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Desafios à gestão de Ana de Hollanda

A principal virtude da gestão dos ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, cobrindo os oito anos do governo Lula, foi o reconhecimento da importância de identidades sociais historicamente marginalizadas como meio de inclusão social. Pretendeu-se imprimir em indígenas, idosos, jovens, deficientes físicos (ou, em termos politicamente corretos, portadores de necessidades especiais), dentre outros grupos, o selo da “cidadania cultural”, que concebe a participação na sociedade brasileira não somente em termos de direitos e deveres em áreas como educação, saúde e segurança, mas também como direito à expressão das múltiplas formas de experiências simbólicas, do estar-no-mundo, de vivências subjetivas da realidade objetiva. Ser cidadão é ter uma vida socialmente digna bem como culturalmente satisfatória.

Neste sentido, o Ministério da Cultura trilhou o caminho da modernidade, sem que haja, aqui, qualquer julgamento de valor. Modernidade significa diversidade, “ecletismo pluralista”, heterogeneidade. Diferentemente do que acontecia na Idade Média, nas sociedades feudais, com sua hierarquia de valores, autoridades centrais facilmente localizadas (o clero, por exemplo), a sociedade moderno-contemporânea exibe uma pletora de autoridades parciais, sem relação necessária entre si. A partir de então, em maior ou menor grau, o indivíduo moderno, liberto das amarras opressoras da sociedade tradicional, passou a trilhar seu caminho consciente da responsabilidade sobre suas escolhas, circulando por “redes” ou “províncias” de significado aparentemente contraditórias, mas que, analisadas contextualmente, são dotadas de sentido em si mesmas.

Pensemos, por exemplo, num alto executivo que, no dia-a-dia, exibe um semblante fechado e que, uma vez por ano, inverte os papéis sociais quando, nas folias de momo, sai fantasiado de baiana. Não, ele não é esquizofrênico; é, sim, alguém imbuído daquilo que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chamou de “moderna individualidade intramundana” e que Georg Simmel preferia chamar de “individualismo qualitativo”. Os tempos modernos incumbiram os indivíduos da responsabilidade de construir suas identidades sociais (“quem sou”, “como devo viver”) e as conseqüências das escolhas feitas. O individualismo, aqui, é um valor, significa a ausência de uma norma inequívoca capaz de proporcionar uma receita definida para cada “projeto de vida”. O projeto de vida muda de acordo com os caminhos que tomam em cada momento de nossa vida, de nossa biografia individual, construída não pelo isolamento, mas através da interação social, do contato com o outro, o diverso. Biografias são produtos da Modernidade. O indivíduo moderno é plural, é diverso. Sociedades complexas, indivíduos complexos.

Em seu discurso de posse, a nova Ministra da Cultura, Ana de Hollanda, afirmou que um dos maiores legados da gestão anterior foi o reconhecimento da diversidade cultural brasileira como valor a ser cultivado. Disse ela:

A política cultural, no governo do presidente Lula, abriu-se em muitas direções. O que recebemos aqui, hoje, é um legado positivo de avanços democráticos. É a herança de um governo que se compenetrou de sua missão de fomentador, incentivador, financiador e indutor do processo de desenvolvimento cultural do país.

Sua principal característica talvez tenha sido mesmo a de perceber que já era tempo de abrir os olhos, de alargar o horizonte, para incorporar segmentos sociais até então marginalizados. E abrigar um conjunto maior e mais variado de fazeres artísticos e culturais. Em conseqüência disso, muitas coisas, que andavam apagadas, ganharam relevo: grupos artísticos, associações culturais, organizações sociais que se movem no campo da cultura. E se projetou, nas grandes e médias cidades brasileiras, o protagonismo colorido das periferias.

O reconhecimento da diversidade cultural deve vir acompanhado de políticas públicas que dêem acesso, a toda a população brasileira, à ampla gama de manifestações simbólicas encontradas do Oiapoque ao Chuí. Desta forma, o cidadão que era culturalmente marginalizado tem a possibilidade de não só expressar-se quanto ampliar suas referências simbólicas, seus modos de experimentar o mundo, de viver a vida através da dança, do teatro, da música, das artes visuais, do cinema, do artesanato, da gastronomia etc. Possibilitar a vivência da diversidade também será, de acordo com a nova ministra da cultura, uma das diretrizes de ação de sua gestão:

Erradicar a miséria, assim como ampliar a ascensão social, é melhorar a vida material de um grande número de brasileiros e brasileiras. Mas não pode se resumir a isso. Para a realização plena de cada uma dessas pessoas, tem de significar, também, acesso à informação, ao conhecimento, às artes. É preciso, por isso mesmo, ampliar a capacidade de consumo cultural dessa multidão de brasileiros que está ascendendo socialmente. Até aqui, essas pessoas têm consumido mais eletrodomésticos – e menos cultura. É perfeitamente compreensível. Mas a balança não pode permanecer assim tão desequilibrada. Cabe a nós alargar o acesso da população aos bens simbólicos. Porque é necessário democratizar tanto a possibilidade de produzir quanto a de consumir.

A fruição cultural depende, obviamente, de que produz o bem simbólico. A criação, “será o centro do sistema solar de nossas políticas culturais e do nosso fazer cotidiano”, segundo Ana de Hollanda, porque “não existe arte sem artista”.

Tudo bem que muita gente se contente em ficar apenas deslizando o olhar pela folhagem do bosque. Mas a folhagem e as florações não brotam do nada. Na base de todo o bosque, de todo o campo da cultura, está a criatividade. Está a figura humana e real da pessoa que cria. Se anunciamos tantos projetos e tantas ações para o conjunto da cultura, se aceitamos o princípio de que a cultura é um direito de todos, se realçamos o lugar da cultura na construção da cidadania e no combate à violência, não podemos deixar no desamparo, distante de nossas preocupações, justamente aquele que é responsável pela existência da arte e da cultura.

Podemos relacionar o discurso da Ministra da Cultura e os desafios postos à gestão que se inicia com a questão da Modernidade e do indivíduo por ela forjado. Expressar-se culturalmente, de tantas maneiras quantas forem possíveis, não diz respeito apenas à suposta “liberdade” característica do individualismo nas sociedades modernas democráticas. A liberdade, em si, de nada adianta. Podemos fazer ou experimentar tudo aquilo que queremos, mas muitas destas “coisas” a que aspiramos só nos são acessíveis por meio de compra e venda. Portanto, ser livre é condição necessária, mas não suficiente para caracterizarmos uma sociedade culturalmente democrática. Analisando o conceito de “liberdade”, Bauman lembra da expressão “Podem dizer o que quiserem. Este é um país livre”:

Nuestra expresión sugiere que lo único que importa al hacernos y mantenernos libres es que la “sociedad libre”, que es una sociedad de individuos libres, no nos prohíbe realizar nuestros deseos y se abstiene de castigarnos por tales acciones. Sin embargo, ahí el mensaje se vuelve confuso. La ausencia de prohibición o de sanciones punitivas es, en verdad, condición necesaria para actuar de acuerdo con nuestros deseos, pero no suficiente. Podemos ser libres para salir del país a voluntad, pero no tener dinero para el billete. (…) Para hacer cosas, necesitamos recursos. Nuestra expresión no nos promete tales recursos, pero pretende – erróneamente – que eso no importa. (p.11)

Este é, talvez, o maior desafio à gestão que se inicia no Ministério da Cultura: aprofundar programas e ações que dêem vida à tão propalada diversidade cultural brasileira, democratizando o acesso de produtores aos recursos financeiros e de consumidores aos bens e serviços culturais. O choque de gestão prometido pela presidente Dilma Rousseff tem de acontecer também no âmbito das políticas públicas de cultura, especialmente na área dos editais e na consolidação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Sociais, já em fase de implantação. A democratização do acesso é diretamente proporcional à eficiência na gestão tanto dos recursos orçamentários quanto das informações geradas pelos programas e ações levadas adiante pelas Secretarias do MinC e pelas instituições a ela vinculadas. Na sociedade da informação e do consumo, exigir menos que isso é anacronismo. Torçamos para que as palavras de Ana de Hollanda saiam do papel e ganhem as ruas desse caleidoscópio cultural chamado Brasil.
Referência bibliográfica
BAUMAN, Zygmunt. Libertad. Buenos Aires: Losada. 2007.

Marcelo Gruman

Antropólogo e especialista em gestão de políticas públicas para a cultura. Administrador cultural da Funarte.

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  • O maior desafio da Ana, será enfrentar a porteira aberta pela internet e amplamente entendida por Gil como libertadora, uma resposta ao capitalismo que valoriza o cidadão ante a dominação da propriedade intelectual que gera lucro em 99% dos casos apenas aos paises ricos e em 65% dos casos apenas aos americanos. Sendo na verdade um intrumento de dominação imperialista, o mesmo que o quinto do rei, uma forma de perpetuar a escravidão.
    A defesa estrita do criador, se feita via procedimentos atuais (ecad, editores, tratados, gravdoras, conexos, jabá), na verdade se consolida como valorização do modo capitalista de produção, o que significa valorizar o intermediario da produção, o dono da voz ao invés de valorizar os novos dtentores dos meios de produção, que é o atual modelo produtor/consumidor, onde todos são criadores... Lamento, mas discordo de toda e qualquer esperança já manifestada sobre o novo ministério neste sentido. Já para a música, ao menos boa aperte da agenda é comum com os interesses dos movimentos civis, ai reside uma esperança. Mas o grande nó continuará atado sendo um retrocesso ao que já foi feito.

  • Marcelo, permita-me colocar algumas questões nesta bela reflexão. Sou de uma cidade que os historiadores classificam como o estandarte político do Estado Novo de Getúlio Vargas, não só do ponto de vista do início da era industrial em 1942 com a implantação da primeira indústria de base no Brasil, a CSN, mas, sobretudo em um projeto social e cultural que tinha a ambição de estabelecer dentro de uma cultura nova, de uma familia classificada como "familia siderúrgica", a fecundação do no homem brasileiro. Um homem moderno, capaz de ser ao mesmo tempo receptador e transmissor de todo um pensamento desenvolvimentista que nasceria no Brasil naquele momento.

    Enfim, Volta Redonda foi criada como um grande laboratório da sociedade moderna brasileira. Passados todos esses anos de uma cidade eminentemente estatal e agora, depois de quase duas décadas da privatização da CSN, o que representou uma mudança estrutural inversa ao que se tinha, podemos, ampliando o diâmetro desse corpo, começar a pensar nas razões e eficácia das políticas de Estado e suas naturais concentrações para desenhar determinada luz e a fragmentação imediata desse corpo com a privatização da CSN.

    Hoje, Marcelo, fazendo uma autópsia, podemos dizer que o Estado que morreu na cidade trabalhou para uma comunhão em determindo ponto e ângulo, mesmo que suas ações públicas buscassem todas as formas de intercurso entre gerações e culturas distintas que chegaram em 1942 para refundar o Brasil aqui na cidade através de um conceito de cidade moderna em busca da industrialização.

    Na cultura, por exemplo, as políticas de comunhão altamente rentáveis para novas fusões, foram estimuladas de maneira absolutamente suave por um canal de sedução e aproximação entre a nova sociedade, sobretudo os filhos dos trabalhadores da siderurgia e o Estado com uma intensa política de fomento nos cantos corais, bandas marciais e fanfarras. A rádio siderúrgica absorvia as novas fusões técnicas dos sons que se constituiam através de novas químicas culturais, grupos vocais, instrumentais, semi-profissionais ou amadores, mas com um bom padrão artítico, misturavam-se a uma programação que seguia a grade das rádios públicas Brasil afora.

    Fora dessa política de Estado, essa mesma sociedade nutria, através de sua memória afetiva, suas manifestções de origem, ou seja, esse mesmo trabalhador sem apoio ou sem a repressão do Estado, mantinha muitas tradições que chegaram em sua bagagem ancestral e se manifestavam de forma aleatória às políticas do Estado. Folias de reis, jongos, congadas, calangos, catiras, enfim, expressões naturais sustentadas ou criadas como as agremiações de samba, blocos e escolas fundadas por uma segunda via integradas com o Estado através do trabalhador, como numa inversão.

    Pois bem, Marcelo, Volta Redonda é uma cidade que respira uma excelência musical fantástica e já emprestou ao Brasil e ao mundo nomes de expressão musical em vários segmentos, e essa atmosfera ainda está em processo bastante efervescente, o que mostra que o estado teve papel fundamental no estímulo à cultura espontânea e técnica. No entanto, com a privatização, todos os projetos, inclusive a banda de música da CSN, foram decaptados, fundando um novo ciclo restrito à imagem da Fundação CSN, absolutamente distante da comunidade.

    O que surpreende é que aquela cultura espontânia aqui chegada por sua conta e risco com os arigós, exibe uma musculatura extraordinária e em plena expansão, sem qualquer anabolizante estatal ou privado. Hoje, no encontro de folias de reis, por exemplo, que acontece aqui anualmente no mês de janeiro, este último encontro reuniu mais de 25 folias e um público de, aproximadamente 20 mil pessoas, isso ao longo do dia. O mesmo se deu no mês de dezembro quando no Dia Nacional do Samba, comemoração que aconteceu pela primeira vez aqui em Volta Redonda num bar tradicional num bairro eminentemente constituido por negros, e que reuniu durante o dia e varando a madrugada, pelo menos, 10 mil pessoas que iam se revezando como público, mas também como músicos e cantores da roda de samba, numa dinâmica extraordinária.

    Coloco todas essas questões para lembrar uma frase brilhante de Mário de Andrade, "Uma arte nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos. Uma arte nacional já está feita no inconsciente do povo". Portanto, para que o Estado tenha êxito, basta que ele funcione pelas razões descobertas a partir da sociedade, sabendo construir um círculo de luz, oferecendo estudos, pesquisas e a lógica de trabalhar os diferentes movimentos do corpo social, fazendo da linguagem da sociedade a própria voz do Estado como instrumento de integração.
    Abraços.

  • Excelente a frase que diz que podemos ter a liberdade, mas se não temos o dinheiro...
    De fato!!! A cultura ( e aqui falo da arte) pública precisa de subvenção. Principalmente quando o diálogo é tranversal e está atrelado a questões sociais.
    Eu como artista e cujo trabalho está diretamente ligado ao segmento social posso afirmar que ao indivíduo marginalizado é importante oferecer qualidade de investimento no profissional seja ele de formação acadêmica ou portador de tradição e nas produções.

  • Em curtas palavras, a continuidade das Conferências de Cultura significará bastante no desenvolvimento da divesidade cultural desses nossos Brasis.

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