ECONOMIA DA CULTURA - A Menina sem Nome e a economia sem medida - Cultura e Mercado

ECONOMIA DA CULTURA – A Menina sem Nome e a economia sem medida

Seminário Internacional em Economia da Cultura, realizado em Recife, reacende a necessidade da centralidade da cultura nos debates econômicos. Para além das indústrias, as expressões manifestam-se de maneira complexa, mas estudos podem ajudar a compreender fenômenos.

RECIFE – Seminário Internacional em Economia da Cultura, realizado em Recife, reacende a necessidade da centralidade da cultura nos debates econômicos. Para além das indústrias, as expressões manifestam-se de maneira complexa, mas estudos podem ajudar a compreender fenômenos.

A Menina sem Nome
O Cemitério de Santo Amaro, no Recife, tem mais de 150 anos e milhares de túmulos. Um deles se destaca em visitações e oferendas, principalmente em dias santos. Na lápide, a inscrição “Menina Sem Nome” há de ser estranha para os homens sem fé. Mas um pouquinho da história oral, descoberta em ruas e mesas de bar, ajuda a compreender o fenômeno.

Há cerca de 30 anos, um crime brutal ensangüentou as páginas sensacionalistas dos jornais pernambucanos. Um pescador encontrou um corpo de uma criança estuprada em uma praia urbana do Recife, e nenhuma notícia sobre seu paradeiro ou identidade foi descoberta pela polícia. Apesar de o fato ter sido amplamente divulgado pela imprensa, nenhuma família apresentou-se, e a criança abandonada, cujo nome não se conhece, foi sepultada, como indigente, numa cova comum.

Uma funerária local, sensibilizada com o caso, patrocinou o enterro justo, com os sete palmos de terra em baixo do chão e com as devidas homenagens finais dos populares. Dois anos depois, conta a lenda, quando foram retirar a ossada, a garotinha permanecia intacta. Do fato à lenda e da lenda à devoção, não levou muito tempo. Sem que se saiba precisar exatamente quando o túmulo começou a ser alvo da atenção da população. Com o passar do tempo, a informação midiática e a ajudinha da funerária, o túmulo se transformou num verdadeiro espaço de devoção popular.

Esses santos não-canônicos fazem parte de uma temática ainda pouco pesquisada no Brasil. E é claro que a Menina Sem Nome não fez nenhuma aparição no Seminário Internacional em Economia da Cultura, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, entre os dias 16 e 20 de julho. Nem baixou por ali, nem foi downloadeada em pesquisas ou diálogos. Nem sequer fora citada em nome de “Sem Nome”.

A economia sem medida
Mais importante do que isso, cabe a discussão sobre a economia do cinema, talvez para explicar a crise de um setor industrial que produz mais do que tem de público para consumir, como aponta Sérgio Sá Leitão. Antes, melhor compreender ou tentar resignificar o termo economia da cultura. “Do ponto de vista da economia, a expressão ‘economia da cultura’ identifica o conjunto de atividades econômicas relacionadas à cultura. Do ponto de vista da cultura, trata-se do conjunto das atividades culturais que têm impacto econômico”, define Leitão.

Segundo ele, pode-se incluir neste conjunto qualquer prática direta ou indiretamente cultural que gere valor econômico, além do valor cultural. A economia é, portanto, uma das dimensões da cultura. E a “economia da cultura” constitui um campo da economia. Pode-se falar ainda em uma “cultura da economia”. De que modo a economia impacta a cultura? E de que modo a cultura impacta a economia? São duas linhas de pesquisa distintas, mas relacionadas. “Toda inovação resulta de cultura aplicada à economia”, pontua.

Existem, portanto, duas visões possíveis para debater economia da cultura: a econômica e a cultural. Sob o aspecto econômico, Leitão afirma que “cultura é mercadoria. Mas mercadoria distinta, com duplo valor: econômico e cultural”. Para ele, mensurar economicamente a cultura não é só possível, mas principalmente necessário, pois análises econômicas ajudam a entender fenômenos culturais.

Economia Audiovisual
Mesmo com os números e as pesquisas ajudando a entender os fenômenos culturais, Otavio Getino entende que a economia da cultura acontece independentemente de tais análises e mediações de políticas públicas. No entanto, as outras artes, segundo ele, como literatura e música, existem independente de uma indústria organizada e regulada.

“O audiovisual tem uma grande incidência com seus valores intangíveis e simbólicos. Por ser uma mídia que converge a outras expressões, as películas têm o poder de carregar informações capazes de movimentar outras indústrias e cadeias produtivas, com a venda dos valores simbólicos agregados à publicidade de produtos ou de padrões de consumo. O que torna todas as outras economias culturais, também”, justifica Getino.

O que acontece com o cinema está relacionado diretamente com outros meios, como a internet e a telefonia móvel: “Cada vez mais essas mídias são convergentes e abalam a hegemonia da televisão e do cinema e toda a sua mensagem simbólica”.

A venda de produtos e serviços baseados em conteúdos audiovisuais em 2005 no mundo, segundo Sérgio Sá Leitão, foi de 342 bilhões de Euros. O valor é quase o dobro das vendas mundiais de eletrônicos de áudio e vídeo. Ou 30% maior do que as vendas mundiais de servidores, computadores e periféricos. O setor apresentou um crescimento anual médio de 5,6% ao ano entre 2000 e 2005.

O segmento de cinema (exibição, vídeo rental, sell, online, mobile, PPV, cabo, TV aberta) passou de US$ 64,16 bilhões em 2001 para US$ 80,47 bi em 2005, devendo chegar a US$ 104 bi em 2010, crescendo entre 2006 e 2010 a uma taxa média anual de 5,3%.

Na América Latina: US$ 1,28 bilhões em 2001; US$ 1,76 bi em 2005; US$ 2,26 em 2010. Crescimento 2006-2010: 5,1%. Ou seja: cerca de 2% do mercado mundial e taxa de crescimento ligeiramente abaixo da média global. No Brasil: US$ 448 milhões em 2001; US$ 567 mi em 2005; US$ 722 mi em 2010. Crescimento 2006-2010: 5%. Ou seja: cerca de 33% do mercado da AL é menos de 1% do global e taxa de crescimento igual à da AL e ligeiramente abaixo da global. O Brasil é o segundo mercado de cinema da AL, ficando abaixo do México (US$ 816 milhões em 2005). Mas é o primeiro de produção para TV.

Questões decisivas apontadas por Leitão por esse baixo desempenho é a falta de filmes nacionais capazes de competir; distribuição ineficiente; falta de salas de exibição; poucas vendas internacionais dos filmes nacionais, ramo para onde Leitão, depois de cinco anos ligado ao governo federal, está partindo, por iniciativa privada.

Embora concentre boa parte da política pública e do financiamento público, o cinema é apenas cerca de 3% do mercado brasileiro de audiovisual, se pensarmos no mercado de exibição (salas de cinema). Somando a participação do cinema no segmento de vídeo doméstico e na TV por assinatura, chegamos a 6%.

Apenas recentemente o poder público acordou para a necessidade de formular políticas públicas articuladas e expandir o sistema de financiamento público para segmentos absolutamente estratégicos e relevantes como a produção independente de TV, no qual se destaca a área de animação, e a realização de games. Sá Leitão lembra que o governo federal brasileiro investiu entre 2003 e 2006, através dos dois órgãos afeitos ao tema (Ancine, SAV) e dos mecanismos existentes (orçamento da SAV, orçamento da Ancine, Lei Rouanet, Lei do Audiovisual), um total de R$ 648,11 milhões na atividade, principalmente no cinema.

Sérgio Sá Leitão constata ainda que o Brasil é um mercado concentrado e distorcido. A concentração manifesta-se em todos os aspectos: as salas de cinema estão em apenas 8% dos municípios brasileiros; das 2.200 salas de cinema existentes no Brasil, cerca de 600 concentram perto de 70% do faturamento. 80% dos ingressos vendidos em salas de cinema estão em mãos de 4 distribuidoras, nenhuma delas brasileira. Apenas uma rede de TV por assinatura nacional controla 80% do mercado. E uma única rede de televisão aberta detém 70% do bolo publicitário e 51% da audiência.

É distorcido porque há excesso de salas de cinema em determinadas regiões das grandes cidades e absoluta inexistência em outras regiões de grande densidade populacional. O mercado de DVD já é maior em faturamento do que o mercado de salas de cinema, mas seus números não são conhecidos por quem produz. Praticamente toda a produção veiculada pelas emissoras de televisão aberta é produzida por elas mesmas. Apesar da diversidade de canais na televisão por assinatura, são poucas as programadoras nacionais e os canais dedicados ao produto nacional. E, apesar da produção cinematográfica e audiovisual brasileira movimentar grandes somas para sua realização e atingir resultados importantes no mercado, não há mecanismo de retro-alimentação da produção, tornando-a dependente de recursos públicos e editais, nos quais, às vezes, impera a subjetividade, e não o histórico de resultados ou o reconhecimento de mercado ou critérios objetivos de seleção.

“A constatação desta realidade do mercado brasileiro impõe uma Política Nacional de Cinema e Audiovisual que se oriente pela desconcentração e pela correção das distorções. Mas a engenharia complexa que se apresenta é fazê-lo pela via do crescimento do mercado, alargamento do horizonte dos agentes econômicos e estímulo de melhores práticas”, pontua Leitão, que afirma que o desafio é tornar o mercado atraente o bastante para que novos empreendedores e investidores entrem em cena, para qualificar melhor os diversos agentes econômicos atuais, para implementar novos modelos de negócios e buscar uma internacionalização significativa, capaz de atrair recursos novos para o setor.

Pouco distante dos grandes números, mas vítima de uma economia de gigantes, um grupo de jovens produtores começou no último dia 19 a filmagem de sua quarta produção de curta-metragem apenas neste ano. Tema do filme: a tal Menina Sem Nome. Refletindo a produção e distribuição independente que procura reencontrar a inspiração nas sabedorias populares, e fazem movimentar um setor que cada vez se afunila mais em suas cadeias produtivas.

Fora das cadeias, o fazer cinematográfico de idéia na cabeça e câmera na mão faz-se assistir em novas possibilidades, em filmes disponíveis a qualquer um pela grande rede, ou até mesmo conquistando as mídias tradicionais, em filmes de bolso, de baixa resolução ou até mesmo com estréia em telona de documentário filmado todo em câmera cybershot, como o filme O Guru Selvagem, de André Martinez.

A economia da cultura, enfim, só para repetir, acontece como acontece cultura. Isso pela dificuldade em se calcular a transversalidade das questões culturais com as questões econômicas. Para o IBGE realizar uma pesquisa sobre cultura no Brasil, por exemplo, a estratégia adotada foi espalhar a equipe de estudo entre todos os setores de pesquisa do Instituto de pesquisa oficial brasileiro. Resultado de uma lógica complexa de pensamento, porém, necessária.

Afinal, como calcular o quanto teria investido aquela funerária no tal enterro da Menina Sem Nome, e o que isso trouxe em tantos outros caixões de pessoas com nomes, por terem fé em uma menina sem nome, e o que a produção cinematográfica sobre essa história pode atrair de novos fiéis da santa sem nome e de formação de público para um mercado carente de consumidores. Quais números poderiam explicar? Ou melhor, quem pode batizar uma menina sem nome? Ou, até, que tipo de política de comunicação poderia transformar a Menina Sem Nome em milhões e milhões de santinhos iguais aos de Frei Galvão?

* A reportagem participou do Seminário Internacional em Economia da Cultura a convite da Fundação Joaquim Nabuco – MEC.

Carlos Gustavo Yoda*

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