Tensões entre mercado e Estado deram o tom na audiência pública que debateu o novo projeto de lei para o setor audiovisual
BRASÍLIA – O clima de trégua entre os diversos segmentos do cinema brasileiro perpassou uma cerimônia seguida de caminhada do Palácio do Planalto ao Congresso, no dia 7 de junho. Representantes do Ministério da Cultura (MinC) e produtores ligados ao Congresso Brasileiro de Cinema (CBC) marcharam lado a lado com dirigentes do setor de radiodifusão, diretores das empresas de distribuição e exibição e com “medalhões” do cinema nacional, como Luiz Carlos Barreto.
A união foi selada em torno do projeto de lei referente ao pacote de fomento à atividade cinematográfica, cujo maior destaque era a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, entregue ao presidente do Congresso, Renan Calheiros (PMDB-AL) naquele dia.
O aparente consenso entre os diversos atores colocava perspectivas de uma tramitação com poucas turbulências e em ritmo rápido para a proposta. Tanto foi que o governo protocolou a proposta com urgência constitucional, o que dá até quatro meses para sua votação. Mas o clima de concordância parece estar novamente se desfazendo para dar lugar ao cenário de racha verificado em 2004, quando o MinC apresentou o projeto de criação da Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav). As divergências foram a tônica da audiência convocada para debater o projeto do Fundo, na última terça-feira (1), na Comissão de Educação do Senado.
A própria composição dos convidados da primeira audiência não contemplou produtores desvinculados da indústria comercial do cinema nacional e internacional e mais próximos ao MinC. A reunião também revelou dissonância entre os partidos e as Casas Legislativas, uma vez que o projeto está tramitando na Câmara dos Deputados. E a julgar pela disposição do presidente da comissão, Wellington Salgado de Oliveira (PMDB-MG), suplente do ministro das Comunicações, Hélio Costa, os senadores estão mesmo determinados a “puxar” o debate, com a realização de novas audiências, sobre projeto “alheio”.
O pacote, materializado no Projeto de Lei 7613 de 2006, institui o Fundo Nacional do Audiovisual, que será alimentado majoritariamente pela Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), advinda da taxação da comercialização e licenciamento de filmes no País, e do Orçamento Geral da União (OGU). Em 2005, a arrecadação da Condecine chegou a cerca de R$36 milhões e o orçamento do Ministério da Cultura para o setor atingiu pouco mais de R$25 milhões. Espera-se, com as novas normas, uma injeção de até R$40 milhões a mais do que é destinado hoje ao setor. “O projeto cria novos mecanismos e melhora os existentes por que sistematiza a base de fomento à atividade”, diz Manoel Rangel, diretor da Ancine. Além de melhorar a perna do investimento direto do Executivo, o PL 7613 cobre a outra perna do financiamento do audiovisual: a captação de recursos por meio de incentivos fiscais. A proposta incorpora o mecanismo do abatimento de Imposto de Renda a partir de patrocínio de obras audiovisuais, hoje presente na Lei Rouanet e com vigência prevista somente até o final deste ano.
Outra medida neste sentido é a previsão da possibilidade das empresas de TVs abertas e por assinatura poderem reverter parte das despesas com compra de programas estrangeiros para a compra de produção independente. Mais do que um mecanismo adicional de incentivo, a idéia é colocar em condição de igualdade as empresas nacionais e internacionais, uma vez que estas últimas já gozam de permissão da legislação para investir parte das remessas às matrizes em co-produções de filmes ou minisséries. Caso exemplar são as séries Mandrake e Filhos do Carnaval, transmitidas pela programadora HBO. “O mecanismo poderá constituir um importante incentivo para a aproximação das emissoras de televisão com a produção independente brasileira. A consolidação de tal parceria é especialmente importante para suprir de conteúdos audiovisuais nacionais os novos “canais” que surgirão com a digitalização das transmissões televisivas”, argumenta a exposição de motivos do PL.
Divergências – O debate no Senado não teve o calor das discussões sobre a extinta proposta da Ancinav, mas revelou que as tensões entre mercado e Estado ainda continuam presentes. “A mão do Estado é possessiva, onde quer que ela queira ditar normas e diretrizes”, disse Carlos Eduardo Rodrigues, representando ao mesmo tempo a Globo Filmes e a Associação Brasileira de Empresas de Rádio e TV (Abert), citando frase de Darcy Ribeiro. A afirmação finalizou uma exposição sobre os pontos considerados polêmicos, a maioria relativos aos artigos sobre regulamentação do setor e punição das empresas e produtores que captarem recurso.
A interferência da ‘mão possessiva do Estado’ se daria nas informações exigidas por parte da Ancine no caso de contratos de co-produção, cessão de direitos de exploração comercial, exibição, veiculação, distribuição, comercialização, importação e exportação de obras audiovisuais. “O artigo pede informações estratégicas e confidenciais cuja publicização pode prejudicar os negócios”, argumentou Rodrigues. Do lado dos partidários da proposta da Ancine, a avaliação é que o reclame é equivocado e visa manter as informações sobre o mercado e seu funcionamento restrita aos grandes grupos. Outras alterações propostas pelo representante da Abert foram o aumento do limite de captação junto a mecanismos de incentivo, hoje em R$6 milhões somadas as Leis do Audiovisual e Rouanet, e o abrandamento das multas propostas.
Um dos pontos mais festejados pelos representantes do governo, a possibilidade de destinação de recursos da despesa com impostos da TV para produção independente, foi questionada por Carlos Rodrigues. “O terceiro artigo que está sendo proposto conflita com o regulamento da Receita Federal, não se encontrou redação ideal. Vai ser difícil as TVs usarem este mecanismo”, disse. A justificativa apresentada tem pouca solidez, uma vez que ao ser aprovada a Lei é superior a regulamentos. Ficou no ar, para alguns presentes à audiência, a razão real da resistência das TVs em investirem em produção independente. Emissoras em franco crescimento, como a Rede Record, vêm utilizando este artifício sob o argumento de que inclusive economicamente é mais viável. Mas a proposta de abrir janelas na programação para conteúdos de fora da casa sempre encontrou resistência dentro da Rede Globo, cuja grade é composta na sua totalidade ou por programas próprios ou por obras norte-americanas.
Expoente do grupo de medahões “consagrados”, o diretor Roberto Farias atacou a dependência do mercado externo ao cinema, resultado da aposta em um modelo de financiamento calcado em incentivos fiscais, e a ‘mão possessiva’ das comissões julgadoras dos editais do MinC e de empresas estatais como a Petrobrás e o BNDES. “Dinheiro não é oferecido aos produtores, mas a empresas que nada tem a ver com cinema. A renovação cinematográfica passou depender disso”, declarou. A crítica ao predomínio do modelo calcado basicamente nos incentivos encontrou eco no presidente da Ancine, Gustavo Dahl, para o qual a proposta de Fundo Setorial é uma resposta. “A vantagem do PL é que ele traz mecanismos com pesos e contrapesos, permite direcionamento dos recursos. Já a renúncia fiscal é um modelo muito aberto”.
Já a crítica às ‘comissões’ foi rechaçada pelo próprio Dahl, que afirmou ser esta forma muito melhor do que a anterior, na qual a escolha do produtor beneficiado com o recurso de empresas estatais e do governo ficava a cargo dos gestores. A discussão trouxe a tona polêmica de meses atrás em que os ‘consagrados’ reuniram dos novos critérios de escolha de projetos na Petrobrás e no BNDES. Segundo Rangel, da Ancine, este modelo é estabelecido pela Lei das Licitações, mas mesmo assim o governo vem buscando outras formas do chamado investimento automático (não operado por meio de seleção de propostas), como a premiação para realizadores que tiveram obra com bom desempenho de bilheteria, empréstimos e o chamado investimento de risco (alternativa em que a recuperação do investimento está condicionada à renda da obra).
O apelo de Farias pela ‘liberdade de produção’ contra as ‘comissões’ comoveu o senador Sérgio Zambiasi (PTB-RS), que endossou a proposta do presidente da comissão por novas audiências após as eleições. O senador gaúcho também chegou a propor um ‘plano B’ caso o projeto não seja aprovado este ano, gerando a perda de R$36 milhões para o ano que vem por conta do fim da vigência de um dos mecanismos da Lei Rouanet: “Podemos apelar para uma Medida Provisória”, propôs. O sentimento de urgência de Zambiasi traduziu a importância do tema, haja vista a dependência que o setor do cinema tem dos recursos públicos, mas a aprovação do PL 7613, ao que tudo indica, ainda terá muitos capítulos.
Fonte: Agência Carta Maior
Jonas Valente