Planeta Terra, América do Sul, Brasil, São Paulo, monitor de tv: o homem vai ser clonado! A notícia soa quase que banal, junto a outras, que destoam: mais de um bilhão deles vivem sem emprego e abaixo do padrão mínimo de dignidade estabelecido por órgãos internacionais de assistência. Se o homem pode ver tão longe, porque não enxerga ao seu redor?
Somos esmagados cotidianamente pelas conseqüências de alguma coisa a que chamamos progresso: industrialização ilimitada, reações químicas e biológicas fora do controle da razão, radiações e poluições múltiplas, depredações econômicas dos megas investidores, esses terríveis predadores que circulam pelo mercado mundial. A esse coquetel indigesto vem se juntar um toque de horror: o tráfico de pessoas e órgãos, a violência urbana, os conflitos armados e, sim, também somos esmagados pelos cataclismos naturais: inundações, terremotos, vulcões e vendavais.
Se nós, adultos, estamos assustados e desorganizados, imaginemos então as crianças, pequenos seres profundamente dependentes de um mundo para o qual elas não encontram explicação.
Mas nem tudo está perdido, pairando sobre nossas cabeças ainda há uma espécie de mágica, vemos a força da vida resistir e resistimos com ela. E, bem lá dentro de nós, sobrevivem a expectativa e a esperança. Nos pequenos detalhes parecem estar os indícios de uma mudança. Entre eles, uma necessidade vem se tornando óbvia e patente: a cada dia que passa precisamos de mais consciência cultural, social e planetária, que passa a ser a moeda forte de qualquer saída possível.
Nós, viventes que viemos do século passado, devemos ser diariamente a ponte por onde passa a história presente da humanidade. E, se possível, ser essa ponte de forma constante, conscientemente, fazendo tudo que estiver ao nosso alcance para nos tornar bons ascendentes. E a figura de ponta dessa postura perante a vida há de ser sempre a criança, que é nossa única possibilidade do passo seguinte.
Elas, as crianças, são como mensagens que enviamos ao futuro. Nas condições atuais de país periférico, no Brasil pouco fazemos além de atirar essas mensagens às águas de um mar proceloso e imprevisível. O que mais eu e você podemos fazer? A pergunta soa imprudente, mas não quer calar.
A verdade é que vivemos à margem do primeiro mundo e em um lugar onde os artigos dos direitos humanos soam por vezes como peças de uma ficção social. Temos muito o que fazer, talvez mais do que em qualquer outro lugar do planeta. Uma tarefa de gigante, tal como é nossa estatura geográfica.
Neste tipo de atividade, que é de conscientização e portanto deve atuar também no plano conceitual, as ações, por menores que sejam, são contabilizadas ainda muito mais pela intenção do que pelos resultados. É que havendo a intenção, qualquer que seja a atividade, esta se contará como um ponto a mais a favor em um placar que nos acusa uma goleada estonteante. Pudera. Os representantes que elegemos nestes anos todos só muito recentemente acordaram para a dimensão do problema.
A lei do Estatuto da Criança e do Adolescente é ainda muito recente no Brasil, foi promulgada em 1990. Sua insipiência agrava-se por uma abordagem por vezes um tanto incoerente e pelo seu conteúdo desatualizado, mesmo sendo poucos os seus anos de vida. Faltam ali temas importantíssimos como a responsabilidade penal, a instituição do trabalho e os investimentos na educação, por exemplo. Ainda assim, cresce a cada dia a importância de sua divulgação permanente junto a todos os setores e faixas etárias da população.
Conforme atesta o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan: “Os Direitos Humanos não são estrangeiros a nenhuma cultura e são nativos de todas as nações”. E aqui é preciso entender o Estatuto da Criança e do Adolescente como uma declaração de especificação etária dos proclamados direitos humanos universais – que nem sempre são locais.
Em mensagem encaminhada à Assembléia Geral das Nações Unidas, o Papa João Paulo II afirmou que “… a ONU tem, assim, contribuído de forma decisiva para o estímulo internacional dos Direitos Humanos, ajudando a criar e fortalecer as legislações nacionais e permitindo que milhões de homens, mulheres e crianças vivam com mais dignidade”, mas ponderou, “no entanto, ao observar o mundo atual, esses direitos fundamentais continuam sendo objeto de graves e constantes violações”.
No que diz respeito ao mundo do nosso lado de cá, em um rápido histórico podemos citar alguns dos mais importantes acontecimentos que colaboraram para que a historiografia brasileira passe a considerar as crianças no contexto social.
Os primeiros registros ocorrem somente no início do século 20, quando vemos pela primeira vez o Estado saindo de sua inércia e estabelecendo algumas diretrizes no tratamento da questão. É de 1902 a criação do Instituto Disciplinar do Tatuapé, em São Paulo, versão inicial da Febem. O surgimento deste Instituto representa a primeira consolidação prática das leis de assistência e proteção a menores que viriam a constituir o Código de Menores, de 1927.
Já em 1934 estava em plena atividade a Cruzada Pró-Infância, entidade beneficente fundada sob os auspícios da Associação de Educação Sanitária, com o objetivo de combater a mortalidade infantil, adotando os princípios dos Direitos da Criança e da Gestante, promulgados em convenção de Genebra ocorrida em 1924.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), da qual o Brasil foi um dos signatários, proclama a igualdade entre todas as crianças, independentemente de cor, sexo, riqueza, origem e religião. Suas conquistas foram inscritas em nossa Constituição de 1988 e são tributárias do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 13 de julho de 1990.
Reza o ECA, entre outras peças de ficção, “que toda criança tem direito igual à educação, que a criança deve ser tratada como prioridade absoluta da nação, sujeito de direitos, proibindo-se qualquer forma de discriminação ou exclusão”. Portanto, o que vemos hoje em toda parte, na verdade, são flagrantes desrespeitos à lei e aos preceitos constitucionais.
Em fatos e fotos – e na prática, hoje temos as crianças e adolescentes pontuando como nunca as matérias dos jornais. As chacinas, a delinqüência e criminalidade infanto-juvenis, as rebeliões nas instituições disciplinares próprias para menores, a imagem de meninos e meninas enegrecidos pelo carvão e pelo pó nas minas do país, os anjos doentes, prostituídos, os entes exauridos pela fome ou simplesmente depauperados pelo trabalho exaustivo e insalubre, os mendigos mirins, enfim, os meninos e meninas por todas as esquinas do Brasil. Onde estão os cidadãos investidos do poder, que não tomam uma atitude? Para que servem as leis e as autoridades, afinal? O que anestesia assim nossa indignação?
São questões desconcertantes e atuais, mas que dói ainda mais lembrar, estão longe de ser recentes. Em uma mostra de que o desprezo por uma solução dos problemas dos menores e a indiferença dos adultos vêm de longe, ouçamos o que dizia o médico baiano, Alfredo Ferreira de Magalhães, já em 1922: “A proteção dos meninos infelizes é ao mesmo tempo a proteção dos nossos filhos; devemos ter o máximo de interesse em alcançar para os meninos desgraçados uma certa dose de moralidade e felicidade, de saúde e de bem-estar (…) não se deverá esquecer também que as altas virtudes de uma elite de nada servem se nas camadas inferiores se acumulam seres cuja decadência nos inquieta”. Essas são, há anos, as notícias.
Mas nem tudo são espinhos. Há muita gente boa trabalhando na questão e temos algumas novidades positivas, ainda que no plano teórico ou restritas a pequenos grupos experimentais.
Diversas recomendações, programas e mudanças já se encontram aprovadas dentro do entendimento de uma Agenda Pela Infância no Terceiro Milênio, promovido pelos governos nacionais vinculados ao sistema das Nações Unidas.
Experiências interessantes no tratamento da questão da criança estão ocorrendo no campo prático ao redor do mundo. No Marrocos, por exemplo, busca-se deslocar o olhar e fazer uma abordagem pelo o ângulo das próprias crianças e não apenas pela visão do adulto sobre elas. Já foi apresentada na ONU a carta de seu Parlamento de Crianças, uma contribuição do mundo infantil à cúpula erada que se debruça sobre a questão sem representantes do público a que se destinam suas decisões.
Em países como a Suíça, França e Itália existem os Conselhos de Crianças, criados para que elas participem verdadeiramente dos processos de decisões das administrações públicas.
São conquistas de posições irreversíveis no sentido de uma contribuição social da criança para a organização global. O que falta agora é sistematizar estes movimentos, que pela primeira vez agregam a participação das crianças nos processos de construção e organização social da vida, no intuito de se estabelecer uma nova ordem dos valores comunitários das nações.
Já é hora de reconhecer que a diversidade cultural infantil é um tesouro que ainda não sabemos lapidar, ou melhor, que não se consegue transportar ou armazenar, é preciso que os humanos que estão na graça da infância possam eles mesmos se manifestar e possibilitar o estabelecimento de uma organização mais ampla e fecunda a favor de todos.
Nada de novo sob o sol. A sabedoria popular já aventava essa hipótese da participação da criança na decisão dos destinos sociais. É o que acontece em alguns lugares, por exemplo, na tradicional Festa do Divino Espírito Santo, em que é simbolizada a entrega do poder à criança, constituída Imperador.
Na representação deste auto popular de origem lusitana que se repete anualmente há séculos com suas variantes, a criança, então investida do poder, como primeiro ato resolve abrir as portas da cadeia da cidade e, em seguida, promove um imenso banquete aos pobres.
São apenas situações de uma festa popular de fundo religioso, mas que bem poderiam constituir uma metáfora para o que há de vir se um dia as crianças participarem efetivamente da mesa mundial de decisões. Um sonho. Mas antes de mais nada é preciso sonhar, para então ser formulado o desejo e depois instalá-lo na prática, forjando a realidade.
As crianças de hoje – e as que há em nós, agradecem.
PX Silveira é cineasta documentarista, dirige a Fundação Nacional de Arte em São Paulo, órgão do Ministério da Cultura. E-mail: rasilveira@hotmail.com
Px Silveira