“Ao trazer ainda mais terra fértil do seu quintal para jogar na aridez da praça pública, o ministro Gilberto Gil ‘inaugura um movimento’ a partir do planalto central do Brasil”O século XX trouxe inegáveis avanços tecnológicos em quase todos os setores da humanidade. E muito mais, trouxe também um lixo com qual não conseguimos lidar: guerras,poluição, danos ao meio ambiente, aumento das diferenças socias e a violência urbana. Dizia André Malraux, o primeiro Ministro da Cultura da história, que “o século XXI será espiritual ou não existirá”. As entrelinhas são claras: a cultura, reino do espírito, está em alta – ou nada verdadeiramente estará. Esse entendimento se instaura quando percebemos que as únicas mudanças efetivas e reais são as encaminhadas pela cultura, aquelas que se alojam nas mentes e são assimiladas pelo senso comum. É um processo que depois de iniciado ainda pode levar muito tempo para aparecer aos olhos e aos espíritos e só então passar a ser devidamente usufruído.
Muitas mudanças -as verdadeiras- que só hoje sentimos e vivemos começaram há décadas. A eleição do Lula é uma delas. Algo de valor cultural sem precedentes no Brasil e queveio crescendo até se instalar. Junto a essas existem as mudanças que estão começandoagora e que somente vão se materializar com o parcelar do tempo. A nomeação de Gilberto Gil Ministro da Cultura é uma dessas. Não só porque potencializa aquela primeira mudança, aeleição do novo presidente, mas também porque é ao mesmo tempo simbólica e determinante para o tipo de Brasil que o povo sinalizou que quer. Assim, no alvorecer do século de Malraux a grande nação brasileira passa a mostrar diariamente para o mundo uma revolução viável, cultural, possível de ser ao menos iniciada e conduzida mesmo dentro de um tempo histórico muito reduzido se consideramos apenas os quatro anos do mandato delegado.
Se ainda não podemos ver os primeiros resultados, são ao menos visíveis os sinais da grande mudança que ora se anuncia. Pela primeira vez no Brasil -e como em nenhum outropaís até então, testemunhamos farta projeção de um Ministro da Cultura nas primeiras páginas dos jornais e no noticiário tele-visível. São charges, chamadas, fotos e mais fotos em destaque, até mesmo as inéditas manchetes principais do dia, como em “O Globo”. Pudera, para felicidade geral da nação, temos um ministro pop. Mas não é só. Agora podemos dizer, no sentido lato, que finalmente temos um Ministério da Cultura. Mais do que “perplexidade” na até então estreita ala cultural petista, a nomeação de Gilberto Gil cria para todo Brasil uma grande curiosidade. O favelado do Piauí, a motorista de ônibus de Florianópolis, o feirante de Caruaru ou o boiadeiro de Campo Grande sabem agora que no Brasil existem Ministério e Ministro da Cultura.
E não será exagero supor que logo após essa constatação popular surja a pergunta que não mais se calará: para que serve um Ministério da Cultura, o que o seu Ministropode fazer? É esse banho de povo, essa abertura da casa e da idéia ministerial que farão aumentar a demanda interna, vinda de lugares, situações e pessoas felizes descobridoras dessa nova situação. O mais interessante ainda é o que o analistas do jogo administrativo já podem antever, ou seja, o aumento paulatino do orçamento anual do ministério não por um decreto, firmado no vazio burocrático e vindo de cima para baixo como pensaram as administrações anteriores, mas o aumento do orçamento pela única maneira que ele pode vir a ser e ser consolidado: como fruto do azeitamento da máquina governamental e do clamor emobilização populares querendo fazer uso dela.
O que muitos artistas e produtores culturais tão ansiosos por apoio podem considerar um escândalo é algo já costumeiro e aceito sem alardes nas administrações anteriores: é sabido, por alguns, que em vários anos o Ministério da Cultura deixou de executar seu minguado orçamento anual. Seja por razões da lentidão burocrática ou pela falta de agilidade da máquina pouco usada, o fato é que a não execução do orçamento compromete até mesmo a sua manutenção no mesmo patamar para o exercício seguinte, fazendo surgir essa pobre figura de um ministério minguante e vítima de sua própria inércia. Pelo capital pop emprestado ao cargo e pelo peso de sua história pessoal precedente que o faz um dos criadores-pilar de nossa contemporaneidade, já está acontecendo também em nível internacional o mesmo fenômeno de divulgação espontânea do Ministro, do Ministério e da Culturabrasileira.
É inegável, aqui, a chance de ser cumprida com louvor uma outra tarefa que se encontra por fazer na esquina do desenvolvimento brasileiro: que é o contato e posicionamento de nossa cultura na plataforma global. A natural facilidade de Gil em difundir o Brasil no exterior trará também, se bem executada, um aumento da demanda externa pela nossa cultura (fato nunca antes devidamente equacionado), o que resultará em um aumento da atividade artística em todos os setores, fluindo para atender a essa nova realidade.
Ícone que se instaura para finalmente mostrar o espelho à nossa cara enraizada, Gil está ministro porque acredita que trará a transformação, motivo mesmo de todacultura. Ao trazer ainda mais terra fértil do seu quintal para jogar na aridez da praça pública, o ministro Gilberto Gil “inaugura um movimento” a partir do planalto central do Brasil. Com a celeridade à sua maneira, seu olhar acurado e seu ouvido universal, ser ministro será para ele uma maneira a mais de se ofertar na ágora brasileira, de lidar com borboletas onde outros vêem apenas lagartas. Por abrir gentilmente essa porta, a porta da casa brasileira onde mora a força verdadeiramente transformadora que é a cultura, é evidente que no quadro político da atualidade Gilberto Gil, justamente egresso do PV, é o único ministro “petista”, no sentido matricial da permanência dos ideais mais profundos de transformação do Brasil, das utopias construídas e alimentadas por tantos militantes do partido.
Esse ideal permanece em Gil e nos verdadeiros artistas, aceso e intacto diante das vicissitudes da vida e da necessidade de conjugação política que fez o “amadurecimento” do PT, dizem, para poder tocar o transatlântico governamental. Graças a conservação na salmoura da criação artística, poderosa e fluente, surge um ministro brasileiro com coração e alma de um político do século XXI. Gilberto Gil é o que traz uma estrela, não na lapela, mas sim na testa.
PX Silveira é documentarista e diretor executivo da Fábrica da Cultura.
Px Silveira