Abordando a sociedade em rede, que tanto pode aprofundar as desigualdades e as diferenças no acesso, como pode fazer emergir possibilidades inusitadas, que, se bem aproveitadas, quebram velhos paradigmas das sociedades puramente territorializadas. … o homem, ali, é ainda um intruso impertinente.
Chegou sem ser esperado nem querido –
quando a natureza ainda estava arrumando
o seu mais vasto e luxuoso salão.
E encontrou uma opulenta desordem…
(Euclides da Cunha)
Euclides da Cunha (1866-1909), quando de sua passagem pela Amazônia, entre o final de 1904 e 1906, em plena efervescência do Ciclo da Borracha, escreveu um dos textos mais contundentes sobre a vida do seringueiro, aquele homem, que, fugido das secas do Nordeste, veio para a região, em busca da redenção, e aqui encontrou o trabalho escravizante, capaz, no entanto, de produzir a riqueza e a ostentação de algumas poucas famílias. Trata-se de “Judas-Asvero”, relato sobre o Sábado de Aleluia numa comunidade de seringueiros do Alto-Purus . Aqui, por certo, está o jornalista, na completude de sua sensibilidade social, aliada à descrição minuciosa: “… Certo, o redentor universal não os redimiu; esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão relegados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver de suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfrequentados rincões.”

 

Feitas estas considerações, ele narra a preparação do Judas:
Faz-se-lhe mister, ao menos, acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis; e mascarar-lhe no rosto de pano, a laivos de carvão, uma tortura tão trágica, e em tanta maneira tão próxima da realidade, que o eterno condenado pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua divina vítima, de modo a desafiar uma repulsa mais espontânea e um mais compreensível revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos crentes, com a imagem tanto possível perfeita da sua miséria e das suas agonia terríveis (p. 264).Depois de pronto…
É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos de rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram (p. 266).

E Judas, tal como Asvero, o judeu errante, condenado a percorrer longo caminho rumo ao sacrifício solar, é arrumado numa jangada e despachado, rio abaixo, sob pedradas, tiros de rifles:
E vai descendo, descendo… por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspeito e nos gestos: ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam, ora em desengonços, desequilibrando-se aos menos balanços, atrapalhadamente, como ébrios; ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento profundo; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados… à mercê das correntes, de bubuia sobre as grandes águas (pp. 266-267).

Embora não mencione explicitamente, Euclides pode ter se inspirado em poema homônimo de Castro Alves, com a diferença do acento social: enquanto o poeta de Espumas Flutuantes se referia à solidão do gênio incompreendido, a partir da figura do Judeu Errante, Euclides denunciava, com todas as letras, a escravidão e o degredo. Só mais recentemente, por meio das minisséries brasileiras, o grande público tomou conhecimento desse período, através de Mad Maria (2005), baseada na obra homônima de Márcio Souza, e Amazônia: de Galvez a Chico Mendes (2007).

Por trás dessa história social e cultural bastante complexa, esteve sempre o véu da desinformação. Esse grande espaço, mais de 50 por cento do território brasileiro, quando se considera a idéia de Amazônia Legal; e mais amplo, quando se leva em conta os critérios fitogeográficos, a partir dos quais a Amazônia se expande por áreas territoriais da Venezuela, Colômbia, Bolívia, Peru, Equador e Guianas, constituindo o que se conhece como Pan-Amazônia, ou Amazônia Internacional, pouco, muito pouco, se conhece, além de slogans e chavões. Infelizmente. Foi necessária a ameaça concreta do aquecimento global e da destruição da natureza, nos quatro cantos do planeta, para que a Amazônia, também ela, bastante sacrificada pelo paradigma desenvolvimentista, ainda em voga, passasse a ser olhada; embora, diga-se, com olhos ainda obnubilados: ora, pelas idealizações (paraíso, celeiro do mundo, pulmão, etc) ou pelas demonizações (inferno verde, etc), ambas trazendo as marcas do exotismo.

Recentemente, quando tive a chance de participar de um encontro no qual estava presente a tele dramaturga Glória Pérez, autora do roteiro de Amazônia: de Galvez e Chico Mendes, perguntei-lhe sobre a razão de a região ter permanecido tanto tempo fora do Mapa Tele ficcional brasileiro. Ela respondeu de maneira sincera e direta: “tecnológica”. E acrescentou: “como seria possível, anos atrás, levar equipamentos sofisticados e pesados para gravar uma série?” Lembrou, inclusive, o fracasso da Rede Manchete, quando tentou realizar a telenovela Amazônia, na década de 1980, sob a direção de Tizuka Yamazaki.

Feitas estas considerações, como pensar, no mundo interligado em rede, para usar expressão de Manuel Castells, a possibilidade de uma comunicação de dupla mão? Historicamente a região foi visitada por sábios e cientistas, que colheram suas impressões, e “inventaram” diversas Amazônias, a partir de pressupostos e conceitos prévios; em poucas ocasiões, no entanto, até como decorrência do modelo de comunicação vigente, a região falou de si; no lugar de falar, tem sido “falada”. Algo como um discurso “de fora”, que de tão repetido, foi internalizado e que penso ser meu…

No plano do jornalismo cultural, vale mapear algumas iniciativas marcantes nesta contracorrente: na década de 1920, três revistas, Redempção, Equador e A Selva, sob a inspiração da Semana de 22, buscaram estabelecer uma fala a partir do isolamento e da decadência econômica, depois dos anos áureos da borracha, sob o domínio da libra esterlina. E, no cinema, um português, Silvino Santos, documentando, e paralelamente, inventando o cinema na região. Já na década de 1950, jovens reunidos no entorno de um boteco, conhecido como Café do Pina, criaram o Clube da Madrugada, antecipando o Brasil popular, crítico e sedento por expressar-se; aqui teve início processo de tal forma rico e complexo, que uma geração depois, nos dias de hoje, tem gerado boa quantidade de criadores, dois dos quais conseguiram romper as barreiras do isolamento e da comunicação de mão única, Márcio Souza e Milton Hatoum, extremamente diferentes entre si.

Por fim, a alegria desses tempos que se esboçam; mas ciente de que ainda a Amazônia, indígena e multicultural, é apenas uma mancha inexpressiva no acesso a essa nova tecnologia, que é a internet, assim como no acesso à escolaridade e à leitura. Mesmo com as iniciativas aqui inventariadas, não se pode ser ingênuo: esta sociedade em rede tanto é capaz de aprofundar as desigualdades, homogeneizando e multiplicando subjetividades empobrecidas e desesperançadas, a exemplo do relatou Euclides da Cunha, como fazer emergirem possibilidades inusitadas, capazes de conduzirem a uma comunicação verdadeiramente simétrica, seja no plano das relações, mediadas ou não, entre os diferentes povos da Amazônia, seja entre diferentes regiões.
Que tal a tarefa de entender melhor essa “opulenta desordem”?

[1] Citações extraídas do volume I das Obras Completas, José Aguillar Editora, Rio de Janeiro, 1966.

Narciso Freire Lobo


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*Jornalismo Cultural em pauta* Série de artigos sobre Jornalismo Cultural Independente, organizado por Eduardo Carvalho para o Cultura e Pensamento, programa nacional que promove incentivo ao debate crítico, com o propósito de fortalecer espaços públicos de reflexão e diálogo em torno de temas relevantes da agenda cultural contemporânea.

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