A metareciclagem propõe a criação de uma ponte entre o mundo digital e a ecologia que pode começar pela transformação da sucata digital em tecnologia de ponta, indo além da superfície rasa do assistencialismo e ocupando a vazia dor da fome por tecnologia, conhecimento e pensamentos.
Já nas páginas doutrinárias da bíblia do marketing, ou da mercadologia, como preferem os puristas, escrita por Philip Kotler, que desde 1969 é basilar na formação dos profissionais da área, fala-se de ciclo de produtos e obsolescência planejada. Duas das estratégias vencedoras de um sistema que arremessa seus servis atores à ignomínia da exclusão do acesso a bens e à informação.
Segundo o guru do marketing, todo produto, sendo isso mais evidente entre os tecnológicos, está fadado a experimentar um ciclo de entrada e saída do mercado que obedece algumas etapas que ele reduz a três fases: na primeira, o produto é lançado a preço exorbitante e atrai a atenção da elite formadora de opinião; depois, ele deixa de ser novidade, passa a ser consumido pela classe média, enquanto a elite ocupa-se das novíssimas novidades de ocasião, para, na terceira fase, tornar-se obsoleto e circular pelas mãos da classe baixa; fase terminal em que, no máximo, servirá para desovar estoque, alimentar uma decadente indústria de peças de reposição ou uma cadeia de compra e venda de usados ou, ainda, a imaginação de diretores hollywoodianos ao conceberem undergrounds de reciclagem tecnológica como os de Matrix, Mad Max e de tantos outros pós-apocalípticos espetáculos da bestialização humana. Lógico que a explanação de Kotler, a este respeito, privilegia ensinamentos de estratégias mercadológicas e não esta visão ligada às dinâmicas de estratificação sócio-econômica.
Fato é que esta preciosa lição de Kotler remete a outro conceito, ao qual se associa para possibilitar a manipulação do mercado consumidor: a obsolescência planejada, que se traduz exatamente no planejamento deste ciclo, de modo a obter a maior rentabilidade de cada produto fase por fase de sua existência. Assim, criam-se distorções descabidas: desde o atraso proposital de lançamento de versões mais novas para aumentar a vida e o lucro da versão mais antiga, o que, no caso de medicamentos, é algo criminoso; até o lançamento seqüencial de versões que vão se tornando obsoletas cada vez mais rapidamente, gerando, em outro exemplo, um volume gigantesco de sucata tecnológica.
O que se pode dizer, trocando esta ladainha em miúdos, é que, se a geladeira que a sua avó ganhou de presente de casamento do padrinho dela durou 20 anos em casa antes de ser doada ainda funcionando, em 20 anos os computadores pessoais pularam daqueles TK-80 (que eram quase calculadoras amplificadas, ligadas a gravadores cassete e monitores de TV), a versões recentes com processador pentium!
Assim, não raro, encontra-se, entre os leitores, gente que, nestes últimos 20 anos, já teve uns seis automóveis e uns 10 computadores. Onde estão os outros cinco automóveis e onde estão os outros nove computadores? Parte deles, com certeza, já virou sucata. Não haveria melhor sorte? Melhor destino do que apenas aumentar a demanda por mais matéria-prima, exaurindo ainda mais o planeta de seus recursos naturais? Se os recursos acabarem, morreremos de fome?
Josué de Castro, que hoje procura um provedor celestial, denunciou a fome como “o flagelo fabricado pelos homens, contra os homens”. Agravam-se ainda mais as sombras deste espectro tenebroso se lembrarmos que a fome não é só por comida e que “mais grave ainda que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo”, como já apontava o recifense interessado no espetáculo do mundo.
“No mangue, tudo é, foi ou será caranguejo, inclusive o homem e a lama”. Assim explicou Josué como vive a população que morava, e ainda mora, em palafitas nos mangues do Recife. A ciência uma vez conseguiu juntar o mangue com o mundo. De lá saiu o mangue boy malungo Chico Science: “Oh, Josué eu nunca vi tamanha desgraça. Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”.
A periferia tecnológica, que a cada dia derruba o monopólio ao pé do ouvido, com sua antena suja de lama catada do lixo, tem alimentado milhões de caranguejos que vivem à margem do rio onde são despejados os dejetos do que ontem foi a tecnologia de ponta daqueles que não morrem de fome de conhecimento.
Os assistencialistas logo propuseram o recondicionamento dos componentes para doação em creches, escolas e outros tais que carentes. Os ecologistas contribuíram com a noção de reciclagem. Chico Science nos deixou a Nação Zumbi. Agora desponta o conceito de metareciclagem. Lux in tenebris!
Cláudio Prado, coordenador de políticas digitais do Ministério da Cultura, de carona na onda da web 2.0, nome dado à segunda geração da internet, que avança nas possibilidades de troca de informações e de interatividade entre usuários e a rede, simplifica: “Metareciclagem é algo do tipo, reciclagem 2.0 ou ecologia 2.0, ou seja, uma visão mais ampla sobre as questões ecológicas, pressupõe uma compreensão holística sobre o assunto”.
A metareciclagem propõe a criação de uma ponte entre o mundo digital e a ecologia que pode começar pela transformação da sucata digital em tecnologia de ponta, indo além da superfície rasa do assistencialismo e ocupando a vazia dor da fome por tecnologia, conhecimento e pensamentos. “Seremos conscientes de nossas raízes e do avanço tecnológico. Tecnologia significa ‘novo pensamento’. Pensar significa ir longe, além. E, para isso, o homem precisa comer. A ele foi dado o prazer da fome, através da tecnologia de sua natureza”, como já concluiu Chico Science.
Assim, mergulhados no real ritmo lento dos ciclos da vida e alheio à obsolescência planejada, lamas de Josué alimentam caranguejos de Kotler que, de tanto se alimentarem de lama, um dia morrem fartos para voltarem à lama a alimentar outros tantos famintos caranguejos. Da lama ao caos, do caos ao ponto, dos pontos às redes, das redes aos sistemas…
Os editores
4Comentários