Políticas culturais, gestão cultural e financiamento à cultura são temas de oficinas organizadas pelo Instituto Pólis e apresentadas por gestores culturais e especialistas em políticas no setor. Por Sílvio Crespo

Uma oficina que se destacou dentro do tema ?mercado cultural? no Fórum Social Mundial foi sobre políticas públicas de cultura, apresentada pelo Instituto Pólis, de São Paulo. A apresentação foi feita em três dias, cada um abordando uma das grandes seções em que fora dividido o tema. No primeiro dia, a apresentação foi sobre ?referências de políticas culturais?, por Hamilton Faria; no segundo, foram discutidos dois exemplos de políticas culturais locais, levadas a cabo por dois membros do Instituto Pólis, nas cidades de Santo André e Itapecerica da Serra. No último dia, a questão abordada foi o financiamento à cultura, apresentada por Francisco Ferron.

Todas as palestras apresentadas pelo Instituto Pólis foram marcadas por uma intensa participação dos espectadores, sendo muitas vezes uma arena de discussão e troca de experiências entre os ouvintes e os palestrantes.

Oficina: Políticas públicas para o desenvolvimento cultural local
Realização: Fórum Intermunicipal de Cultura
Apoio: Instituto Pólis
Responsáveis: Hamilton Faria, Sebastião Soares, Altair Moreira, Francisco Ferron e outros.


Políticas culturais
Em oficina apresentada no II Fórum Social Mundial, foi defendida uma forma de política cultural alternativa ao modelo tradicional.

Políticas tradicionais e de cidadania
O palestrante Hamilton Faria procurou separar as políticas culturais em dois grupos: o das políticas tradicionais, em que o objetivo é apenas oferecer à população maior acesso a eventos culturais, e o das políticas de cidadania cultural, em que se visa não apenas a um maior acesso à cultura, mas também à participação mais ativa do público nos processos culturais. O primeiro ponto em que se pode distinguir os dois tipos de políticas, segundo Faria, é o conceito de cultura levado em conta por cada uma delas. Para ele, as políticas tradicionais vêem a cultura ?como manifestação do culto, do erudito?, e a arte como manifestação da cultura. Diferentemente, as políticas de cidadania cultural têm um conceito mais alargado de cultura, que transcende a linguagem erudita, e insere a cultura nas práticas cotidianas, no modo de vida. Esse conceito, segundo Faria, é o que impulsiona as práticas culturais, pois o público deixa de ser apenas espectador.

Outra crítica apontada por Faria à política tradicional de cultura foi quanto à difusão da cultura. Para ele, a tendência é que os programas culturais não invistam na produção local, mas apenas em grandes espetáculos, naquilo que já é legitimado pela indústria cultural.

Identidade cultural
Para Faria, muitos locais procuram reforçar sua identidade frente à globalização, mas dificilmente esses mesmos locais têm clareza sobre sua identidade. As políticas tradicionais, segundo o palestrante, valorizam o local em oposição ao externo, e o popular em oposição ao erudito. Faria defende, então, a posição das políticas de cidadania cultural, para as quais as manifestações culturais são híbridas (não apenas eruditas ou populares) e, portanto, a identidade é móvel, aberta, inovadora. A exemplo da Bossa Nova, influenciada por diversas tendências musicais, as manifestações culturais são, na verdade, ?um encontro intercultural das diferenças?.

Faria defende a idéia de que devemos ter raízes, sim, mas também devemos ter escolha. Devemos, para ele, conhecer a cultura em que estamos inseridos, mas sem deixar de valorizar a cultura do outro. A preservação da identidade não deve ser uma opressão coletiva das diferenças, pois a diversidade é fundamental para as políticas culturais locais.

Por isso, segundo Faria, as políticas culturais devem identificar os múltiplos grupos com várias visões culturais que existem hoje. Deve-se incentivar aqueles que estão à margem do mercado cultural para que se possa fortalecer a diversidade. As políticas tradicionais, ao contrário, não trabalham com essas várias visões.

O papel do público
As políticas tradicionais, segundo Faria, são totalmente voltadas para o produto cultural, sem fazer referência ao processo cultural, deixando o público com o papel de mero espectador. Desse modo, o evento não passa de um espetáculo, ou seja, não oferece ao público uma possibilidade de participação ou reflexão. As políticas de cidadania, ao contrário, vêem o processo cultural como um complemento do produto cultural: nesse caso, há uma ampla participação do público, e o evento é um processo educativo e continuado que desperta a reflexão.

Desse modo, Hamilton Faria defendeu essa nova forma de política cultural local, que, diferente da tradicional, pode realmente enraizar-se na comunidade, estando presente no cotidiano das pessoas, tendo ampla participação popular, mas sem isolar-se das culturas à sua volta.


Gestão Cultural
Inserir a cultura no cotidiano dos cidadãos e estimular a sociabilidade dentro da comunidade foram metas atingidas nas prefeituras de Santo André e Itapecerica da Serra

O segundo dia da oficina Políticas públicas de cultura foi marcado pela apresentação de dois exemplos bem sucedidos de gestão de políticas culturais locais. Altair Moreira, ex-secretário de cultura de Celso Daniel (prefeito de Santo André assassinado em janeiro deste ano), expôs seu trabalho na cidade de Santo André, localizada na região metropolitana de São Paulo. Em seguida, foi a vez de Sebastião Soares, gestor do Departamento de Cultura na cidade de Itapecerica da Serra, contar sua experiência na cidade, que fica a cerca de 40 quilômetros de São Paulo.

Importância social da cultura
Para iniciar a exposição, Altair Moreira colocou alguns pressupostos levados em conta antes da aplicação prática da gestão cultural. Para Moreira, a cultura deve ser, em primeiro lugar, a mediadora de uma transformação social, o ?fator preponderante para criações inovadoras?. A partir daí, o secretário de cultura estabeleceu suas principais metas para a cidade de Santo André: a formação cultural da população, a descentralização dos espaços culturais, a apropriação do espaço público e a participação da população, entre outras.

Para atingir estas metas, a Secretaria de Cultura de Santo André usufruía de um benefício precioso: recebia 4,8% do orçamento municipal. Segundo Moreira, um recorde no Brasil, país em que na maioria dos municípios a verba para cultura não chega sequer a 1%. Além disso, o prefeito Celso Daniel dava total autonomia para o setor cultural.

Cultura no cotidiano
A política cultural que Moreira implantou em Santo André procurava estimular a convivência da população com as diversas formas de linguagem artística (não apenas as tradicionais, mas também modernas, como fotografia e computação), como um exercício de cidadania em que o espaço público fosse usufruído pela população. Seguindo esse princípio, foi criada a Escola Livre de Teatro, que visava difundir uma linguagem artística. Ainda que os alunos mais talentosos tivessem oportunidade de seguir mais adiante, o objetivo da Escola não era formar artistas, mas fazer com que a cultura estivesse presente no cotidiano dos cidadãos.

Além disso, a Secretaria de Cultura do município de Santo André criou um Fundo de Cultura, que, com receita proveniente de bilheteria de teatro e espetáculos, tinha a função de financiar projetos culturais. Este Fundo era destinado não apenas a artistas, mas qualquer profissional que lidasse com a cultura local, como o caso de historiadores interessados em preservar o patrimônio histórico. Para garantir um benefício à comunidade como um todo, havia, para a aprovação de um projeto, a exigência de que a população teria acesso ao produto cultural.

Para cumprir a meta de descentralização da cultura, não bastava apenas espalhar espaços culturais pela cidade, pois isso não garantiria a presença efetiva da cultura em todos os cantos da cidade. Era preciso que o profissional de cultura que atuasse no centro fosse o mesmo que atuasse na periferia. Por isso, investiu-se na formação de um quadro de funcionários que tinham preocupação com a arte e que entendiam o processo cultural.

Alternativas à situação desfavorável
O projeto de Sebastião Soares em Itapecerica da Serra partia do pressuposto de que o departamento de cultura não deve apenas promover festas e outros eventos, mas incluir a cultura como ?centro da atenção do desenvolvimento humano?. Antes de iniciar o projeto, Soares, ao chegar à cidade, deparou-se com uma situação completamente desfavorável ao desenvolvimento cultural: com problemas de exclusão social e apenas 125 anos de emancipação política, em Itapecerica estavam enraizados hábitos religiosos tradicionais que não aceitavam inovações, e só os descendentes dos criadores da cidade tinham acesso aos bens materiais e culturais. Além disso, os funcionários públicos eram completamente inabilitados para trabalhar com cultura, e não havia nenhum espaço público disponível para manifestações artísticas.

Soares, então, diante dessa escassez de possibilidades, decidiu fazer reuniões com a população em igreja e garagens emprestadas para discutir com a população o que ela queria para a cidade em termos de cultura. Com o projeto já em andamento, conseguiram patrocínio da empresa Natura para construir um espaço alternativo a fim de promover as discussões com a população. Optou-se por levantar uma casa de taipa, por ser financeiramente viável, que recebeu o nome de ?barracão?, onde crianças a partir de sete anos tinham aulas de formação musical, teatro e dança. Dessa forma nasceu o programa ?Barracões culturais da cidadania?.

Cultura e sociabilidade
Hoje, em dois ?barracões? construídos, há em andamento 192 atividades artísticas. O projeto, segundo a Fundação Ford e a Fundação Getúlio Vargas, está entre os 20 melhores do Brasil, por ser capaz de incluir a cultura nas diversas dimensões da cidade ? a cultura está presente em todas as discussões sobre o que será feito no local. Os benefícios do programa não se restringem à produção artística, mas à sua contribuição para a sociabilidade dos cidadãos, pois abre a possibilidade de participação do indivíduo na sua comunidade. Após a implantação do projeto, foram restaurados hábitos que vinham há muito se perdendo na metrópole, como o costume entre vizinhos de conversar na rua e tocar instrumentos musicais.

O projeto foi muito bem aceito entre a população e também entre gestores de políticas públicas. Dos 14 bairros da cidade de Itapecerica, nove escolheram os ?Barracões? como prioridade de políticas públicas no Orçamento Participativo. Este é um programa implantado em várias prefeituras do Brasil, inclusive a de São Paulo, e no estado do Rio Grande do Sul, que consiste em abrir à população a possibilidade de discutir e votar nas prioridades do governo. Além disso, segundo Soares, outras prefeituras do Brasil estão aderindo a projetos com a mesma estrutura e princípios dos Barracões.

Sebastião Soares terminou sua exposição dizendo que a continuidade do programa é garantida pelo fato de este já estar apropriado pela comunidade. Há professores e instrutores dentro da própria comunidade interessados em continuar o programa, e não dependem mais tão diretamente de ajuda do governo.


Financiamento à cultura
Oficina discute os mecanismos públicos e privados de financiamento à cultura no Brasil

Francisco Ferron, do Instituto Pólis, expôs e comentou os mecanismos disponíveis de financiamento de atividades culturais. Os orçamentos públicos (principalmente os municipais) são, para Ferron, o que realmente impulsiona a cultura, mas na maioria dos casos destinam a ela menos de 1% do seu total. Os fundos de cultura, provenientes geralmente de arrecadação de bilheterias, financiam eventos culturais e cursos, mas nem sempre seus conselhos são abertos à comunidade, funcionando apenas dentro da secretaria. Ferron citou também o que ele chamou de ?sistemas mistos?, aqueles derivados das leis de incentivo, em que o orçamento não financia totalmente a cultura. Por fim, o palestrante discutiu o papel das fundações, instituições privadas que, depois de vários investimentos na área de cultura, resolvem fundar um setor especializado.

Orçamentos públicos
O orçamento é, segundo Ferron, o ?conjunto de possibilidades que a cidade tem para investir em um ano?, e está baseado no que a receita pública arrecadou no ano anterior. Para Ferron, é daí que aparece o primeiro problema do financiamento público: não está baseado nas necessidades atuais da sociedade, mas em um fator histórico (a arrecadação do ano anterior). Além disso, a prioridade do aparelho estatal é sempre o custo fixo: em algumas secretarias, a folha de pagamento pode chegar a 90% do orçamento, engessando as ações da secretaria. Um terceiro tipo de gasto que consome a verba da cultura são os custos operacionais dos equipamentos básicos (luz, manutenção etc).

Desse modo, da verba total que uma secretaria de cultura recebe, o que será investido em cultura é somente o que sobra depois de todos esses gastos. A prioridade do destino das verbas nunca é baseada na dinâmica social da cultura, mas antes no custeio da máquina administrativa. Esta, ao invés de ser um meio de implantação de projetos, acaba ela mesma engessando o processo, deixando as necessidades sociais em segundo plano.

Fundos de cultura
Cada prefeitura tem suas próprias regras de funcionamento dos fundos de cultura, mas de um modo geral, suas receitas são provenientes não só das bilheterias dos espetáculos, mas também do caixa da secretaria e de empresas (através das leis de incentivo). A vantagem desses fundos, segundo Ferron, é que podem ser investidos mais rapidamente, sem a burocracia exigida no caso do orçamento. Entretanto, sua participação nos investimentos culturais tem sido bastante inferior, em termos de volume, à do orçamento público, pois é utilizado apenas em situações de emergência, para financiar um novo projeto que apareça eventualmente.

Leis de Incentivo
Segundo Ferron, as leis de incentivo beneficiam claramente o setor privado. Todas incentivam o produtor cultural, e nunca o cidadão, que é quem usufrui do produto. De acordo com o palestrante, o Estado, através das leis de incentivo, terceiriza a sua responsabilidade de realizar projetos; Ferron chamou isso de uma ?covardia do Estado? que deve ser revista.

Para Ferron, o fato de serem voltadas para projetos, exige que o produtor tenha pré-determinados o foco, o tempo, o impacto e os resultados dos projetos. Tudo isso cria exigências burocráticas que dificultam o trabalho do pequeno produtor (que necessita de um sistema legal de contadores, por exemplo). Pelo fato de exigir especialização profissional, essas leis normalmente são ineficientes, segundo Ferron.

Alguns espectadores, durante a discussão, defenderam a extinção das leis de incentivo, por considerarem um marketing empresarial com dinheiro público. Foi criticado também o fato de a empresa, depois de receber dinheiro público, ter ainda direito de receber o lucro como sócia, e sem correr o risco de perder seus investimentos em caso de prejuízo. Foi criticado o exemplo do Itaú Cultural, que construiu imponente prédio na Avenida Paulista, uma das regiões de mais alto preço de imóvel em São Paulo, com verba proveniente da Lei de Incentivo.

Fundações
As empresas, segundo Ferron, utilizam as suas fundações para agregar valores na comunidade. Entretanto, apesar dos altos gastos com consultoria, os benefícios sociais dos investimentos nem sempre são satisfatórios, de acordo com o palestrante. Para ele, em muitos casos esses investimentos são ?pura vaidade? das empresas, que visam apenas passar ao público uma imagem de alguém que está preocupado com a sociedade e faz algo por ela. Desse modo, o compromisso social vem subordinado a interesses empresariais, e por isso o projeto pode não satisfazer às necessidades culturais da comunidade.

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