O discurso de mercado que o artista é obrigado a adotar no capitalismo descaracteriza a função social da sua artePor Hugo Possolo
“Descrevi a vocês o mais exatamente possível a estrutura dessa república que considero não somente a melhor, mas a única que merece esse nome. Todas as outras falam do interesse público e cuidam apenas dos interesses privados. Aqui nada é privado, e o que conta é o bem público” (Tomás Morus em UTOPIA).
A expressão teatral nasceu em espaços abertos e livres. Suas manifestações primordiais sempre estiveram ligadas ao espaço público que lhe confere o sentido de existência. A institucionalização da arquitetura teatral é decorrente, ao longo da história, da formação da urbe vinculada à sua respectiva divisão social.
Os saltimbancos, que se apresentavam nas feiras que originaram as cidades européias no final da Idade Média, atendiam a um público abrangente e variado, de diferentes classes sociais, faixas etárias, nacionalidades etc. Já os espetáculos contratados por nobres apresentavam-se em espaços fechados para que se selecionasse a audiência. Mesmo as apresentações em estalagens, no mesmo período, aos poucos estratificavam suas platéias, colocando crianças, bêbados e cachorros para fora.
Posteriormente, no auge do Romantismo, o edifício teatral estava definitivamente separado em balcões, frisas e camarotes, isolando nobres, burgueses e clérigos para que se mantivesse devida distância física e, portanto social, dos pequenos burgueses ali presentes, já que a ralé não entrava ali mesmo.
Alcance coletivo do teatro – O sentido público do teatro foi, então, encarcerado. O discurso teatral se restringiu, uma vez que seu interlocutor se tornou específico e direcionado. O Teatro, que antes era público, passou a ter um discurso cada vez mais individualizado, privando-se de um alcance coletivo. A capacidade de comunicação ficou concentrada e dirigida apenas a alguns estratos sociais que a ele tinham alcance.
A sociedade capitalista, industrializada, apoiada na propriedade privada, voltou-se para a massificação, estabelecendo o conceito de produto cultural, restringindo ainda mais a capacidade de relações públicas das manifestações artísticas. Hoje, quando se discute a utilização do espaço público para espetáculos, está se discutindo também qual é o discurso que o artista está empregando em sua obra. Está se discutindo qual a relação que a manifestação teatral tem com a sociedade industrial, urbana e massificada. De dentro de uma sociedade visivelmente injusta, árida e excludente o artista acaba adotando discursos de mercado, deixando-se sucumbir aos apelos da sobrevivência e tergiversando sobre a função social do que faz.
Não se trata de discutir se arte é engajada ou não. Trata-se uma postura política muito mais abrangente, própria do teatro enquanto foro de discussão, que possibilita um entendimento amplo e profundo do que é humano. Se o teatro se pretende transformador, se é uma arte que busca a liberdade, terá que encontrar uma abrangência igualmente humana. Desta maneira a vida em sociedade poderá ser discutida na presença daqueles que darão eco aos significados do processo artístico chamado teatro. Enfim, uma relação pública, uma relação que é pertencente ou destinada ao povo, à coletividade.
Distância entre público e artista – Como vivemos em uma sociedade de consumo, que trata o cidadão como consumidor, não é difícil que um artista equivocado trate seu público como massa. O artista que busca um significado público compreende que ele faz parte do coletivo com o qual vai dialogar. Não se coloca acima do público. E, mais, que este coletivo é composto de indivíduos com os quais ele entrará em debate. Um debate artístico – interativo em sua essência -, mas um debate que pressupõe que o pensamento não seja único, nem absoluto.
Onde estará o teatro em sua busca libertadora se ficar preso às condições históricas de sua formação? Por que nos apresentamos em espaços fechados? Por que estamos longe do público se ele está na rua? Por que o público está longe de nós se nosso discurso não lhe diz respeito?
E nossas manifestações populares? Não estão elas sufocadas? A escola de samba é o grande teatro de rua do país? Os desfiles já foram totalmente transformados em produto de exportação? Será que o morro ainda desce para avenida com o sentido comunitário que o originou? O carnaval ainda continua na rua e faz a tv se render a ele? Ou é ao contrário?
A que demanda de espetáculos em espaços abertos estamos atendendo? Às nossas necessidades artísticas de uma expressão coletiva com significado público? Ou é para atender a um mercado de eventos? Seria para preencher o vazio de convívio social que as cidades geraram em seu crescimento? Ou é para chamar a atenção da mídia?
É para seguir os passos da alguma política internacional de venda da imagem de um país? Copiaremos o modelo francês? Será que estamos querendo criar uma reserva de mercado para o teatro de rua? Onde o povo se manifesta?
Onde está o sentido público do que fazemos? O teatro é sonho? É utopia?
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