Jacques Chirac deu um poderoso mote para que o Ministério composto e orquestrado por Gilberto Gil se faça presente de forma marcante nas estratégias do combate à fome?21/03/2003
O fato aconteceu agora, na primeira viagem internacional do novo presidente brasileiro. Estavam lá Lula e Chirac em conversa que tem como cenário o portentoso palácio francês. Ao citar a quebra das barreiras protecionistas como um efetivo primeiro passo rumo à cooperação internacional entre ambos os países, Lula ouviu de Chirac que, para os franceses, ?a agricultura é cultura?. (Folha de São Paulo, 31 de janeiro de 2003).
Ora, na boca do presidente brasileiro a frase soaria como grosseira e tosca, fruto de uma visão primitiva e equivocada do que é cultura: um prato feito para críticos apressados. Já na articulação do elegante presidente francês, a frase é entendida como uma observação inteligente e, certamente, uma invocação da forte cultura do campo, essa cultura que se afirma através dos séculos e faz da culinária e dos vinhos franceses verdadeiros patrimônios mundiais.
Seja como for, independentemente da boca e da língua de quem a diga, temos aí uma verdade de rara densidade e solidez: proteger o fazer agrícola é proteger a cultura. Pelo frescor da conversa recente e pela importância dos seus protagonistas, vale a pena sua deglutição e a tentativa de digeri-la um pouco mais. Eis aqui uma simples frase que pode ser um prato cheio para quem, como Lula, dirige um dos maiores programas do mundo contra a fome – e para nós da cultura que queremos de alguma forma ajudar e se fazer presente, entrando em cena.
Pensando assim, é natural confessar a grande surpresa e igual decepção por não ver o Ministério da Cultura ?sentado? à MESA (Ministério Especial da Segurança Alimentar), isso pelo desperdício não das migalhas, mas do farto pão que os dessa casa sabem fabricar. Um alimento que pode ser servido a todos os que têm a verdadeira e incontornável fome, em todos seus níveis.
A princípio, basta haver uma catalisação dos elementos já presentes no governo para que essa omissão momentânea possa se transformar em uma força positiva, mais vigorosa que as demais, pois abre e induz a uma participação do Ministério da Cultura em raia própria, dando abrigo e sentido a todas as demais participações. Para que haja mudança e não apenas o desejo dela, é imprescindível ter a cultura como liga e base de qualquer ação social.
O que o monsieur Chirac fez, na verdade, foi dar um poderoso mote para que o Ministério composto e orquestrado por Gilberto Gil se faça presente de forma marcante nas estratégias do Ministério Especial, do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar) e em toda e qualquer frente formada contra a miséria e a fome, tendo em mente que ?a agricultura é cultura?. Entender esse enunciado é preencher o vazio que nenhum outro ministério será capaz de preencher ?nessa guerra que não é para matar, é para salvar vidas?, com bem disse o Presidente Lula.
Entre as ações estruturais que o MESA terá que propor, a informação cultural é a mais básica, o ato primal, e a que mais resultados poderá trazer. Por meio do mergulho permanente no fórum cultural é que será revertida a reza perversa dos que, não tendo o que comer, não têm educação, não têm reflexão, não têm cultura; que por sua vez não têm o que comer… alimentando o circulo vicioso que mantém o Brasil como uma inalcançável promessa, numa gestação tão obviamente prolongada.
Às ações emergenciais previstas na ação prioritária do governo, o combate à fome e à miséria, é preciso juntar já o saber das decisões, que estas são geradas a partir dos contextos culturais imediatos e tomadas diariamente, agora, não se podendo postergar, pois como o tempo, o povo não pára.
E são as decisões o começo de tudo, o primeiro passo da mais longa mudança. Em um átimo se muda o amanhã. No hoje, no agora, se constrói -e destrói o futuro. E ainda que falte tanta coisa para o povo desse país, pode-se desde já decidir em campo com uma base mais assentada em vieses culturais, estes que vão verdadeiramente causar as transformações.
Historicamente, vemos impassíveis a fome ser viciosamente abordada como totem central e absoluto. Mas ela não é esse deus monolítico. É fome de se ver, de aprender, fome de entender, fome de criar, de se fazer e ser, de ouvir, de perceber o próximo e seu mundo, o nosso mundo de todos. Por ser definida a partir de todos os sentidos, a fome é multimídia e surpreendente. Prova disso é que ao levar comida, outros – mesmo mais famintos – preferem a água e o saneamento. Preferem, de modo geral, o trabalho, que ?de fome não morre ninguém?… que tem trabalho.
Com o entendimento de que a “agricultura é cultura”, é possível formar um círculo virtuoso e espiralado fazendo com que a massa popular seja fermentada. Mapear, transmitir, sensibilizar, injetar, intercambiar, aprimorar são hoje apenas verbos mas que podem resultar no escoamento do que será produzido, compondo as vitrines em que os brasileiros das grandes cidades poderão se enxergar e fazer com que nos vejam os naturais de outros países.
É preciso promover os dois passos do movimento da palavra integração, não somente levar a todos brasileiros o que se come, mas trazê-los onde está o que sacia a fome, isto é, levar e trazer o Brasil para si mesmo. A partir da elaboração de um diretório de ações e de interfaces, o Ministério de Gilberto Gil haverá de agregar e sedimentar toda a ação do Governo Lula. Abrem-se as cortinas para o início do primeiro ato. Ao limitado cenário que nos é dado podemos, juntos, acrescentar os horizontes dessa cena possível.
PX Silveira é documentarista.
Px Silveira