“Apenas o diretor e o autor […] exercem a prerrogativa exclusiva de autorizar a circulação da obra audiovisual”Recentemente, mais precisamente em 4 de setembro último, a edição do Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo publicou uma matéria informando que naquele dia ocorreria na Escola de Comunicações e Artes da USP, no Departamento de Cinema, a defesa de uma polêmica dissertação de mestrado, do aluno José Mauro Gnaspini, que reabre a discussão sobre a proibição, por sentença judicial, da exibição do curta-metragem “Di-Glauber” ou “Di Cavalcanti”, dirigido por Glauber Rocha, sobre o enterro do artista Emiliano Di Cavalcanti, por ter sido reputado ofensivo à família de Di, alegação esta acolhida pela Justiça.
Aprovada, com menção de louvor, pela banca examinadora, a tese de José Mauro apóia-se sobre o conceito de que a obra audiovisual, como tal, é protegida pelo direito de autor e que, por isso, o processo que proibiu a exibição do filme deveria ter contado, necessariamente, com a participação de Glauber, o que não ocorreu no processo principal, pois a ação foi assumida pela Embrafilme, mas, tão somente, no cautelar, sendo nula, ou inexistente, a sentença proferida.
A par do ineditismo e do polêmico argumento engendrado, a tese chama a atenção para o fato de que os produtos audiovisuais, ainda que tidos como mercadoria, tais como os filmes, vídeos e programas de televisão, são considerados, do ponto de vista legal, como obras audiovisuais, conforme denominação utilizada pela atual lei de direitos autorais, de nº 9.610/98, publicada em fevereiro de 1998, e por isso são o resultado da atividade intelectual de um ou de mais autores.
Portanto, a circulação dessas obras pressupõe a existência de uma série de contratos que tenham por objeto, não só a execução do trabalho pelo diretor, roteirista e demais profissionais contratados, mas os direitos de autor sobre elas.
Conseqüentemente, é importante destacar, e a despeito de qualquer discussão estética, plástica, sobre o assunto, que a lei de direitos autorais determina ser a obra audiovisual uma obra em co-autoria, e que os co-autores são, na redação do Art. 16 – Lei 9.610/98 – “o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical e o diretor (…)” e que “consideram-se co-autores de desenhos animados os que criam os desenhos utilizados na obra audiovisual”.
Consequentemente, apenas o diretor da obra, e o autor do assunto, argumento literário, musical ou lítero-musical, exercem a prerrogativa exclusiva de autorizar a circulação da obra audiovisual, e de auferir as vantagens econômicas oriundas de suas etapas de distribuição. Entretanto, apenas ao diretor é que a lei garante os chamados direitos morais de autor, conforme o Art. 25 da Lei 9.610/98, tais como o direito de reivindicar a autoria da obra, de ter o seu nome indicado como tal, de opor-se a modificações não autorizadas e etc.
Diferentemente da antiga lei de direitos autorais, a lei 5.988/73, que vigorou de 1.973 até 1.998, a atual não mais prevê o produtor audiovisual como co-autor da obra cinematográfica – para utilizar a expressão da lei revogada, juntamente com o diretor e o autor do assunto ou argumento. Por isso, contemporaneamente, o produtor, para deter os direitos sobre a exploração comercial dos filmes, vídeos e demais obras audiovisuais, deve celebrar com os indivíduos que são admitidos como co-autores pela nova lei, os contratos que regulem o direito de exploração comercial da obra, e em quais condições tal exploração será exercida.
Entretanto, e além dos contratos com os co-autores da obra, para que a circulação da mesma seja livre, deverá o produtor deter os direitos de todos aqueles que participem de sua execução, como, por exemplo, dos atores no que se refere aos seus direitos como intérpretes, também protegidos por um vínculo de exclusividade e denominados “direitos conexos”, dos figurantes no que se refere ao direito de imagem, do roteirista ao direito de autor sobre o texto literário, do autor da obra preexistente, na hipótese de adaptação literária, personagens, e assim por diante, contemplando todos aqueles que, de alguma maneira, tenham aportado contribuições que sejam protegidas por direitos de autor ou direitos conexos.
Através de tais contratos o que se faz é a elaboração de complexas engenharias de direitos, visando à equação de todos os interesses dos envolvidos e dos seus direitos, de natureza patrimonial ou moral, como aquele que permitirá a reexibição da obra de Glauber Rocha.
É interessante destacar, ainda, que a tese defendida na ECA/USP chama a atenção, mais do que para os direitos patrimoniais de autor, para os chamados direitos morais, ofuscados pela lógica de mercado que transforma os filmes em mercadoria, hoje imperante, mas que se encontram plenamente contemplados na nossa ordem jurídica e, pois, imperativos. Na hipótese específica do filme de Glauber é evidente o direito moral de autor, inalienável e irrenunciável, que cristaliza o vínculo perene entre o autor e a sua obra, a ser exercido pelo diretor, conforme o comando legal, e que se consubstancia, dentre outros, no direito de assegurar a integridade da obra, ou de opor-se a atos que de qualquer forma possam atingi-la (Art. 24, IV, Lei 9.610/98).
Rodrigo Kopke Salinas é advogado sócio do escritório Azevedo, Cesnik, Quintino e Salinas Advogados e professor Conferencista da ECA/USP sobre “Ética e Legislação na Indústria Editorial”.
Artigo publicado originalmente na Revista de Cinema, edição de outubro de 2003.
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Rodrigo Salinas