Livro analisa os avanços e desafios do cinema na América Latina após a criação do Mercosul

Será que a criação do Mercosul aproximou os realizadores de cinema nos países que compõem o bloco econômico, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai? Afinal, o Mercado Comum do Sul, criado em 1991, previa, além da aproximação comercial, iniciativas conjuntas na área cultural. Essa questão foi o ponto de partida de uma investigação de seis anos empreendida pela jornalista Denise Mota. As respostas que ela encontrou podem ser conferidas no livro “Vizinhos Distantes” (Editora Anna Blume – R$ 30 – 206 págs.), que acaba de chegar às livrarias.

Na obra, desdobramento de sua dissertação de mestrado na USP, a autora analisa a produção cinematográfica em suas fases fundamentais: produção, distribuição e exibição, e busca mostrar como seus realizadores reagem às limitações e aos desafios de um mercado dominado pelas mega-produções de Hollywood. Para isso, ela entrevistou mais de 50 profissionais da área nos quatro países. O resultado é um retrato amplo do cinema na América Latina, sobre suas diferenças, semelhanças, entraves e alternativas, e ainda sobre a distância paradoxal entre países tão próximos. Para ela, a falta de organização e de união explica em parte essa característica. “Procuramos nos salvar sozinhos, sempre recorrendo a algum aliado estratégico, geralmente situado no hemisfério Norte”.

Com 13 anos de experiência em jornalismo cultural, Denise Mota conta que sempre foi atraída pela relação “esquizofrênica” que existe entre os latino-americanos. Um padrão que, segundo ela, não se dá apenas no cinema, mas também em outros setores. Refere-se, principalmente, ao desconhecimento da cultura vizinha – do Brasil em relação aos vizinhos hispânicos, e deles em relação a nós. “O Mercosul deu início a uma série de iniciativas e debates de cunho cultural e me pareceu um bom momento para uma reflexão sobre nossas percepções e problemas comuns, de como nosso imaginário dessa América Latina influencia os caminhos nas estruturas culturais desses países”, conta Mota.

Pedras no caminho

Apesar do suposto objetivo integracionista do Mercosul, as oportunidades culturais anunciadas não se concretizaram. Os velhos obstáculos continuam a existir, como a dificuldade no transporte de equipamentos de cinema entre as fronteiras. “É um pesadelo transitar com cópias na região, são cobradas as mesmas taxas impostas, por exemplo, a realizadores vindos da Coréia ou da Rússia, da Bélgica ou de Zanzibar”, afirma a autora. É uma constatação praticamente unânime que os avanços da indústria cinematográfica sul-americana nada teve a ver com a criação do bloco. “Ainda é preciso ir à Europa para comprar um filme argentino”, ressalta o exibidor e distribuidor Adhemar Oliveira, criador do Espaço Unibanco de Cinema, em umas das entrevistas reproduzidas em “Vizinhos Distantes”.

A incursão do livro no universo cinematográfico sul-americano enfatiza outro entrave, provavelmente o mais complexo de todos: a distribuição, estruturada não só na América Latina, mas em todos os lugares do mundo, para o produto norte-americano, que, naturalmente, não beneficia cinematografias locais. “Os realizadores precisam se organizar de forma conjunta, em busca de alternativas para que as produções locais possam ser vistas”, avalia Mota. De acordo com a jornalista, “todos os entrevistados do livro apontam para o fato de que, além de iniciativas estatais necessárias e bem-vindas, o empenho pessoal em derrubar barreiras se faz necessário”, segundo ela, algo que não acontece.

Se os caminhos do cinema latino-americano não estão repletos de flores, nem tudo é espinho. O livro “Vizinhos Distantes” traz um balanço dos avanços regionais e das iniciativas que concretamente contribuíram para uma maior integração entre os países do bloco. Do cenário árido do início da década de 90 aos dias atuais, mudanças significativas aconteceram. A criação dos Festivais Cinesul (Festival Latino-Americano de Cinema e Vídeo) e Florianópolis Audiovisual Mercosul, além do acordo entre a Ancine e a Incaa (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, da Argentina) para exibição de filmes argentinos e brasileiros nestes países, são alguns exemplos citados no livro. “Se os frutos não são tão visíveis, a busca por soluções para os desafios comuns do cinema da região persiste”, observa Mota.

Vácuos jurídicos

A mudança de rumos assistida a partir do Mercosul em grande parte teve a ver com a criação de políticas de incentivo ao cinema – em um primeiro momento para fomento da produção, tanto no Brasil como nos demais países do bloco. Políticas que atualmente estão se ampliando para outros setores, mais problemáticos, como os de distribuição e exibição. “Apesar das limitações e distorções da Lei do Audiovisual, ela possibilitou avanços muito significativos para o cinema brasileiro”. O mesmo aconteceu na Argentina, Uruguai e Paraguai. Na opinião da jornalista, essas leis precisam ser melhoradas para que não só o cinema “mainstream” possa continuar a ser feito, mas que outros realizadores possam encontrar condições de concretizar e levar às telas propostas independentes de cinema.

No Brasil há uma critica comum de que a Lei do Audiovisual acabou deixando a cargo dos departamentos de marketing das empresas a escolha do projeto cinematográfico a ser apoiado. Na Argentina, é o Estado quem tem o poder de julgar qual projeto é de “interesse especial” e, portanto, contará com benefícios extras do Incaa. Também é ele que decide quais filmes não são de “interesse especial”. No Uruguai, a crítica é que o prêmio Fona (dedicado ao cinema) depende da contribuição dos canais de TV, permanentemente em dívida e, portanto, parceiros pouco confiáveis. Já no Paraguai, o problema é com o Fondec, fundo para as artes, que, além de conceder poucos recursos, é destinado a projetos de todas as áreas artísticas. Um exemplo é o filme “Hamaca Paraguaya”, premiado em Cannes, que custou aproximadamente 620 mil euros, dos quais apenas 14 mil foram concedidos pelo Fondec. Para Mota, “as brechas criadas nas leis e fundos fazem com que o cinema tenha que estar submetido a um sem-fim de variáveis não só oriundas das estruturas político-econômicas de cada país, mas em conseqüência do “modus operandi” da cultura nesses lugares”.

O diagnóstico que nos mostra o livro “Vizinhos Distantes”, no entanto, indica que a guinada conquistada pelos países da região merece atenção e, óbvio, investimentos. Brasil e Argentina apresentam atualmente média de 10% de ocupação do mercado nacional para produções nacionais. No Uruguai, o filme de maior bilheteria na história do país, “En la Puta Vida”, fez 140 mil espectadores, algo como 5% da população total do país, o que, segundo a autora, é um enorme feito. “Seria como se algum filme brasileiro tivesse público de 9 milhões, por exemplo”, explica. “Há potencial para que se amplie o mercado interno das produções nacionais em seus países de origem, porém não existem estruturas que possibilitem ou estimulem isso”. A tão sonhada integração entre os países latino-americanos, segundo Denise Mota, depende de um maior conhecimento desses problemas e misérias comuns, e da disposição para enfrentá-las com criatividade e iniciativas que, mesmo pequenas, sejam constantes e organizadas.

Carlos Minuano


editor

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