Controverso, fluído e mutante, Metareciclagem é ao mesmo tempo lista de discussão, grupo de ativistas e movimento para repensar as tecnologias computacionais.

Era uma bela noite de segunda-feira, meio do mês de junho, ia ao ar, na página do Cultura e Mercado e, em seu boletim, entrevista de um colega repórter com Cláudio Prado (confira a entrevista aqui), um dos responsáveis pelo programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura. Da entrevista, sobrevieram uma série de polêmicas, comentários escritos e telefonemas à redação, especialmente em relação à conceituação do Metareciclagem.

Agora, Cultura e Mercado apresenta o projeto pelo prisma dos que fazem parte de sua militância. Logo mais, parte das discussões deverão tomar corpo em outra matéria, ampliando o debate e abrangendo a polêmica a respeito de palavras como uso e apropriação do movimento, que parte dos ativistas coloca como tendo sido realizada pelo governo. Badah, outro colega de redação, inicialmente se ofereceu para esta tarefa, mas viu-se muito próximo do movimento e declinou, não sem antes iniciar e compilar uma discussão sobre o tema. Partindo dela e de entrevistas com alguns dos membros da lista de e-mails do Metareciclagem é que se fez esta matéria.

Metareciclagem por ela mesma
Antes de tudo, uma unanimidade: para saber o que é metareciclagem, só fazendo parte da coisa. Eu arrisquei esta reportagem sem tal aprofundamento, e admito com isso que esta matéria não abarcará partes fundamentais da essência deste projeto. Se é que isso é possível de alguma forma. De um jeito ou de outro, se ao final destas linhas o leitor quiser conhecer a lista, seu endereço de acesso é s://www.colab.info/cgibin/mailman/listinfo/metarec. O conteúdo, público, pode ser consultado em s://mail.dischosting.nl/pipermail/metarec/. Ou, então, poderá fuçar na rede, onde ele nasceu e se desenvolveu.

Uma matéria que os próprios “metarecicleiros” colocam como boa sobre o tema está no Overmundo (leia aqui), site que, por si só, já daria umas tantas matérias. E é nos comentários desta matéria, sobre a batuta de Daniel Pádua, membro do coletivo, que tiro da cartola uma das primeiras conceituações sobre o tema: “um dado interessante: o nome metareciclagem apareceu em meados de 2002, na lista de discussão do Projeto Metáfora. a idéia original era criar redes informacionais com material reciclado (e outras tecnologias “livres”), quebrar o modelo top-down da indústria de comunicação vigente e fomentar processos participativos emergentes de ação direta sobre a infra-estrutura social. Com tempo, percebeu-se que não se tratava só de computadores, mas de universos simbólicos. universos sensíveis. Quando você muda seu próprio olhar sobre as coisas, engloba o que estava fora, expulsa o que estava dentro, mistura os inputs-outputs, e o faz de maneira socialmente compartilhada/contextualizada, você está re-enredando sua realidade, mudando a base do seu pensar e sentir, em conjunto com outros. Metareciclando”.

Elenara Iabel, gaúcha, tem formação em humanas, ciências jurídicas e sociais. Produtora cultural, feminista e entusiasmada ativista do Fórum Social Mundial, aproximou-se do Metareciclagem em 2001/2002, quando coordenou o Memorial do Fórum Social Mundial no Governo de Olívio Dutra, no RS. Ela começa seu entendimento com uma crítica: “não deixa de ser louvável o reconhecimento governamental, mas é preciso destacar que Metareciclagem é coisa pública, do público, não do Estado, do governo ou da Propriedade Privada. Aliás, o uso que algumas pessoas por aqui fazem da palavra Metareciclagem de uma maneira muito inteligente, como a clássica definição do Dpadua de que Metareciclagem é “ensinar os sobrinhos a fazer bolinho de chuva”, é totalmente sincrônico com definições inteligentes da palavra Arte, como algo que é uma instituição sim, mas que está aí pra ser redesenhada e desconstruída sempre”.

Está bom de Eleanora? Senão, vai lá mais um pouco: “É querer estar ao nível, como um camaleão, do entendimento de cada um, poeta, engenheiro, skatista, padeiro, programador, reggaeiro… não tem pretensão em educar ninguém, antes tem como objetivo aprender, resgatar o saber popular que as universidades, por não serem outra coisa senão o túmulo do conhecimento, não estão nem um pouco interessadas. Entender da autonomia… da vontade de agir, de viver e de mudar em nome próprio; que questiona todas as relações sociais que estão na ordem do dia e, aonde pode, no menor espaço que seja, constituir desde já novas relações sociais com a arte, com a sexualidade, com o corpo, com as pessoas… Um entendimento mínimo da dinâmica que nos envolve é que se estabelece uma comunidade baseada no princípio de igual respeito e igual consideração. Por não ter um teórico nem ninguém a seguir, por não ter ídolos, por não procurar sistemas teóricos fechados, absolutos, que respondam a “todas” as questões, por assumir tanto as tarefas práticas como teóricas “em primeira pessoa”, “é não deixar para os outros o que nós mesmo podemos fazer”, é não delegar a luta para heróis. Conceito e prática política fundamental nesses tempos bicudos: ser dono do próprio destino. Utópica, eu? Hehehehe”.

Deu pra suar? Como eu ia dizendo, mas é melhor deixar outro “deles”, Daniel Pádua, dizer, como disse para Badah: “tem muita informação por aqui. muito legal você ter vindo conferir pessoalmente. :) estávamos agorinha mesmo falando de colocar na capa do site: ‘quer saber mesmo? participe!’”.

Felipe Fonseca, 28 e metarecicleiro desde o começo da coisa, ainda no Metáfora, por volta de 2000, coloca que: “MetaReciclagem é relacionamento, rede, troca, tribo, bando, identidade coletiva, muito mais do que o mero reaproveitamento de “lixo digital”. MetaReciclagem é menos uma definição de técnica ou metodologia do que um fenômeno social, pessoas fazendo coisas juntas porque compartilham a perspectiva de que a tecnologia presta-se a usos múltiplos, não só aqueles que a indústria quer que a gente acredite. A MetaReciclagem também é um jogo coletivo cujo objetivo é definir seus próprios objetivos”. Mais informações Felipe? “O site tá fora do ar, isso é um saco mesmo, mas deve voltar logo. Alguns recursos interessantes pra tentar entender a correria, no entanto, podem ainda estar circulando por aí: dá uma procurada no Overmundo, tem uma matéria interessante sobre MetaReciclagem (aquela que linkamos acima). Uma vez o Marcelo Terça-Nada me entrevistou pra webinsider, acho que deve estar online também. E acho que o mais interessante, mas talvez muito pesado pro teu deadline, é dar uma olhada na tese de mestrado do Miguel Caetano, um pesquisador português que estudou a MetaReciclagem desde seu início”. Anotado.

Mas peraí, então tudo é Metareciclagem? Novamente Fonseca tenta complicar menos as coisas: “MetaReciclagem é MetaReciclagem, e essa é a única definição que não muda com o tempo, são pessoas que querem entender o que é a MetaReciclagem. Se MetaReciclagem é desconstruir conhecimento, eu posso fazer qualquer coisa e chamar de MetaReciclagem. Então surgiu uma vertente que dizia que eu posso chamar qualquer coisa de MetaReciclagem, desde que seguisse três princípios: desconstruir tecnologia – e tecnologia aqui em sentido amplo, de computadores a linguagem; construir conhecimento livre; e compartilhar esse conhecimento através da nossa infra-estrutura lógica. Isso garante algum nível de controle social sobre o que é chamado de MetaReciclagem por aí – se alguém usar o nome MetaReciclagem pra alguma coisa que as outras pessoas discordem, pode ser massacrado na lista”.

Uma questão política ou um tal de Cláudio Prado
Deu pra respirar até aqui? Então uma pausa, meio que encima da última frase de Felipe Fonseca, através de uma observação de Hernani Dimantas, outro dos que estava lá desde o Metáfora: “Cláudio Prado não é do Metareciclagem, é apenas um usuário das idéias desenvolvidas pelo Metareciclagem. A Metareciclagem é um modelo aberto e independente que deu consistência ao programa Cultura Digital. Assim como dialoga com outros projetos de tecnologia social”.

Tenso o ambiente, não? Essa é, grosso modo, a discussão que será deixada para um momento mais oportuno, posta toda a dinâmica que aqui estou tentando elucidar. Ainda assim, da fala do próprio Hernani, é justo que se pontue que: “achei uma falta de critério pôr o Cláudio Prado como um ativista, um articulador, um cara do Metareciclagem. Isso ele não é. O Metareciclagem não tem relação nenhuma com o Cultura Digital. Tem relação somente através de algumas pessoas, como o Felipe [Fonseca]. Eu apresentei o projeto para o Cláudio Prado, nós ‘agenciamos’ o projeto e formamos o modelo conceitual da rede do Cultura Digital. A importância do Cláudio Prado é a de ter criado, usando a rede do Metareciclagem, um meio de dar vazão a alguns projetos nossos. Eu uso o Metareciclagem no Acessa SP também, e eu não fico contando que o Acessa faz o Metareciclagem, ou que é um produto do governo do Estado”.

Como quem gosta de conceito fechado é enciclopédia, vamos ao que diz Liquuid, membro do coletivo, sobre o polêmico membro do Cultura Digital: “Integrante? Inovador que topou bancar o projeto. Ele bancou oficinas de hardware, bem mecânicas… durante muito tempo. A coisa começou a mudar quando pessoas não bancadas por ele, como glerm e sua turma, começaram a pirar em cima de desconstruções de caixas que sempre foram muito pretas. O trabalho deles com arduino e construção de instrumentos musicais hortofrutogranjeiros trouxe uma alma para o metareciclagem do Cultura Digital”.

Voltando à conceituação de Fonseca, adaptada pelo já tantas vezes citado Daniel Pádua: “Não estou necessariamente defendendo que o nome metareciclagem seja usado apenas por fulano ou cicrano, mas definitivamente há de cuidar da magia ancestral contida nele. Cláudio Prado não conversa nessa lista – onde, querendo ou não, a coisa emergiu, cresceu e vem se alimentando – e certamente disse algumas coisas nessa matéria que não fazem muito sentido. E talvez isso é não ter cuidado com o mito que nos une”.

Vamos deixar agora o próprio Fonseca contar um pouco desta história, para facilitar, ou complicar, mais um pouco? “Bem, o que se convencionou chamar de “Cultura Digital”, a ação de desenvolvimento de tecnologia dentro do programa Cultura Viva, não foi criação do Ministério, mas de um grupo de pessoas articuladas em torno da figura de Claudio Prado. Muitas dessas pessoas faziam e fazem parte da MetaReciclagem, de modo que o desenvolvimento da Cultura Digital teve uma influência bastante grande de conceitos que tinham sido criados de maneira mais experimental na MetaReciclagem”.

Ctalker, 15 anos de luta pela democratização das comunicações, levanta outra bola, crítica também para o próprio movimento, ao menos para quem tenta entender certas dinâmicas do “lado de fora”: “Sendo evidente que houve ganhos mútuos com a adesão a/de políticas governamentais, como é que discernimos…
…o que foi adesão a políticas /públicas/, que geraram ganhos públicos e particulares (no sentido de favorecem grupos sociais desfavorecidos) para o MetaRec, e…

…o que foi captura pelo lobbismo e pelo fisiologismo, e que gerou ganhos particularistas?
(Responder isso é gerar os critérios para agirmos – ao invés de sermos agidos – nesse longo e suposto ocaso de Gil e amigos e diante da crescente tendência do governo a lotear fisiologicamente as agências estatais que absorveram os temas, métodos e pessoas do ciberativismo autonomista, de 6 anos atrás para cá.)”.

As outras críticas, deste e de outros militantes, assim como as “defesas” e conceituações do próprio Cláudio Prado nós veremos em outros momentos desta reportagem.

Agora um pouco de tecnologia, e de apropriação de tecnologia
Num breve interlúdio, um parêntesis tecnológico de liquuid: “Toda sucata digital é tecnologia de ponta mal aproveitada. Com algoritmos melhores não precisamos de hardwares melhores, ou pelo menos dá pra reduzir esse ciclo… Mas o grande problema ai é pirar que dá pra usar meia dúzia de hardwares projetados para não trabalharem juntos dizendo que podem ser unidos ou modificados para se tornarem um novo aparelho. Isso é inviável e não é replicável por lavadeiras do São Francisco”.

Aproveitando, um parêntesis de Roberto Cury, outro dos que está desde o início, conceituando o projeto de um ponto de vista que engloba também tecnologia: “O metareciclagem é um dos poucos, senão o único, projeto (se é que podemos chamar assim) .br que é essencialmente hacker, no “real” sentido da palavra. Tive a grata satisfação de participar de algumas atividades no passado e esta afirmação é fruto de experiência, não é suposição ou divagação”.

Um pouquinho de história para engrossar o caldo
O Metareciclagem começou entre 2000 e 2001, a partir do movimento de blogueiros da rede, de acordo com Dimantas. “Eu tinha um [blog], o Felipe outro, e nós criamos uma lista de discussão, o Metáfora, para ser um espaço de agenciamento para catalisar novos projetos, idéias e formas de trabalhar estes projetos. Era uma ‘chocadeira colaborativa’ [em referência as incubadoras de projetos e micro-empresas]. Saiu também o Metareciclagem, que quem começou a tocar foi o Dalton Martins, até que a coisa tomou espaço no Parque Escola, da Prefeitura de Santo André, em 2002/2003. E, como projeto mais bem sucedido do Metáfora, incorporou sua lista para ser, neste momento, central”.

Dalton Martins, outro pesquisador e membro do coletivo, coloca que o projeto nasceu do Metáfora, uma comunidade de blogueiros que pensava uma Internet mais colaborativa. “Surgiu também de uma linha de não somente dar o acesso à tecnologia, mas implementar um conceito de inclusão digital que é o de construir opções”. “Mas a apropriação deste conceito, para nós, não é ruim em si. Não somos uma ONG, uma empresa, um CNPJ, e nós não vamos nos institucionalizar. Alguns membros podem até fazer algumas coisas, ter empresas, mas para fazer parte do grupo têm de participar, falar dentro da Ágora que é este grupo”, completa.

O Parque Escola de Santo André, talvez até mais que o Cultura Digital, foi a grande virada do projeto. Em um ambiente onde tudo é reciclado e com a materialização do conceito do Metareciclagem em telecentros, formação de micro-empresas e esculturas-vivas com computadores que podiam ser utilizados, o espaço foi o primeiro momento desta transformação contínua em movimento, projeto coletivo e espaço de troca e criação de políticas públicas para o Digital. “Quer saber mesmo? Participe!”.

NE.: Esta reportagem foi solicitada por este editor a fim de dar voz aos reclamantes pela autoria do conceito e projeto Metareciclagem, e assim, apresentar a conceituação que eles disseram estar distorcida nas palavras de Cláudio Prado. Pela confusão nos depoimentos prestados, parece que não logramos êxito. De certo, não por incompetência de nenhum dos envolvidos, mas, muito provavelmente, pela impossibilidade de se conceituar o que ainda não está conceituado e talvez nunca estará.

Colaborou Badah.

Guilherme Jeronymo


editor

3Comentários

  • elenara, 31 de julho de 2007 @ 11:24 Reply

    confusão nos depoimentos prestados? hehehe. Tá bom!
    outra coisa eu não sou fundadora mdo metareciclagem, sou uma apaixonada por metareciclagem. e, mais, quer definir ou conceituar metareciclagem? então viva metareciclagem!
    abs
    Lele

  • Hernani Dimantas, 31 de julho de 2007 @ 11:43 Reply

    Confusão total… a minha abordagem sobre o tema ficou totalmente sem contexto.
    Esse tal de Claudio Pardo nem deveria ser citado nessa matéria. O problema é o foco, ou a maneira que a revista nomeou esse fulano como um ativista do meta. A revista é que está equivocada.
    Essa matéria parece sobre esse fulano. Ele é citado 9 vezes… caraca; isso é um desserviço

  • Mauricio Parma, 3 de agosto de 2007 @ 20:59 Reply

    Que assunto mais chato esse!

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