Geraldo Maia fala sobre o conceito de “acidentes culturais” e os direitos de consumidores e produtores culturaisO consumidor e o criador de cultura têm direito à garantia de proteção da sua vida, isto é, da sua saúde e segurança. Além disso tem direito também de acesso a todo tipo de informação sobre os produtos e serviços culturais oferecidos para que possa melhor se orientar no momento de escolher assim como no de criar. Outro direito importante é o que assegura aos criadores de um bem ou serviço cultural (filme, escultura, feira, cardápio, desfile, oficina, poema, livro, etc) vários tipos de financiamento que efetivamente viabilizem a execução adequada e ampla distribuição. Quando um produto ou serviço cultural, mesmo sendo utilizado corretamente do ponto de vista material e operacional, causa algum tipo de dano à saúde e/ou segurança mental, emocional, espiritual e física, temos caracterizado um tipo de “acidente cultural”, bastante comum, mas ainda sem mecanismos de prevenção e reparação individual e coletiva.
Acidentes culturais, portanto, podem acontecer individual e coletivamente. O escritor que não consegue que a editora pague os seus direitos autorais devidamente de acordo com o número de livros realmente editados, o músico que é plagiado e não teve o cuidado de registrar sua obra, o cineasta que tem seu filme censurado porque critica determinada personalidade pública poderosa, o artesão que tem seu trabalho tomado pela fiscalização da propina, o poeta que é preso por recitar versos de protesto ou considerados obscenos (poesia fescenina), o livro escrito por um suposto religioso que demoniza (apesar de proibido já danificou muitos corações, mentes e almas) as religiões de matriz africana, são exemplos de acidentes culturais individuais que ainda não gozam da proteção da lei.
O grupo de teatro que recebe verbas públicas para encenar só aquilo que interessa ao grupo político que o sustenta, a banda de música que é vultosamente patrocinada para tocar canções pornofônicas e/ou anestésicas contribuindo para a idiotização, emburrecimento e alienação da juventude, o festival de arte que não encontra financiamento porque trata da arte indígena e africana, a feira de artes que é proibida porque nasceu da iniciativa dos artistas e não dos poderes públicos, e que por isso mesmo não é contemplada com nenhum tipo de recursos, a exposição de arte experimental ou de contestação que é ignorada pela mídia e desprezada pelos órgãos de cultura, são exemplos de acidentes culturais coletivos.
A noção de “acidente cultural” não está contemplada no código de defesa do consumidor nem nas leis de patrocínio à cultura, editais, fundos de cultura e demais tipos de financiamento. Não existem também as conseqüências de âmbito jurídico. Quer dizer, os danos causados por esses acidentes culturais não dão direito a nenhuma forma de ressarcimento ou cobertura legal. Nenhum tipo de indenização é possível para essa espécie de dano. Todo o processo de frustração, estresse, violência, humilhação, depressão, causados por acidentes culturais os mais diversos ainda não encontram amparo na atual legislação.
Não existe ainda uma espécie de código de defesa do consumidor e do produtor cultural. A grande maioria dos consumidores de cultura, artistas, e demais criadores culturais não conhecem os seus direitos no que diz respeito ao acidente cultural. Ainda não existe jurisprudência formada com relação ao assunto nem nada capaz de gerar ferramentas de controle social desse tipo de acidente que ocorre comumente com a maioria dos produtos e serviços culturais oferecidos hoje em dia em qualquer parte. Não há, portanto, registro de ocorrências ou coisa que o valha. Muito menos o que obrigue que tal aconteça.
Essa carência impossibilita que se possa realizar uma ação preventiva dirigida à educação e adequação de produtos e serviços culturais às necessidades reais do cidadão. O que resultaria numa mudança significativa das condições de consumo e produção dos bens e serviços culturais com reflexo direto no panorama atual de lesão mental, emocional, física, espiritual e social de cada pessoa.
Porque quando ocorre algum tipo de acidente cultural o cidadão é o maior lesionado porque a cultura não é apenas uma, mas toda e qualquer forma de expressão individual e coletiva que deve ser ampliada, aprofundada e oferecida às sucessivas gerações através da educação, principalmente, dos meios de comunicação responsáveis e pelos diversos equipamentos de difusão cultural (bibliotecas, casas de cultura, museus, etc).
Os acidentes culturais ao causarem danos à saúde e segurança do consumidor e do produtor tem como conseqüência imediata e mais grave a redução da capacidade de discernimento, de senso crítico, de sensibilidade, de criatividade, de iniciativa e decisão, de autoestima, de autonomia, de independência, de vitalidade, de transformação, de autodeterminação do indivíduo (cidadão) e coletivo (sociedade) com reflexos diretos na capacidade de evolução existencial e produção autosustentada.
Outra conseqüência grave é a desvalorização e marginalização da cultura ante as outras possibilidades de criação humana levando à própria desvalorização e marginalização da cidadania. O cidadão é reduzido a consumidor alienado e /ou produtor prostituído o que gera custos altíssimos para o poder público e a iniciativa privada levados a investir em peso no processo de manutenção e ampliação desse processo de degradação humana através da atividade cultural de caráter anestésico e antivida.
Exemplos não faltam. Falhas de informação quanto ao uso correto do produto e/ou serviço cultural, falta de adequação às necessidades reais intrínsecas do cidadão, defeitos de criação e expressão, serviços inadequados, obsoletos, defasados, distantes da realidade, tudo isso é capaz de gerar acidentes culturais gravíssimos como os que estamos acostumados a assistir na Bahia e no Brasil e que causaram um atraso de mais de cinco décadas no processo evolutivo da população.
É preciso então fazer valer os direitos do cidadão com relação à cultura, principalmente no que se refere ao consumo e produção. E isso pode ser alcançado através de políticas públicas eficazes que realmente contemplem o direito e o dever do cidadão de consumir e produzir cultura a todo instante como ferramenta principal de informação, conhecimento e obtenção do saber, tanto científico como de senso comum, não existindo, nesse particular, nenhuma separação ou privilégio ou valorização de um deles em detrimento do outro. Cultura portanto é um direito e um dever de todos porque é a mais simples e ampla expressão de cidadania.
Geraldo Maia