A relação entre o Direito e a Cultura que a princípio sugere antagonismo e rejeição, mas que, contrariamente a essa relação, demonstra existir um suporte mútuo.

“Como pode o peixe vivo viver fora da água fria?”
(Folclore brasileiro)

Falar sobre Cultura e Direito pressupõe encontrar o ponto inicial do encontro entre ambos, pois não há relação sem algum tipo de contato. É conveniente (e até divertido) conjeturar para saber qual dos dois surgiu primeiro.

Para um partidário da primazia da cultura, que a entenda sob o prisma antropológico, o surgimento de “Adão” teria lhe determinado o início, sendo ela, portanto, anterior ao direito; isto porque, estando o primeiro homem isolado, nenhuma relação com outro poderia ter, o que tornaria dispensável e inócua a existência do direito, cujo grande objetivo é disciplinar as relações entre as pessoas. Somente após a criação de “Eva”, segundo este entendimento, poder-se-ia falar do campo das normas.

Contra-argumentar a tese exposta não envolveria dificuldades para os que defendem o surgimento do direito, não em momento anterior, mas simultaneamente ao advento da cultura. Estes têm por convicção que também somente se pode falar em cultura nos ambientes em que a presença humana é plural, pois seu sentido de ser reside no aprimoramento, na transmissão e no partilhamento de saberes e fazeres. Sintetizam este entendimento num brocardo: ubi societas ibi jus, ou seja, onde há sociedade, há direito.

Ademais, para a eventual persistência da idéia de que o primeiro homem carregaria já, mesmo que isoladamente, a essência da humanidade, da mesma forma que uma única gota d’água é representativa da substância do mais agigantado oceano, com outras correntes jurídicas poderiam argumentar com a idéia de direito natural – aquele que cada humano possui pelo simples fato de pertencer a esta espécie –, ou de direito divino, este muito bem representado pela proibição e previsível castigo, relativos ao assalto cometido contra os frutos da árvore proibida.

O direito, portanto, não tem como reivindicar anterioridade à cultura, mas é razoável que queira ser seu contemporâneo e, mais, que busque provar uma relação tão intensa, ao ponto de lembrar o mito dos gêmeos que sentem os reflexos um relativamente ao outro, por atos individualmente praticados. É dizer: o que se faz na cultura, repercute no direito e vive-versa.

O entendimento desta íntima relação gerou, por exemplo, a idéia de culturalismo jurídico, no cerne da qual o direito só pode ser adequadamente compreendido se observadas as variantes fato-valor-norma. Isto traduz o entendimento de que as prescrições jurídicas adquirem significado real quando interpretadas de modo a que sejam sopesados os eventos sobre os quais atuam, bem como a importância (o valor) que sobre eles – fatos e prescrições – jogamos. Em palavras a todos acessíveis: o direito depende da cultura que o cerca.

Por outro lado, não se podem desconhecer elementos como força, vanguarda e conservadorismo, presentes nos arredores do mundo jurídico, o que provoca, não raro, movimentos de choques, indutores da conclusão inversa: a cultura sofre as influências do direito.

Tais movimentos acontecem porque esta condição de gêmeos siameses, como é previsível, oscila entre o conformismo frente às coisas que não podem ser mudadas, até a extrema rebeldia ao sentimento de opressão que a presença perpétua de um provoca na existência do outro. Por isto, com insistente freqüência, cultura e direito também se digladiam, cada um buscando seu reinado absoluto, tentando reservar ao “oponente”, quando muito, a condição de serviçal. A cultura, por vezes, almeja aniquilar a vitalidade do direito quando, argüindo hábitos consolidados, tenta petrificar o modo de viver. O direito, por seu turno, reitera, de tempos em tempos, a prática de aprisionar e amordaçar a cultura, sob o esdrúxulo fundamento de que ela carrega em seu âmago o vírus destruidor da coerência e da pacificação sociais.

Note-se que os encontros e desencontros referidos contemplam as idéias de direito e cultura em suas dimensões as mais abstratas e gerais. Um plano mais específico, porém, deve ser enfocado, qual seja, o âmbito de atuação dos órgãos públicos de cultura, gerenciadores das políticas atinentes às artes, à memória coletiva e à transmissão dos saberes. Neste domínio, observa-se um crescente aumento de criação de normas, o qual reflete a importância da cultura em muitas searas, desde aquelas atinentes ao aprimoramento dos espíritos, até as do desenvolvimento econômico.

A criação de tantas normas merece o particular questionamento sobre sua conveniência, adequação e utilidade para a cultura, um campo cujo principal signo de regência, segundo nossa Constituição, está no âmbito do permitido: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (Art. 5º, IX). Esta preocupação, aliás, figura no pensamento de Norberto Bobbio, que enxerga uma proporcionalidade inversa, na fórmula “quanto mais direito, menos liberdade”, querendo com isso dizer que na mesma intensidade com a qual o Estado legisla, obrigações são criadas, e, por conseguinte, restringe-se o raio de escolha das pessoas.

A advertência, no entanto, precisa ser contextualizada: a liberdade cultural protegida pela Constituição brasileira assenta-se, sobretudo, nas atividades que envolvem as idéias de criação e expressão, as quais, diante da carência de recursos, tornam-se credoras de meios materiais, inclusive pecuniários, para que se materializem. Esta atuação corretiva das desigualdades constitui responsabilidade do Estado que, para desempenhar seu papel, precisa de ferramentas adequadas, estando a lei dentre as principais. É por isto que quanto mais avança a idéia democrática, na mesma intensidade realiza-se a persecução do combate às desigualdades materiais, a partir da atuação do Estado, o qual somente pode agir nos casos em que está autorizado pela lei (princípio da legalidade), razão pela qual as normas se avolumam. Portanto, a legislação cultural produzida somente merece reprimenda se e na medida em que afete as liberdades de criação e expressão; devendo, em sentido oposto, ser aplaudida, quando cria instrumentos favorecedores de tais ações.

Por outro lado, o reconhecimento da necessidade criar todo um corpo normativo em função da cultura pressupõe que se entenda, primeiramente, o conceito jurídico de normas programáticas, precisamente aquelas que, mesmo estando na Constituição, para produzirem efeitos materiais, necessitam de duplo movimento: um do legislador, para autorizar a atuação do Estado (editando a lei), e outro do administrador, para realizar a referida atuação (aplicando a lei).

Grande parte das prescrições constitucionais sobre cultura, como “o Estado garantirá direitos culturais”; “protegerá culturas populares”; “estabelecerá incentivos”, etc, é de natureza programática, e por esta razão, somente saem da folha de papel (Lassalle), da letra fria da lei, para o mundo dos fatos, com a edição e aplicação de normas do tipo das aqui relacionadas.

Vê-se, portanto, serem inseparáveis o direito e a cultura, como inevitáveis os choques entre ambos, mas também mutuamente dependentes, em dimensão análoga à do peixe vivo e da água fria.

Francisco Humberto Cunha Filho


contributor

*Jornalismo Cultural em pauta* Série de artigos sobre Jornalismo Cultural Independente, organizado por Eduardo Carvalho para o Cultura e Pensamento, programa nacional que promove incentivo ao debate crítico, com o propósito de fortalecer espaços públicos de reflexão e diálogo em torno de temas relevantes da agenda cultural contemporânea.

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