“Sob o véu da criação de fundos públicos e da eliminação da renúncia fiscal, observamos a criação de um mostrengo”
O demo vive agitado. Recentemente, debruçou-se sobre a reforma tributária, preocupado principalmente com a vida dos cidadãos em geral e particularmente atento às questões da cultura. Ele sabe que uma sociedade livre não pode ser sufocada fiscalmente pelo Estado e que ela depende também de um nível de cultura elevado, que não fique a reboque do aparelho estatal, com seus infindáveis problemas de caixa e, inclusive, com seus tormentos ideológicos. Se, além dos problemas de financiamento, os produtores culturais tiverem de enfrentar as orientações demagógicas de alguns governantes, aí, sim, teremos o pior mundo possível. Sabemos que esse é o alvo do demo, porém, dotado ainda de alguns escrúpulos, ele pensa que mais vale prevenir do que remediar.
Estamos observando todo um processo de discussão da reforma tributária em que os interesses maiores parecem ser os do Estado, em suas esferas federal, estadual e municipal, preocupado principalmente com problemas de caixa. A União procura aumentar o seu superávit fiscal e os Estados e municípios procuram criar condições de maior governabilidade, que são, na verdade, aquelas que lhes permitirão melhores condições eleitorais. Poucos parecem verdadeiramente preocupados com os cidadãos em geral e com as empresas, em particular, sem as quais não teremos nenhum desenvolvimento socioeconômico.
Em vez de uma reforma que procure diminuir a carga tributária, desonerando a produção e aliviando o bolso do contribuinte, oscilamos entre a manutenção da atual carga e o seu aumento. Fala-se de novo em “pacto federativo”. Por que não falar de um novo “pacto da cidadania”, deixando os cidadãos e as empresas com maior capacidade de iniciativa? Todos estão indo com muita sede ao pote. Poderá faltar água!
Numa reforma como a tributária, mais do que um problema fiscal, temos uma questão relativa a uma opção de sociedade. A opção em termos genéricos consiste na alternativa entre um maior poder concedido ao Estado e uma diminuição desse poder, fortalecendo a sociedade civil e suas formas de competitividade. No fundo, o que está em pauta é o tipo de sociedade que pretendemos construir, mais livre socialmente ou mais subordinada à burocracia estatal. É curioso como no debate em curso não se fale de uma necessária reforma da burocracia estatal, voltada para uma maior eficiência. Fica-se tão-só na demagogia. O demo ri pelos cantinhos.
A cultura, por sua vez, inscreve-se nesse processo da reforma tributária, não apenas sofrendo as mesmas vicissitudes, mas também sendo tributária da pouca importância que a sociedade brasileira, no seu conjunto, lhe atribui. O Brasil, contudo, começou a dar passos significativos nesse domínio com a Lei Rouanet, de 1991, e as inúmeras leis estaduais e municipais de incentivo à cultura via o que aparece para alguns como “renúncia” fiscal. Na verdade, não há “renúncia”, mas um ganho significativo do ponto de vista cultural, pois os agentes e produtores culturais ganharam uma esfera própria de atuação, independente da burocracia estatal e de controles ideológicos.
Apesar de imperfeições que devem e podem ser corrigidas, há aqui um princípio que não poderia ser contestado: o direito de a sociedade organizar-se por ela mesma, contribuindo financeiramente por meio dos incentivos existentes, dentro de um clima de competitividade e de livre iniciativa.
Ora, o projeto governamental procura, em nome da eliminação da renúncia fiscal, suprimir o incentivo à cultura e, o que é o pior, suprimi-lo a partir de uma suposta realocação desses recursos mediante a criação de fundos estatais. Para além do fato de que o projeto faculta aos Estados implementarem ou não esses fundos – o que já seria motivo de preocupação suficiente, pois dentro da penúria existente a cultura seria a primeira vítima -, ele reintroduz a idéia de que cabe ao Estado não apenas fiscalizar esses fundos e avaliá-los segundo a sua qualidade, mas também distribuí-los, retirando dos produtores culturais e das empresas a possibilidade de escolha. No sistema atual, cabe ao Estado acolher o pedido, tornando-o suscetível de receber os benefícios das leis de incentivo à cultura, e fiscalizar a utilização desses recursos. A primeira tarefa pode ser plenamente feita por pares e a segunda, pela burocracia estatal.
Ora, com a proposta em curso, são reintroduzidos:
O Estado como gestor cultural, retirando das empresas a sua livre iniciativa e a sua possibilidade de escolha; o peso da burocracia estatal, que faria a tramitação e distribuição financeira dos projetos, tendo como conseqüência o aumento dos custos administrativos, absorvendo uma parte dos valores transferidos da iniciativa privada; o problema da competência administrativa, em que caberia ao Estado avaliar, administrar, gerenciar financeiramente, escolher os participantes e fiscalizar a sua aplicação; a questão ideológica, pois os encarregados de todo esse processo poderiam simplesmente determinar que um tipo de arte seria financiado à exclusão dos outros, como já temos visto no País, recentemente.
Sob o véu da criação de fundos públicos e da eliminação da renúncia fiscal, observamos a criação de um mostrengo, nascido da conjunção de nossa tradição administrativa, que tudo transfere para o Estado, e da opção de nossos governantes em proveito de seus próprios quadros partidário-governamentais, em detrimento da sociedade. Será que a cultura merece mais esta asfixia?
O demo sorri novamente.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com Doutorado de Estado em Filosofia pela Universidade de Paris, é autor, entre outras obras, de Hegel (Jorge Zahar Editor, Coleção Passo a Passo) e editor da revista Filosofia Política, da mesma editora.
Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
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Denis Lerrer Rosenfield