Objetivo da empresa americana de digitalizar acervos de bibliotecas mundiais encontra forte oposição na Europa. O Brasil já recebeu propostas
Uma iniciativa da empresa americana Google foi o estopim para que as bibliotecas nacionais em todo o mundo passassem a discutir mais profundamente a questão da digitalização de seus acervos, que pode representar uma mudança no modelo econômico editorial.
Na semana passada, foi realizado no Rio de Janeiro o Colóquio Internacional de Bibliotecas Digitais, que reuniu representantes das bibliotecas nacionais do Brasil, França e Alemanha, debatendo as questões referentes à disponibilização de conteúdo digital na internet e a relação com o patrimônio cultural.
O Google, a empresa de ferramenta de busca na Internet mais utilizada no mundo, criou um programa para pesquisa de livros chamado Book Search (ww.books.google.com) que atualmente é composto por obras de editoras parceiras e pelo acervo de algumas bibliotecas, como das universidades de Harvard, Michigan e Oxford (esta última na Inglaterra). O objetivo é colocar na rede 15 milhões de obras até 2015, somente em inglês. No programa, o Google digitaliza as obras e disponibiliza cinco páginas de cada uma, com exceção dos títulos que se encontram em domínio público, que recebem reprodução integral. Quando o livro encontra-se fora de catálogo mas ainda não caiu no domínio público, o programa aponta as bibliotecas em que eles podem ser encontrados.
A empresa pretende ainda compatilhar o acervo digital de diversas instituições ao redor do mundo, mas enfrenta uma reação da Europa, atenta às diversas questões que o serviço envolve, como o respeito aos direitos autorais, a proteção do acervo europeu, o controle da difusão cultural pela Internet e o financiamento do acesso à cultura através da publicidade.
Para combater o Google, a União Européia (UE) lançou o portal TEL(www.theeuropeanlibrary.org), que interliga as bibliotecas do continente com acervo digital, e vem acelerando o processo para ter em 2010 uma biblioteca digital com de mais de 6 milhões de livros, filmes, fotografias e outros documentos, reunindo o patrimônio cultural e científico da Europa.
Viviane Reding, comissária européia da Sociedade da Informação, informou que Bruxelas irá propor “uma regulamentação autenticamente européia para a proteção dos direitos de propriedade intelectual, seu uso e o acesso aos mesmos nas bibliotecas digitais”.
Portugal quer formar ainda uma outra rede de bibliotecas digitais, desta vez reunindo a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. O diretor da Biblioteca Nacional do país, Jorge Couto, esteve em São Paulo em março para a comemoração dos 80 anos da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e aproveitou a ocasião para apresentar essa proposta, que também combate a iniciativa do Google de oferecer o acervo digital apenas em inglês.
Na Europa, o presidente da Biblioteca Nacional Francesa, Jean-Noël Jeanneney, lidera um grupo de instituições contra a iniciativa do Google, com o apoio explícito do presidente Jacques Chirac. Jeanneney esteve presente no Colóquio, durante o qual lançou no Brasil um livro de sua autoria, “Quando o Google desafia a Europa” e afirmou que “não se pode deixar a cultura e a difusão da língua só nas mãos do mercado”. Ele acredita que a iniciativa é mais uma forma de os EUA estabelecerem sua hegemonia cultural, e que a iniciativa privada deve ser parceira na preservação das culturas nacionais, e não monopolizadora.
Elisabeth Niggeman, presidente da Biblioteca Nacional da Alemanha e que tambem esteve no Brasil, afirmou que a idéia não é recusar o dinheiro de uma empresa que pode ajudar no na digitalização, mas sim ter o controle do processo.
Em fevereiro, Marco Marinucci, o Gerente de Desenvolvimento de Parceiros Estratégicos do Google, esteve no Brasil tentando conseguir parceiros para o Book Search. Para convencer os empresários do setor, ele defendeu que o projeto é uma ferramenta de busca que pode ajudar a divulgar os catálogos das editoras. Nos EUA, o programa oferece serviços para quem estiver interessado em comprar um determinado livro, mostrando as livrarias mais próximas e fazendo comparação de preços entre os sites de vendas. O Google ainda pode fechar acordos para mostrar anúncios na página do livro digitalizado, e passar para as editoras metade da renda gerada pelos acessos.
A Fundação Biblioteca Nacional (FBN), que vem digitalizando seu acerco desde 2001, recebeu uma proposta do Google de investimentos de US$10 milhões na digitalização de dois milhões de volumes (cerca de um quarto do acervo), sem nenhum custo para o órgão. A FBN ainda não decidiu se aceita a oferta. Procurada por Cultura e Mercado, a instituição comunicou, através de sua assessoria de imprensa, que não poderia se manifestar sobre a questão por que a proposta não foi formalizada, embora seu presidente Muniz Sodré já tenha feito declarações a respeito para a imprensa.
Uma questão essencial é se o patrimônio cultural (no caso, literário) dos países não pode correr o risco de ficar submetido ao monopólio de uma empresa. É o debate sobre a Diversidade Cultural novamente em evidência.