequentes?
Estive no daqui e duvido que estes eventos, na estrutura pensada e realizada, consigam produzir resultados concretos. Evidentemente, a intenção é louvável, mas o resultado fica aquém do esperado. Posso estar enganada, mas acho que fóruns setoriais e bem planejados, pautados e articulados trariam resultado mais consistente.
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