Uma proposta para um novo modelo político sem partidos e com gestão sistêmica e integrada
A eleição dessa semana me deixa triste. Acho que os últimos quatro anos tiveram gestão muito melhor do que os anteriores, mas não foram o que imaginamos. Quatro anos atrás estávamos tão animados achando que finalmente as coisas iam acontecer de um jeito diferente. Confesso que imaginava ações que realmente mostrassem a diferença. Algo como: tirar as forças armadas dos quartéis e colocar em campo para alfabetizar adultos, fazer mutirão de saneamento básico, construção de casas populares, sei lá. Ou então radical mudança de legislação e tributos, por exemplo, para que as micro e pequenas empresas pudessem realizar seu papel de agentes da saúde econômica do país. Não vimos nenhuma mudança profundamente significativa, nenhuma ação que simbolizasse a decisão de fazer diferença e diferente. E, o que é pior, pouca mudança na cultura política, no jeito de pensar e agir.
Quem trabalha com cultura acredita (ou sabe?) que mudanças efetivas só são possíveis quando precedidas por mudanças culturais, ou seja, mudança de mentalidade e hábito. Honra seja feita à gestão Gilberto Gil que foi memorável neste aspecto: mudou a cultura em relação à cultura e criou programas geniais como o Cultura Viva/ Pontos de Cultura.
Uma das culturas políticas que não mudou (e é absolutamente danosa) é a cultura da barganha. Ficou claro que houve uma barganha com o sistema financeiro (os verdadeiros dirigentes do país ?): parece que o país foi entregue a ele, em troca do acesso ao poder. Mesmo para quem não entende nada (como eu) fica claro que uma situação onde vale mais especular com o dinheiro do que investi-lo em produção é uma situação doente. E este câncer está nos consumindo.
Para dar uma idéia de números: devido à taxa de juros (mais alta do mundo) pagamos juros inacreditáveis, que consomem qualquer sonho de crescimento. De 2003 a 2005 foram pagos – só de juros da dívida interna, nada da dívida propriamente dita – aproximadamente 430.600 bilhões de reais [1] (mais ou menos 195,7 bilhões de dólares). Isso equivale a: 53,82 programas Bolsa Família (8 bilhões de reais); 1.510 orçamentos 2005 do Ministério da Cultura (orçamento de R$ 285 milhões pois o contingenciamento foi de 56% do valor orçado [2]. Outra comparação, ligada a investimento em crescimento: o Plano Marshall, criado para reconstruir a Europa e o Japão no pós-guerra, custou o equivalente a US$ 130 bilhões (US$ 13,0 bilhões corrigidos [3] para 2006), pagos em 4 anos. Pagamos então um plano Marshall e meio em 3 anos.
De uma maneira geral o que nós vimos foi que não adianta ter pessoas preparadas e até bem intencionadas (e existem muitas no governo) pois o modelo está furado. O “esquemão” é mais forte. Acho curioso como isso é tão pouco discutido. Será que não está claro que a questão não é mais de partidos ou pessoas, mas de modelo? Será que não está claro que, assim como num momento da história mudamos de monarquia para república agora está na hora de mudar para??? Surpreende-me que esse governo tão desejado, pelo qual batalhamos um bocado, tenha ousado pouco e não tenha proposto inovações que são necessárias.
Tenho pensado muito nisso e, como adoro exercícios de visão de futuro, de pensar não no que é, mas no que poderia ser, fico brincando de pensar um outro modelo. Despretensiosamente, já que “livre pensar é só pensar”, como diz o Millor. Tenho certeza que vou falar muita besteira, mas vou arriscar…
Sem partidos- méritocracia
Primeira coisa desse modelo: será que é possível haver democracia sem partidos, será que eles são mesmo necessários? Pois sem partido a corrupção melhora bem – já que não precisa roubar para o partido. Sem partido deixa de existir esse tipo de negociação absurda de cargos, votos, orçamento etc que perpassa todas as esferas da gestão, negociando de forma leviana o futuro do país e seus habitantes. Sem partido as prioridades dos governos voltam a ser o governar, o que parece óbvio mas não é, pois nos últimos anos a disputa entre partidos é que se tornou prioritária. Além do mais, sinto que os partidos não tem mais representação setorial, ideológica ou de conceitos. Parecem um pouco como os times de futebol: algo indefinido e oportunista embrulhado em muito marketing. Aliás, a maioria dos candidatos (ao menos para fins de imagem) já é sem partido: os partidos nem aparecem na maioria dos materiais impressos, ficam ali escondidinhos em letrinha miúda. O que aparece mesmo é o nome da pessoa.
O que me leva então ao segundo ponto deste modelo: não temos partidos, escolhemos pessoas por sua competência, idoneidade e mérito. Digamos então que esse modelo pudesse se chamar “méritocracia”. Escolher pessoas? Isso é impossível, dirão muitos. Será? Não é assim que são escolhidos a maioria dos cargos nos outros setores? Como é escolhido um diretor de hospital? Um chefe de missão espacial? Um presidente de empresa transnacional (que muitas vezes administra recursos maiores do que muitos países…)? Por competência.
Quando somos contratados pelo governo temos que apresentar uma pilha gigantesca de documentos que provem que somos idôneos e capazes. O inverso deveria ser válido: todo candidato deveria provar o mesmo. Primeiro ponto definitivo e estruturante é a ética, começando pela ficha limpa, corroborada por um levantamento de seus bens. E de sua família, pois não adianta colocar tudo em nome da mulher, filhos, netos, primos ou o que for. Aliás, em casos de corrupção ou má gestão, a dívida deveria ser de responsabilidade não apenas do mau gestor mas de toda sua família. Assim a própria família, já que é também responsável, ia ficar de olho nas falcatruas do parente político e importante….
Além da ficha limpa é preciso ter a competência, e nestes casos o óbvio não é tão ululante: seria demais supor que um ministro da saúde deva ser do ramo? Todo candidato a um cargo deve conhecer o ofício ao qual se candidata!! E mais: deve entender da gestão desse ofício, pois é gestão o que ele fará. Isso não seria genial? Já imaginou os Sebraes (com seus fabulosos recursos, capilaridade e conhecimento) com diretores que são do ramo e não apenas eleitos (salvo raras e preciosas exceções) por moeda política? E, melhor, já imaginou um Sebrae que não mudasse de diretoria cada dois anos (afinal, é preciso girar para que a moeda política renda mais dividendos), dos quais praticamente só um é efetivamente trabalhado pois o primeiro semestre é de reconhecimento do terreno e o último não conta pois a gestão está acabando ?
Tempo de governo e sustentabilidade
Eis aqui um outro ponto interessante para esse projeto de méritocracia: o tempo de permanência no cargo. Mudar tudo a cada dois ou quatro anos é incompatível com planejamento de longo prazo, sustentabilidade , ou seja, com tudo que precisamos. Aliás, mudar todos os escalões de governo é insano sempre, tem um custo tremendo não só de recursos quanto de conhecimento que não se acumula. Nesse novo modelo, depois de um ano de eleição se verifica se os eleitos estão fazendo boa gestão: cumpriram suas promessas, não acumularam bens descabidos no período etc. Caso negativo,caem fora direto, causando o menor dano possível à nação. Caso afirmativo,ficam. E permanecem enquanto estiverem trabalhando bem. Verificações periódicas são feitas para fazer este acompanhamento.
Aliás, nesta visão de futuro o acompanhamento seria mais fácil, pois a gestão é feita através de planos, concebidos por especialistas e baseados em consultas às comunidades – mais uma ferramenta para evitar o faz/desfaz a cada mudança de governo. E a consequência que custa mais caro nestas situações (não tem preço) é a falta de credibilidade. O que se vê é que poucos hoje acreditam em se envolver em projetos de governo pois sabe que eles não tem continuidade.Cansei de ouvir: Ah! É com governo? Então estou fora…
Estes planos poderiam ser acompanhados on line: todas as instituições que usam dinheiro público (seja um ministério ou secretaria municipal, o uso de lei de incentivo ou um agência de fomento) deveriam tornar público qual seu orçamento, como ele está alocado e permitir o acompanhamento das ações, gastos etc. Assim, se torna visível o que está ou não sendo feito. Sebrae e Apex tem um modelo (que tem problemas mas já é um começo): o SIGEOR- Sistema de Gestão por Resultados.
Gestão sistêmica, integrada
Por falar em resultados, fica cada vez mais claro que o grande desafio desse século é a gestão integrada, multisetorial, transversal. Os projetos de desenvolvimento avançam pouco pois eles exigem uma ação articulada entre várias esferas governamentais. E não existe estrutura, ferramentas nem quadros para esse tipo de ação integrada. Como fazer?
Creio que vivemos um momento interessante, semelhante ao que aconteceu na primeira metade do século XX e que consagrou a ecologia como disciplina fundamental na maneira de lidar com o mundo. A ecologia, um termo cunhado por Ernst Haeckel nos meados do século XI, firmou-se quase cem anos depois pois os riscos que ameaçam o meio ambiente obrigaram a que se desenvolvesse uma visão sistêmica do assunto, integrando as várias disciplinas a ele relacionadas.Hoje a ecologia faz parte do nosso cotidiano, tornou-se senso comum.
O que assistimos agora é (espero!) o inicio de um processo semelhante, porém relacionado ao ambiente das idéias, intangível, garantido não pela diversidade biológica mas pela diversidade cultural: podemos talvez chama-lo de ecossistema cultural. E está cada vez mais claro que este ecossistema cultural, intangível, tem uma relação de interdependência com o ecossistema ambiental, físico.E mais: ele tem caráter matricial.Para mudar nossos hábitos é necessário antes mudar nossas mentalidades. É por isso, por exemplo, que na segunda gestão de François Mitterrand , o ministro da Cultura (Jacques Lang) era seu segundo homem: cada projeto ( de saneamento básico a agricultura orgânica) envolve um forte aspecto cultural para poder ser bem sucedido.
Assim, para que esta nossa méritocracia pudesse ser mais eficiente na sua ação sistêmica e integrada, para que houvesse visão de futuro e sustentável, as instâncias de governo poderiam ser geridas por um trio. Teríamos então, por exemplo, o especialista da pasta (Saúde, Trabalho, Relações Exteriores, Agricultura etc) secundado por profissionais que conheçam a relação e interface entre o tema da pasta e os dois ecossistemas: ambiental e cultural. Todo projeto deveria então levar em consideração, em seu planejamento e execução, o impacto e benefícios (ambientais e culturais) que acarretam.
Nesta méritocracia, campanhas de marketing não existem. Nada. Nem um centavo. Investe em publicidade quem quer seduzir para reaver, e com bom lucro, o dinheiro investido. É isso que desejamos de nossos candidatos? Digamos também que o voto, além de distrital, não seria obrigatório. Quem deseja votar i procura se informar sobre os candidatos e a comunicação disponível é feita de forma padronizada e exclusivamente informativa: nome, o que fez na vida, o que se compromete a fazer e – sobretudo – como pretende fazer.
Que mais? Livre pensando, só pensando…
Cada cargo poderia ter uma “rainha da Inglaterra”, aquele profissional cuja função é representar a instituição em eventos, cerimônias etc. Enquanto isso os gestores não perdem um tempo precioso que não possuem, e podem se dedicar plenamente à gestão e planejamento. Por falar em tempo: trabalhar de terça a quinta e ter meses de recesso, nem pensar. Aposentar-se com salário integral, vitalício e com pouca idade, também nem pensar. É incrível a quantidade de quarentões na flor da idade e aposentados com altos salários (muitas vezes mais de um) que vemos na esfera pública. Não é por acaso que o maior peso para a Previdência vem dos funcionários públicos. Que, aliás, não poderiam ser aqueles que propõem e votam suas próprias condições de trabalho e pagamento. Falando em pagamento, os salários deveriam ser melhores, compatíveis com os da esfera privada, inclusive para evitar roubo e a corrupção.
E quanto mais se pensa, mais detalhes surgem.
Não é um exercício interessante? Que tal? Vamos começar a pensar no modelo que desejamos e merecemos? Afinal, a melhor maneira de prever o futuro é criá-lo e não queremos um futuro onde se escolha o seis ou a meia dúzia…
[1] Relatório annual 2005 do Banco Central do Brasil, pg 83
[2] Agência Brasil – Abr, 22/12/2005
[3] Wikipedia
Lala Deheinzelin