Apresenta os aspectos da cobertura jornalística da chamada área cultural, que realizada pelos meios tradicionais de comunicação, é deliberadamente voltada para o mercado e para o consumo de produtos culturais. Enquanto, na sala ao lado, meus dois filhos já adolescentes tentam, em vão, aplacar a sede do caçula de dois anos que quer a repetição da leitura de histórias já tantas vezes lidas, começo a construir um fio condutor para a reflexão entre cultura e jornalismo. Recorro à cena privada porque não consigo desvincular o tema de dois elementos que envolvem a realidade cultural brasileira, a vida das pessoas, as políticas públicas e a mídia, mais especificamente o jornalismo.

O primeiro trata-se do fato comprovado de que uma criança que tem acesso a livros e leitura na primeira infância terá, aos seis anos de idade, vocabulário até seis vezes maior do que o de uma criança que não tem esse tipo acesso. No Brasil, a histórica ausência de bibliotecas nas escolas públicas, nos bairros e nas cidades de menor porte, bem como a ausência de educação infantil pública e gratuita, é um indicador de como o acesso a determinados bens culturais interfere cotidianamente na formação e “separação” cultural brasileira, que está baseada no poder de compra individual.

O segundo, intrinsecamente ligado a esse, refere-se ao levantamento feito pelo Ministério da Cultura acerca do consumo de produtos culturais no Brasil. Publicado recentemente, o estudo causa perplexidade ao revelar que, independentemente do estrato social, do investimento total em cultura que atinge em média 3% da renda familiar, 84% são destinados a práticas realizadas dentro dos domicílios sendo que a televisão figura como a principal atriz neste cenário. O levantamento revela, também, um Brasil que quase não vai ao cinema (60% da população); nem ao teatro e nem a museus (70% da população).

O retrato do Brasil cultural em números confirma uma realidade inegável e até certo ponto inevitável: a qualidade do acesso a bens culturais está mediada pela televisão e pelo rádio. E, logicamente, pela cobertura jornalística feita pelo chamado Jornalismo Cultural, existente nesses veículos, reforçada pelos impressos, principalmente os jornais diários. Fruto de uma estrutura de comunicação concentrada e altamente vinculada às esferas de interesse econômico e político, o jornalismo praticado pela imprensa brasileira tradicional torna-se majoritariamente refém de uma estrutura empresarial padronizadora da informação e da linguagem.

Sob essa lógica, o jornalismo cultural afirma e reafirma a fragmentação da cultura, com o foco voltado prioritariamente para o mercado e para o consumo de produtos culturais. Jornais impressos, revistas, TVs (abertas e fechadas), e, com destaque, as rádios divulgam agendas e eventos que estão diretamente ligados à venda de bilheterias e produtos. Obedecem à lógica auto-referente da mídia que fala de si mesma e de seus produtos buscando a consagração de “ídolos e artistas” e a adesão a programações oferecidas na TV. E não raras vezes trata-se de publicidade travestida de jornalismo.

O jornalismo cultural acaba por atuar no surgimento de modismos ou “ondas” que buscam promover comportamentos e gerar ou reforçar novos tipos de consumo. Na sua pauta, os produtos e bens culturais produzidos fora dessa lógica só entram quando se configuram como promessa mercadológica ou quando “burlam” as barreiras do mercado tradicional. Esse é um formato que está tão arraigado que mesmo as mídias existentes fora da estrutura empresarial de imprensa o adotam com a ilusão de que dessa forma o acesso à cultura será garantido.

A cultura que freqüenta o lugar nobre do jornalismo cultural funciona, também, como uma espécie de passaporte para alguns níveis de relações sociais, com recorte importante na legitimação de relações de poder. Não é por acaso que colunas sociais estão espacialmente identificadas nos cadernos de cultura. Não é à toa, também, que em geral o lugar destinado às mulheres nos jornais ainda é o “caderno de cultura”, em que elas aparecem destituídas do centro de poder de decisão e deslocadas para o espaço destinado ao consumo.

Ao problematizar a “cultura” que freqüenta os cadernos e programas culturais, pode-se dizer que a relação entre cultura e jornalismo é uma pauta a ser recriada, e ao se considerar as produções regionais, é uma pauta que precisa ser criada. Falta experimentar no jornalismo aquilo que é próprio da cultura: rompimento de paradigmas, produção de estranhamentos de sentidos e formas. Falta reconhecer os diferentes e desiguais sujeitos da cultura. Falta religar vida, economia, política, ética e estética. Falta compreender e revelar a própria cultura da mídia.

Assim como as crianças e os adolescentes, todos nós também desejamos ter e perpetuar a experiência da fruição, na tentativa de fixar e não perder aquele momento sublime que produziu um significado novo para a vida, independentemente de classe, raça, sexo, idade. E essa experiência só ocorre mediante contato com um objeto da cultura. O desafio do jornalismo cultural é dar conta dessa realidade sem se render às tentações reducionistas. É constituir uma agenda cultural de fato cidadã. É transparecer as tensões existentes nos diferentes ambientes de cultura e permitir o conhecimento para que o acesso a bens e produtos culturais seja o mais amplo possível.. No fim, trata-se, na verdade, de uma luta contra a padronização: a inimiga fatal de toda a criação (com perdão à rima pobre).

A pauta do jornalismo cultural no Brasil está atrasada e em dívida com a população brasileira por se abster do potencial transformador existente na cultura ao reduzi-la a valores estéticos do consumo. E, também, por se abster de imprimir o conteúdo de cidadania necessário ao campo da cultura. É certo que o problema extrapola o âmbito da concepção e execução da pauta, tem a ver com fato de que as estruturas de comunicação precisam ser democratizadas. Mas, modificar a qualidade e a extensão da cobertura jornalística é urgente, para que nessa ou em outra estrutura de comunicação que vier a existir, o jornalismo se constitua, ele próprio, em um produto cultural cidadão.

Angelita Lima


editor

4Comentários

  • Maria Alice Gouveia, 22 de janeiro de 2008 @ 8:33 Reply

    Excelente!

  • Carlos Henrique Machado, 23 de janeiro de 2008 @ 11:08 Reply

    Volto a insistir que é absolutamente equivocada essa visão de que o mau jornalismo cultural seja culpado de um processo viciado, não. Ele acompanha os contornos de uma boca torta feita pelo cachimbo dos frequentadores de salões.
    Se o alarido das cátedras se acha em condições de impor regras de conduta cultural, e essa é a nossa principal tradição, por que o mercado dos burgueses que, muitas vezes, é promíscuo, também não pode passar? Onde passa um boi, passa uma boiada. As técnicas de persuasão do mercado são as mesmas do gran circo das célebres instituições de “arte” e sua soberba auto-sustentável com verbas públicas, claro!!
    o Caminho da roça já foi feito pelos feitores e barões. A indústria do entretenimento social só cumpre o papel de indústria e transforma uma fórmula em mecanismo capaz de produzir o mesmo conceito de produção em massa.

    Vamos à receita que serve tanto para o mundo dos deuses acadêmicos e seus longíncuos narizes de cera e arrotos de fazer inveja aos mais brilhantes tenores, quanto ao jornalismo a serviço do mercantilismo mascatista.

    Temos duas vítimas centrais nessa questão: uma, os pobres, que sentem no bolso o custo altíssimo da sustentação dos reis e seus banquetes, coquetéis e vinhos com traçdião de envelhecimento nos mais puros tonéis de carvalho. A turma que gosta de sacar a sua carteirinha de Harvard, Sorbone e Berkele. Os ilustres estudantes que caminhavam por París terminando a noitada no vira-vira, empunhando uma célebre boina xadrez e o cachicol euro-tupiniquim. Chegando aqui, berra mais alto do que o apito do transatlântico. E assim, se instalam como crosta na frigideira imunda de buteco, porque seus apitos, seus berros sociais se sobrepõem aos da maria fumaça dos trens suburbanos do Brasil. Logo os trens que carregam tanta arte, tanta gente que nos dá a real identidade, a mão-de-obra que constrói, não só o país, mas tembém nos faz de fato um povo.
    A segunda classe, desculpem o termo segunda classe, é só aqui no texto, é do mediano, esse é a principal vítima desses dois mundos, do mercado das influências ao mercado das gritas da moda. Esse mediano, coitado! Se julgava preparado pelas suas escolas particulares das zonas sul do país, parece que está no meio de um tiroteio, desses que assistimos entre policiais e traficantes das favelas do Rio. Essa desesperada massa de medianos vive à caça de si, ora na Lapa, ora no Rock in Rio. Tem que estar ligado, o que está pegando? O que está acontecendo? Você não está lá? Meus Deus, quanta culpa o mediano carrega! Quando se perde da manada então! Ficamos combinados assim para não haver conflitos, seguimos o fluxo natural das coisas: para haver nobre tem que haver pobre, isso é o que a história nos conta. Os plebeus têm que continuar pagando os seus impostos embutidos em cada grão de arroz para sustentarem os banquetes e as Sodomas e Gomorras com inaugurações com suas faixas de seda desamarradas em algum centro cultural por algum doutor com um anel vistoso de rubí. No mundo dos médios, dos burgueses, continuamos na mesma, inventaram essa forma de sociedade? Eles é que se virem! Não inventaram o produto de consumo? Eles que consumam os espelhinhos e os badulaques de Miami e Dazlu. Por isso, meus amigos, o nosso jornalismo reflete exatamente, em suas colunas sociais, os chás das quatro muito bem frequentados pelas sociedades secretas e seus pares, as sociedades corporativas. E na coluna cultural ou teen, vamos às novidades mercadológicas para embriagar o mediano à caça das novidades das vitrines dos shoppings culturais, nada mais que isso. O povo? Este, apesar de pagar um preço altíssimo em moeda corrente para encher as panças dos reis e espetáculos de ópera nos teatros municipais, tem seus próprios rumos culturais, não entende os outros dois mundos e não faz a menor questão de entender, pois tem personalidade. A sua cultura é movida por um sentimento real de arte, pelo instinto do homem comum. Por isso, na história da humanidade sempre o povo produziu o artista, nunca o inverso. Este, graças ao bom pai, não foi contaminado por um conceito estético e nós daqui, continuaremos a nossa ladainha improdutiva e viciada.

  • Maximiliano Mazewski, 25 de janeiro de 2008 @ 18:18 Reply

    O jornalista é o homem do momento, o comentarista do agora. Ele pretende eternizar o momento presente, tornando o fato memorável. O jornalismo cultural expande o público de leitores enquanto reduz a matéria ao divulgar sinteticamente o conteúdo. Como homem do presente, jamais alcança uma reflexão sobre o contexto históricop no qual ele próprio está inserido e participa. por qualquer que seja seu assunto, este sempre será superficial pois falta a fundamentação teórica, faltam filosofias do livre-pensar. Um jornalista é um funcionário, alguém que é pago para escrever ou falar. Geralmente não importa muito o que diga porque amanhã seus leitores ou ouvintes terão outros assuntos de pauta para inteirarem-se. A crise cultural não produto da mídia jornalística, reflete-se nela. A crise cultural é histórica e é anterior ao século XX, ou XIX. Vem desde os XVIII, com os próprios livros, símbolos da alta cultura, adquiridas pela leitura. Eles expandiram o público de leitores enquanto restringiram a capacidade de reflexão e diálogo dos eruditos ao selecionar os conteúdos, fragmentando-os em disciplinas e traduzindo os textos clássicos para as línguas nacionais. Até chegar a cultura do Rock nos finais dos 1950. aí, os jovens passaram a entender tudo de música, enquanto colecionavam discos, esqueceram dos livros. Hoje, eles podem carrregar seus i-pods, mas nem mesmo seus cadernos, o que dirá dos livros. São analfabetos-funcionais. Ignorantes, sem urbanidade (até andam pelas ruas de cuecas a mostra). E o que é pior, ao alvorecer o século XXI, o que pensávamos haver sido extinto como o nazismo, ressurge com uma roupagem de novidade.
    Em síntese, não sabemos questionar, perguntar; não sabemos refletir e criticar, ou julgar pois descartamos qualquer valor social ou virtude humana como importantes. Há apenas o dinheiro, e é com isso que se adquire um jornal e se assalaria um jornalista.

  • Maximiliano Mazewski, 25 de janeiro de 2008 @ 18:18 Reply

    O jornalista é o homem do momento, o comentarista do agora. Ele pretende eternizar o momento presente, tornando o fato memorável. O jornalismo cultural expande o público de leitores enquanto reduz a matéria ao divulgar sinteticamente o conteúdo. Como homem do presente, jamais alcança uma reflexão sobre o contexto históricop no qual ele próprio está inserido e participa. por qualquer que seja seu assunto, este sempre será superficial pois falta a fundamentação teórica, faltam filosofias do livre-pensar. Um jornalista é um funcionário, alguém que é pago para escrever ou falar. Geralmente não importa muito o que diga porque amanhã seus leitores ou ouvintes terão outros assuntos de pauta para inteirarem-se. A crise cultural não produto da mídia jornalística, reflete-se nela. A crise cultural é histórica e é anterior ao século XX, ou XIX. Vem desde os XVIII, com os próprios livros, símbolos da alta cultura, adquiridas pela leitura. Eles expandiram o público de leitores enquanto restringiram a capacidade de reflexão e diálogo dos eruditos ao selecionar os conteúdos, fragmentando-os em disciplinas e traduzindo os textos clássicos para as línguas nacionais. Até chegar a cultura do Rock nos finais dos 1950. aí, os jovens passaram a entender tudo de música, enquanto colecionavam discos, esqueceram dos livros. Hoje, eles podem carrregar seus i-pods, mas nem mesmo seus cadernos, o que dirá dos livros. São analfabetos-funcionais. Ignorantes, sem urbanidade (até andam pelas ruas de cuecas a mostra). E o que é pior, ao alvorecer o século XXI, o que pensávamos haver sido extinto como o nazismo, ressurge com uma roupagem de novidade.
    Em síntese, não sabemos questionar, perguntar; não sabemos refletir e criticar, ou julgar pois descartamos qualquer valor social ou virtude humana como importantes. Há apenas o dinheiro, e é com isso que se adquire um jornal e se assalaria um jornalista.

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