Para o deputado estadual Vicente Cândido, a criação e implantaçao de políticas públicas para a cultura é parte essencial de seu mandato
Na contramão da grande maioria dos seus colegas, a criação e implantação de políticas públicas para a cultura é pauta constante na plataforma política de Vicente Cândido, atualmente deputado estadual eleito pelo PT nas eleições de 2002. Integrante da Comissão de Cultura, Ciência e Tecnologia da Assembléia Legislativa de São Paulo, ele conseguiu aprovar, em dezembro de 2.001, a Lei 13.279 (de sua autoria), que instituiu o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.
O deputado teve um papel decisivo na aprovação do PAC, o programa cultural do governo estadual de São Paulo recém-sancionado por Geraldo Alckmin. Vicente Cândido é autor do projeto de emendas que atendiam as expectativas do setor cultural, muitas das quais foram inseridas no projeto final. Ele é tambem autor do projeto de lei do Fundo Estadual de Cultura, que acabou incorporado ao PAC.
CeM: Por que a criação e implantação de políticas públicas para a cultura se tornou uma das prioridades de sua atuação política?
VC: Eu aprendi isso já na militância de grupos de jovens, estudando alguns processos de revolução do mundo (Cuba, Nicarágua, União Soviética). Aprendi que a cultura era um item importante na mudança do comportamento da sociedade, e procurei introduzir isso dentro da minha atuação politica. Eu tinha o sonho de que ao chegar no poder, isso seria um caso tranqüilo, por ser de esquerda e pelas referências que o PT tinha desses países. Mas ao chegar no governo (minha primeira experiência foi em São Paulo, com a Luíza Erundina e a Secretária Marilena Chauí), percebi que não seria tão natural assim. A disputa orçamentária era mais pesada, as corporações levavam a maior parte dos recursos e não era tranqüilo – mesmo dentro de um partido como o nosso – essa sensibilização que eu achava natural. Diante dessa leitura, eu resolvi colocar isso como prioridade na ação do mandato, como administrador naquela ocasião (procurei fazer as coisas à revelia da Secretaria de Cultura, que não acontecia) e depois como parlamentar.
CeM: Qual o papel estratégico que o Legislativo pode desempenhar no processo de aprovação de projetos e leis que beneficiem a cultura? Esse papel vem sendo devidamente explorado pelo setor cultural?
VC: Eu percebi que no Parlamento, essa discussão era ainda mais estranha do que no Executivo. Se você pegar a história contemporânea de São Paulo, na Câmara você vai encontrar a Lei Mendonça (e a esquizofrenia com que ela saiu), e nada mais. A Câmara começou a debater cultura já no final da gestão Celso Pitta e na gestão Marta Suplicy. Basta você colocar na pauta para despertar outros parceiros. A partir daí, outros vereadores também assumiram a questão e o movimento cultural foi para dentro do Legislativo, pois descobriram que é um bom caminho para o processamento de políticas públicas. Antes havia um desconhecimento do setor cultural, que achava que as coisas só se resolviam no Executivo. O Legislativo é o local próprio para isso. É onde se fazem leis, há um debate mais democrático e mais facilidade de acesso. Nós procuramos fazer uma reflexão a partir daí. E a Câmara nesse período debateu várias iniciativas e aprovou leis. Varios vereadores assumiram a questão cultural, trazendo repercussão no Executivo. Quando a coisa é bem feita, dificilmente o Executivo ignora. Pode não ser o que o Parlamento propõe, mas alguma coisa sai, como é o caso agora do governo do Estado, que está sancionando uma lei longe do que a sociedade cultural pediu, mas que só saiu por que ela pediu e debateu, ou em caso contrário, nem isso teria. Isso é muito parecido em todo o Brasil, são poucas iniciativas, debates e produção do Legislativo nessa área. Observando outras áreas, como a Educação, a Segurança e a Saúde, todas elas têm conquistas bastante enraizadas nas leis. Na Cultura não. O mesmo absurdo na Assembléia Legislativa. Ao chegar lá, percebemos que existiam duas leis para a cultura: a LINC e a Loteria, ambas desativadas. Para a importância e o tamanho do Parlamento, é de uma pobreza assustadora. A partir disso, fizemos o mesmo movimento na Assembléia, porém mais articulado e amplo, e apareceram outros projetos, de minha autoria e de outros parlamentares. Hoje em dia, a Cultura na Assembléia Legislativa de São Paulo é muito familiar.
CeM: Por que falta para a grande maioria dos políticos a consciência sobre a importância da cultura? Por que normalmente isso não é abordado nas plataformas políticas?
VC: O que falta é a gente construir uma outra sociedade. É um processo cultural. Entramos naquele vício de quem nasceu primeiro. Se você faz as leis primeiro, você muda a sociedade primeiro. Da mesma forma, nós também podemos jogar a culpa nos ativistas culturais. Eu acho que talvez eles sejam os maiores culpados e eu já tive esse debate sincero com a classe artística. Tem vários erros. Muitos achavam que bastaria ser amigo do rei para ter os problemas resolvidos. Eu sonhei que bastava ser de esquerda que estaria resolvido e me enganei. Percebemos que apesar da cultura ser uma área simpática que ninguém critica, na hora de dividir o bolo, não dá para todos. Tem que haver pressão, organização e ainda descompromisso dos governantes, por que obras dão mais votos e visibilidade do que construir cidadania.
A culpa é de um processo da sociedade, mas eu procuro muito cobrar os artistas em termos de movimento. Tirar atores famosos da vida deles para terem uma posição política é muito difícil, ainda que sejam partidários. Eles assinam abaixo-assinados, mas ir além disso é difícil, como também é organizar o Hip-Hop, pela sua natureza, pela rebeldia. Como é difícil organizar os artistas em geral pelos horários, pela falta de estabilidade de vida…eles acabam mais preocupados em pagar as contas do que em dedicar duas horas por semana para a organização política. Daí vem a frustração e um pouco da minha cobrança. Eu não sei se tenho esse direito, mas faz parte do nosso diálogo. Eu quero ser cobrado como parlamentar e militante, mas também tenho o direito de cobrar que façamos juntos, pois essas ações precisam ser complementares.
CeM: Quais os caminhos para que os representantes da área cultural tenham bancadas no Congresso que cuidem de seus interesses?
VC: Primeiramente, é preciso um mínimo de organização política. Não basta se organizar apenas no teatro. Você está negando a política, e a vida não acontece sem ela. Em segundo lugar, é preciso cada vez mais usar o caminho do Legislativo, que tem mais condições e espaço e pode dar mais eco. A partir daí, criar sensibilizações no Legislativo, na própria sociedade e procurar usar com inteligência as verbas que estão disponíveis. Por exemplo: usar a verba da Educação para a produção cultural ainda é um tabu no Brasil, e eles têm muito dinheiro. Se São Paulo quisesse gastar R$1 bilhão por ano na Secretaria de Educação, poderia gastar. É questão de compromisso. Continuando, ter uma outra postura nas campanhas políticas, procurar fazer os candidatos assumirem compromissos para depois cobrar – do vereador ao Presidente. E usar a inteligência. Existe orçamento no Brasil, mas tem que usá-lo corretamente. Existe na Educação, nas leis de incentivo, nos orçamentos públicos. Tem cidades no Brasil que se quissessem gastar 5 ou 10% do orçamento com cultura, gastariam. Paulínia, São Sebastião, Barueri… O que não tem é o compromisso dos governos para gastar. Certamente a Câmara de Barueri nunca debateu cultura. É um município onde eles inventam obra, por que não sabem como gastar o dinheiro. Então o problema não é somente falta de recursos, é também o jeito de fazer. O ideal era que existisse um grupo cultural que levantasse isso, elegesse um vereador. Imagine que se você tivesse em cada parlamento do Brasl – são 5.500 municípios – pelo menos um vereador que debatesse cultura, você estaria mudando o parâmetro e criando novos paradigmas.
CeM: O senhor entao concordaria com a afirmação de que o setor cultural é um dos grandes responsáveisl pela falta de um maior desenvolvimento dessa área no país?
VC: A primeira função é do governo, de olhar a sociedade como um todo e montar um projeto para ela. Então, acho que os maiores culpados são os representantes legítimos, legais, que ganham para isso e foram eleitos para isso. Mas os artistas têm falhas nesse processo, por que apoiaram errado, por que não cobram, por que às vezes atuam mais na bajulação do que na cobrança, têm medo de fazer a crítica…Mas se quem projetou a sociedade não dá relevância à cultura, então está com uma leitura errada. Não entendeu a história de transformação do mundo, o que significa a cultura na história de vida de uma pessoa e de um país…então é esquizofrenia e sobra para os artistas.
CeM: Como o senhor avalia a atuação de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura?
VC: Eu acho muito forte em termos de representatividade e compromisso. O simbólico do Gilberto é muito forte. Agora eu acho que ele não dedica o tempo que deveria dedicar. Isso é um problema da administração pública no Brasil. Ela nao remunera bem seus dirigentes, e muitos a usam como atividade “lateral” na sua vida econômica. O próprio Gil negociou isso quando foi convidado para o Ministério. O padrão de vida dele não era para viver com R$8 mil por mês. Então eu acho que ele fica com a cabeça mais na sobrevivência dele do que no Ministério. E acho que a equipe executiva não toca à altura do que deveria tocar. Mas tem méritos. Ele foi lá, brigou, colocou a cara para bater e não teve o respaldo da classe artística naquele momento. Eu acho que os artistas não estavam organizados para respaldar o pedido do Gil de 1% para a cultura, e ele fez isso duas vezes. Eu acho que houve uma falta de sintonia entre o caminho do Gil e a sociedade cultural. Se tivessem se sintonizado um pouco mais, eu acho que teríamos tido um pouco mais de resultados e eu cheguei a falar isso para ele. Acho que ele fez sozinho, mas fez. Pelo menos foi o único Ministro da Cultura na história do Brasil que chegou e gritou. Ele tem méritos nesse aspecto e no que ele representa, mas acho que peca no administrativo, onde ele poderia ser mais ousado.
CeM: Após a saída de Gil do Ministério, o senhor acha que a cultura passará a ser percebida de outra maneira pela próxima gestão e até pelo próprio Governo Federal?
VC: Eu acho que está avançando. Se compararmos com os outros governos, há avanços significativos. Mas se você compara com um governo muito ruim, também está rebaixando seu padrão. O governo Fernando Henrique não existiu para a cultura. Eu acho que os avanços estão se acumulando, e a próxima gestão tende a ser melhor, principalmente no orçamento. Mas isso só avançará mais se houver respaldo dos artistas. No nível nacional, ainda precisamos de mais organização.
CeM: Qual sua visão sobre as leis de incentivo à cultura?
VC: O erro foi ter ancorados as políticas culturais em cima das leis de incentivo. Eu encaro como uma atividade complementar. Se você tem políticas públicas culturais, acho que as leis de incentivo são bem-vindas. É que o governo acabou achando que as leis eram panacéia para a cultura e isso ajudou a desvirtuar muito o debate e o papel das leis. Mas eu acho bom que existam mecanismos que incentivem as empresas a cumprirem seu papel dentro da responsabilidade social. Isso se debate muito nas empresas e no mundo, mas quando se olha esse item, as empresas não vêm a cultura como avanço social. O valor social na cabeça do empresariado em geral é ajudar a ação comunitária do bairro, mas a cultura não é contabilizada como cidadania. Tudo isso também precisa ser mudado, para a produção cultural passar a fazer parte dos relatórios, como geração de renda e principalmente, como construção de cidadania.
CeM: O Movimento Arte Contra a Barbárie vem demonstrando que a articulação do setor cultural e artístico pode representar avanços significativos para a cultura no Brasil. O Programa de Fomento ao Teatro, cuja lei é de sua autoria, entrou agora na sua 7a edição…
VC: Viva o Arte! Viva o teatro! Eu acho que até pela natureza do teatro, de conviverem juntos, eles acabam se reunindo mais e organizando mais. É diferente da música, que trabalha mais a individualidade e o talento pessoal. É um setor muito mais difícil de organizar. Acho que o teatro tem dado uma contribuição muito grande. Se não fosse o teatro aqui em São Paulo, dificilmente teria mobilizações e conquistas. A Lei de Fomento virou uma referência para o Brasil inteiro. Precisamos cada vez mais criar programas dessa natureza, para o circo, para a literatura…
CeM: O Programa de Fomento tem gerado controvérsias entre a classe teatral. Parte dela argumenta que os critérios para seleção dos grupos não são transparentes e que algumas companhias vêm sendo contempladas com muita freqüência. Qual sua avaliação do Programa, após esses anos?
VC: Acho que toda idéia, principalmente em caráter experimental – como foi essa lei – precisa ser melhorada. A crítica que se faz é que fechou muito. Mas fechou muito por que o dinheiro é pouco. São Paulo precisaria gastar 3% com a cultura, e gasta 1,2% ou 1,5% quando gasta muito. Então você só vai democratizar com mais recursos, não tem muito jeito. A outra crítica, de que muitos grupos receberam continuadamente o incentivo – e aí se critica a transparência – não é verdade. A transparência são os editais públicos, e a comissão pública de notório reconhecimento pelo setor. E eu acho muito justo que o grupo tenha a continuidade do trabalho dele. Por que ele recebe esse ano e no próximo não pode mais? O que aqueles artistas vão fazer? O correto é você ter grupos fixos e ir incorporando novos, e ter continuidade. Como você constrói um programa, um galpão, um projeto sendo que nesse ano você tem recursos e no ano que vem está no mundo da rua? Então, eu acho que essa crítica não é justa e tem uma visão errada. São Paulo tem condições de ter mais recursos, é só ter governos mais ousados nesse processo. Precisamos ter verbas, por exemplo, nas sub-prefeituras, trabalhar os grupos iniciantes, os grupos de periferia.Essa lei não é a panacéia para o teatro na cidade de São Paulo. É preciso ter outros mecanismos
André Fonseca