Mais uma vez em 2021 os artistas juridicamente ativos em suas MEIs em diversas contratações públicas e particulares foram desclassificados de projetos na última edição do ProAC Expresso por um desentendimento dos princípios contábeis e de uma possível falha de comunicação ou orientação interna da Secretaria de Cultura e Economia Criativa. Há até uma falta de entendimento legal da situação. Tal falha nos leva a mais um passo dado em direção à desestabilização e marginalização do setor cultural.

A primeira discussão pública sobre o assunto foi durante a análise da documentação do ProAC Expresso LAB 46/2021 (Prêmio por histórico de realização em circo), onde 52,08% entre os projetos habilitados e suplentes foram quase inabilitados. Os editais do ProAC seguem permitindo que MEIs apresentem projetos, porém as categorias da dança e do circo tem uma desvantagem contábil em relação às outras. Os CNAEs de produção de circo e produção de dança não podem ser inseridas nos CNPJs de MEIs. Então, os projetos são aprovados, mas, quando chegam na etapa de saneamento de falhas (a partir da análise da documentação), as empresas são inabilitadas sob a argumentação de que seus CNAEs e seus Objetos Sociais não se enquadram no objeto do edital. Todos os inscritos se apoiaram, evidentemente, na CNAE mais próxima: a irmã Produção Teatral, com a qual a categoria circense unida, apresentou um parecer coletivo ao saneamento de falhas, em um processo articulado, conseguindo reverter a situação e recolocando os projetos naquele processo listados, de volta à lista de habilitados no dia 19 de novembro deste ano. Quase na mesma data em que a comissão de análise das categorias da dança divulga os 39% de inabilitados pela mesma causa. E pior. A Secretaria de Cultura e Economia Criativa trata os premiados em dança de forma diferente. Ignora seu recurso. Não aceita nas MEIs, o CNAE de produção teatral. Se há o precedente do circo, qual a justificativa para a diferença na análise? Há uma orientação comum à comissão de análise de documentos? E pior. Ao analisar junto da sociedade civil, encontramos casos de empresas habilitadas sem o tal CNAE no edital 38, modalidade 06 (dança, ProAC Direto), por exemplo. Porém com os mesmos CNAEs e objetos daqueles inscritos nos outros editais de dança. Uns aprovados, outros reprovados.

Uma vez que se permite a inscrição de MEIs, logo, deve haver uma área compatível para que esta empresa possa concorrer com as outras. Não há no edital a descrição exata de quais CNAEs serão compatíveis – tal qual faz o Governo Federal na Instrução Normativa da Rouanet, por exemplo. Vários artistas da dança perguntaram por e-mail à secretaria que, ou não respondeu, ou respondeu afirmando que “caso o objeto esteja em consonância com atividades artísticas culturais, sem a especificação de uma ou mais linguagens poderá ser devidamente habilitado pois não restringe a atuação da pessoa jurídica de forma fragmentada”. Nunca apresentando com objetividade o número e o nome do CNAE devido. No saneamento de falhas dos outros editais, foi solicitado ao proponente exatamente o documento que lhe faltava. Para os proponentes da dança, uma resposta vaga e inconclusa. Ao pesquisar no site do governo dentre os CNAEs válidos para MEI para as produções artísticas, não há uma que seja irrestrita, como sugerido pela Secretaria. Apenas as definidas e fragmentadas por setor – e ainda assim, excludentes para com a dança e circo.

Neste artigo não entraremos no mérito das fronteiras artísticas hoje quase inexistentes que separam a dança do teatro e do circo, mas que na formalização dos trabalhos, as caixinhas sempre estão erroneamente presentes de alguma maneira. Tanto que há projetos idênticos inscritos e concorrendo simultaneamente a editais de dança de circo ou teatro. Mas, seguindo o raciocínio da fala do e-mail, expomos um caso de um projeto que apresentou uma proposta de dança-teatro, foi contemplado, tinha o CNAE de Produção Teatral e, mesmo assim, como todos os outros, inabilitado. O teatro da dança-teatro aparentemente não está em consonância com uma Produção Teatral.

Só na área da dança, entre aprovados e suplentes foram 39,34% dos projetos inabilitados nos 4 editais: Proac Expresso 04, 05, 06/2021 (Dança Produção, Dança Circulação, Dança #culturaemcasa) e Proac Expresso LAB 45/2021 (Prêmio por Histórico em Dança).

Vale lembrar que aqui falamos de uma lógica de editais já desgastada e que necessita de uma revisão urgente de recurso público para a cultura, que a cada ano oferece um valor menor para o setor. Um setor que cresce a cada ano e consequentemente teve na última edição, seu recorde de menor porcentagem de projetos contemplados, chegando ao número ínfimo de 4,6% no ProAC Expresso.

Evidentemente que, se por um lado há uma tentativa da Secretaria de Economia Criativa em trazer as MEIs para as concorrências públicas, por outro, há uma necessidade urgente de se repensar a as MEIs para o setor cultural – que tem um tipo de atuação diferente de outros mercados. Em 2008, quando surge a figura do Micro Empreendedor Individual, ela acaba por se tornar um instrumento importante para a profissionalização de diversos setores, dentre eles, o setor cultural, onde muitos artistas puderam se formalizar, emitir Nota Fiscal de seus trabalhos, rezar por uma fatia magra de aposentadoria no futuro e assim, operarem de forma independente. Muitos migraram de cooperativas para as MEIs, ou ainda, saíram da ilegalidade e da forma “pirata” a qual eram obrigados a trabalhar e puderam assim trabalhar formalmente em seus diversos “jobs” ou “gigs”. Evidentemente que não pretendo entrar aqui no mérito dos sabores e desilusões de se “empreender individualmente”, nem da diferença da realidade da profissão artística em comparação com outros setores que a MEI abrange.

Mas, sim, há a necessidade de se destacar a arbitrariedade e as falhas que nos levam a, como categorias, lutar e conseguir contemplar toda a categoria artística dentro da formalização, colocando ao lado de músicos, atores, escritores, cineastas, também os bailarinos e circenses excluídos da formalização individual.

Não só os artistas se sentiram prejudicados com a postura da Secretaria de Economia Criativa, mas ao buscar as advogadas Beatriz Ribeiro de Moraes e Mariana Bachcivangi Garcia da B&RB LAW, que agora representam os coletivos de dança neste processo, quando por sua vez apresentam os argumentos legais no recurso, a categoria se choca ainda mais com arbitrariedade com a qual foram inabilitados seus projetos. (Destaco aqui a importância de se ter uma assessoria jurídica) Na defesa por elas escrita e protocolada pelos vários proponentes, em suma, existem 5 argumentos legais pelos quais as MEIs devem ser habilitadas no processo. São eles:

1 – Ausência de clareza no edital: Uma vez que o edital não define com clareza o CNAE que será aceito, a desclassificação torna-se arbitrária.

2 – Princípio da Isonomia: A exigência de um CNAE não previsto na MEI fere a impessoalidade do gestor público e pode recair em restrição da competição. De acordo com as advogadas,

“desde 2018 os CNAE’s referentes a atividades artísticas passaram a ser mais abrangentes; desta forma, não se pode admitir que as MEI’s ligadas à dança sejam afastadas da oportunidade aberta pelo edital em razão de uma regra que não condiz com a realidade fática. Ou seja, não podem ser colocadas em desvantagem por situações a que o sistema constitucional empresta conotação positiva. Neste sentido se há de entender a clássica lição de Pimenta Bueno segundo a qual “qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público, será uma injustiça e poderá ser uma tirania”

3 – Princípio do Formalismo Moderado: a Administração Pública deve agir de forma a evitar o excesso de rigor em prol do interesse público. Um espetáculo que se prova (pela avaliação curatorial) ter excelência e competência para sua realização na maior concorrência que este edital já teve, não pode ser excluído por um rigor exageradamente formal – pela falta de um CNAE específico (que, como já dito, sequer foi explicado com clareza qual deveria ser). Deve-se então

“aplicar o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade em relação às formas. Assim, dispensa-se uma formalidade excessiva nos processos administrativos, ou seja, bastam as formalidades estritamente necessárias à obtenção da certeza jurídica e à segurança procedimental.” (Moraes e Garcia)

4 – MEI, Lei Complementar nº 123/2006 e tratamento diferenciado nas seleções públicas: A lei prevê um tratamento diferenciado para MEIs que prevê sua equidade de tratamento nas contratações e editais públicos, bem como essas contratações devem ser fomentadas peço setor público. Ou seja, a inabilitação desses proponentes vai diretamente contra esta legislação.

5 – Do próprio edital: uma vez que seu objetivo é estimular a retomada das atividades culturais fortemente impactadas pela pandemia, e assegurar recursos para a categoria, gerar uma restrição deste tamanho para seus concorrentes acaba por restringir e prejudicar ainda mais seus concorrentes. O edital acaba por ir contra seu próprio objetivo.

Nenhum dos recursos enviados pelos proponentes da dança foi aceito. Houve uma conversa das advogadas com a Secretaria, mas que a nada levou, mesmo evidenciando todo o processo injusto descrito aqui. E dos e-mails respondidos aos proponentes, apenas ouve-se uma mesma resposta genérica e (após entender a arbitrariedade explicada pelas advogadas) aparentemente sem clareza nem base legal, que diz – de acordo com a matéria publicada no G1 – que “as atividades compatíveis são analisadas na atividade principal ou secundária devidamente demonstradas no Certificado da Condição de Microempreendedor Individual”. E que “O proponente deverá comprovar em seu Certificado o CNAE compatível com o respectivo edital, como no caso de Dança e Circo.”

Os proponentes da dança se reuniram para buscar uma saída amigável junto da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, com o apoio das advogadas e de diversas organizações do setor cultural e agora, sem um posicionamento definitivo nem a situação revertida a tempo, entraram com uma ação judicial contra a Secretaria, e agora aguardamos todos o parecer da justiça para reverter a situação.

Agradecimento às advogadas citadas e a todes produtores e proponentes envolvides na mobilização que colaboraram com informações para a escrita deste artigo, bem como à classe que está, unida, lutando por seus direitos.

Outras fontes:
O BAILARINO NO BRASIL É UM PROFISSIONAL OU UMA MICROEMPRESA? Discussões acerca da MEI como forma de atuação profissional

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do Cultura e Mercado

contributor

Gustavo é ator e produtor cultural.

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