Em entrevista ao jornal goiano O Popular, o advogado Fábio Cesnik comenta as leis de incentivo à cultura. ?O problema não está nas leis, mas na concepção de uma política geral de cultura?Apenas três empresas são responsáveis por cerca de 70% dos recursos captados pela Lei Rouanet. Canções de Villa-Lobos concorrem com carnaval fora de época; Xuxa concorre com Júlio Bressane.

Essas e outras distorções das leis de incentivo são comentadas pelo advogado Fábio Cesnik, especializado em incentivos fiscais à cultura. Lei entrevista concedida à jornalista Nádia Timm, do jornal O Popular.

Qual sua opinião sobre as leis de incentivo à cultura?
A lei é um elemento dentro da construção de uma política pública de cultura. Não pode ser, como no caso da Lei Rouanet, o único mecanismo oferecido pelo Estado para os produtores conseguirem recursos, financiamento ou realizarem parcerias. Hoje é o único mecanismo para todos os segmentos. Isto fez com que tenha sofrido distorções, como não atender o conjunto dos projetos. Tem projeto que é função do Estado, que deve ser financiado por ele, e tem aqueles que são da indústria cultural. Todos são importantes, cada um tem seu papel.

Quais são os objetivos de uma lei de incentivo cultural?
O primeiro é canalizar recursos para determinado segmento. Teria de ser mais claro, se você quer canalizar para o aspecto industrial ou para função do Estado. Segundo, gerar uma cultura de investir em cultura. Quer dizer, cada empresa que investe em cultura, mesmo sem a lei, vai continuar investindo em cultura.

Quais são os problemas?
Crítica número um: a ditadura do investimento. Três empresas fazem o aporte de quase 70% do que se capta em Lei Rouanet. Poucas empresas dão praticamente todo o recurso. Tem a Petrobrás que dá R$ 50 milhões, outra que dá R$ 25 milhões… Um volume muito pequeno é pulverizado. Segunda crítica, a questão de analisar o cenário do mercado, avaliar a quem a lei está atendendo e em que situação. A Lei Rouanet faz uma divisão por área.

Como funciona?
Os projetos na área de artes cênicas podem abater tudo do imposto de renda e projetos na área de música popular podem abater algo em torno de 60%. O critério área de cultura não é suficiente, nem determinante para definir o que está mais próximo da função do Estado ou não.

Como solucionar esta distorção?
Partindo para o campo das propostas, uma sugestão seria escalonar os investimentos. Uma empresa de porte X, poderia dar 3% ou 4% de seu imposto de renda e uma empresa menor, 10%. Sem prejudicar o governo, sem dar mais renúncia fiscal, simplesmente faria com que mais empresas participassem para conseguir esta cultura na sociedade, que investir em cultura é um bom negócio. Neste sentido, a lei municipal daqui é positiva, porque limita o valor para cada produtor. Se você tem uma verba, tem de dividir em vários. Isso é uma forma de estimular que mais pessoas participem do processo.

Como corrigir o desequilíbrio?
Na hora de aprovar um projeto, ao invés de se dizer que em artes cênicas se abate tudo, e por isso é mais estratégica para o Estado, se pegaria uma pontuação onde o Estado elegeria áreas. Por exemplo, em que medidas este projeto inova na linguagem, em que medida faz sua contrapartida social. Você também trabalharia o comportamento dos produtores culturais e assim projetos que estão mais próximos da função do Estado teriam abatimento maior. Projetos que estão mais próximos da indústria, que também é importante ser fomentada, teriam abatimento menor.

Interessados em marketing não preferem projetos da cultura de massa?
Cabe ao Estado garantir a diversidade na cultura. É importante para a continuidade no processo. Cabe ao Estado garantir que a gente tenha criação de novas linguagens, com freqüência. Cabe ao Estado garantir que aquele teatro que realiza seu trabalho em uma linguagem ousada, de contestação, tenha seu espaço também.

A cultura popular e os projetos experimentais não interessam ao mercado…
O que acontece quando você coloca dentro do mesmo critério a Xuxa concorrendo com Júlio Bressane, com os mesmos mecanismos de incentivos do audiovisual? Ou o carnaval fora de época concorrendo com o show de música de reinterpretação de canções de Villa-Lobos? O que acontece quando cria essa competitividade entre produtores, onde um investe na indústria e o outro em aspectos experimentais? Você só deixa sobreviver a indústria e vai matando essa diversidade. Neste sentido, a lei acaba sendo nociva.

O problema é política cultural?
É bom destacar que não é a lei. Mas a concepção de uma política geral de cultura, que acaba fazendo com que a lei faça isso.

Cite um exemplo da distorção.
Na Bahia, pegaram o Axé e disseram que era bom produto para exportação. Fizeram com que fosse consumido em todos carnavais fora de época, conseguiram uma exportação grande. Fizeram com que todo grupo que queira se projetar vá fazer Axé para ter espaço. Isso mata a diversidade. Isso não é culpa do Axé, ele é indústria. Tem mais é que ser financiado e exportado. Se o Estado não garante a preservação das raízes culturais…. aí é a morte da diversidade. Isto é burro quando se fala em mercado.

Como isto se volta contra o mercado?
Nos países da Europa, por exemplo, os caras já têm espetáculos com ultratecnologia, carro que desce dentro do palco, dentro da Broadway, algo absolutamente estrambólico. A cultura chegou a tal ponto de esgotamento que hoje é muito mais estratégico para a indústria investir em manifestações de raiz. Aquele cara que está no contexto do eletrônico lá na Inglaterra vem para cá e o grande barato é levá-lo para o mato para ele ver tirar leite de vaca, ouvir o violeiro debaixo da árvore. Isso, na verdade, vai ser o grande produto da indústria. Acho que a indústria tem de enxergar isso. O produto massificado esgota.

Como avalia a situação em Goiás
Acho que aqui se tem a arte popular bem diversificada. Essa coisa que a lei de incentivo fez não destruiu nenhum grupo. Pelo contrário, as pessoas estão aguerridas. Se a lei de incentivo não estabelecer uma mudança que aprimore e que ao mesmo tempo invista mais em cultura…

Quanto o governo federal investe em cultura?
O orçamento da cultura é 0,04% do orçamento federal. Para chegar em 1%, teria de aumentar 25 vezes. São mais ou menos R$ 170 milhões. É um orçamento muito pequeno. É muito difícil fazer política pública com ele. Toda a infra-estrutura sai dele: luz, folha, telefone… Tem de fazer este contrapeso quando vai condenar o Estado. O Sesc de São Paulo, uma instituição privada ligada aos comerciários, arrecada R$ 250 milhões por ano.

Há defensores da extinção da lei. O que acha?
Tem gente que bate o pé e diz que é uma porcaria. Passa para aquele discurso fácil, que a lei seja extinta. Ao contrário. A lei não tem culpa disso. A lei é ótima. É preciso regulamentação para trabalhar esses conceitos que estão sendo amadurecidos, precisa ser redimensionada. A lei deixou algumas arestas abertas e não foi aprimorada ao longo dos anos, desde 91. Tem alguns buracos. Em alguns casos, o ministério criou cartas circulares de recomendação. Mas lá na frente, se o cara fez alguma coisa que não pode, aqueles documentos não têm força normativa.

É o jeitinho brasileiro?
As empresas acabam pegando todos os vieses possíveis e imaginários para buscar… Descobriram que nem todo livro pode ser incentivado. Mas podem aqueles que tratam das artes, biografias e aqueles que retratem história. Aí uma empresa de ônibus faz um livro sobre a história do ônibus. Tem um monte, do macarrão, da gripe… Até saem livros interessantes, do ponto de vista histórico. O da gripe é superlegal. Fizeram uma pesquisa de como a gripe influenciou certos processos históricos e assinando algumas mudanças de rumo.

E os critérios de avaliação, é possível ser objetivo quando o assunto é cultura?
Isso é superpolêmico. Acho que a gente precisa conclamar a sociedade civil para que todos sejam agentes de cultura. Porque hoje o setor da cultura é extremamente corporativo. Tem um grupo de artistas que na verdade exerce ali todas pressões políticas e o acompanhamento de tudo. As próprias leis acabam sendo criadas para atender os artistas especificamente. Uma das grandes críticas de artistas é falarem das empresas que fazem seus institutos. Mas veja o caso do Itaú Cultural…

Qual sua opinião sobre estes projetos?
Eles fazem um trabalho extremamente significativo. Você pode até dizer que estão canalizando e não dão para produtor e artista. Será que a cultura tem de ser gerida para dar dinheiro para artista, ou será que tem de atender um conjunto da sociedade a ter acesso às manifestações culturais? A questão de formação de público é importante para o próprio artista.

Qual sua opinião sobre a lei municipal de incentivo à cultura ?
A lei municipal ficou excelente. Criou vários limitadores dentro de sua estrutura e faz com que você possa ter financiamento em partes. Valores pequenos até R$ 50 mil, pulveriza e aproxima projetos que seriam função do Estado.

E a lei estadual?
É uma lei de mercado, que atende mais a indústria. Isso não é negativo. É importante, porque a indústria cultural dá emprego. Isso é bom nela. O que é ruim é o prazo de resgate do dinheiro. O cara dá R$ 100 mil e ao invés de recuper logo os R$ 50 mil, como ocorre em outras leis, tem de esperar o produtor prestar contas para depois recuperar os R$ 50 mil. Não entendo bem, são operações desconexas… Não sei porque esperar a execução do projeto, para depois ter o benefício.

Há estratégias para convencer o empresário?
A primeira é o produtor fazer a diferenciação. Se está com um projeto mais experimental, mais hermético, a primeira alternativa é buscar financiamento público. O governo federal tem o EnCena para esse tipo de proposta. A lei municipal também é uma lei que se adapta. Agora, se um produtor que criar um parque temático, por exemplo, com museu e coisas interativas, mais perto do business, esse deve procurar a lei estadual. Ao abordar o empresário não deve pedir seu patrocínio para colocar uma logo. Ele tem de entender que se faz parte da indústria cultural, ou está mais perto de uma classe que faz fomento e difusão, que está mais próximao interesse do Estado. Esta conceituação as leis de incentivo não têm.

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