Nas próximas semanas deverá ser protocolado no Congresso Nacional a proposta do governo de reforma da Lei Rouanet – de incentivo fiscal à cultura – para ser discutida e votada naquelas duas Casas legislativas. Com ampla repercussão, o Ministério da Cultura tem divulgado ostensivamente que essa proposta foi o resultado de um longo processo de discussão com o setor artístico por meio da série ‘Diálogos Culturais’, uma caravana ministerial que percorreu 19 capitais do país promovendo encontros, aos quais o ministro Juca Ferreira se tem referido enganosamente como debates.
Ele assim o faz por razões fáceis de adivinhar: aceitando-se a tese de que a proposta foi gerada no ventre de uma discussão ampla, o projeto do governo chegaria às mãos de senadores e deputados federais imantado por propriedades democráticas decisivas numa iniciativa desse porte e em final de governo.
Sucede, porém, que tais debates nunca existiram – exceto, claro, na propaganda oficial.
Vamos ao óbvio: o conceito de debate pressupõe confronto de ideias, oposição de argumentos, contestações, exposição do contraditório. Isto é, trata-se de um antagonismo como outros e, como tal, precisa de regras claras e justas entre as partes para se tornar também legítimo.
Pois bem, para a série ‘Diálogos Culturais’, o ministro Juca Ferreira mobilizou uma numerosa equipe de assessores para produzir eventos diante de plateias controláveis e capazes de reagir de acordo com o script oficial, num formato que nada fica a dever aos melhores programas de auditório da TV brasileira.
Estive presente em quatro deles. O último aconteceu na Associação dos Advogados de São Paulo, em 8/6 -talvez tenha sido o mais exemplar em termos de manipulação.
Foi assim: mesa composta por convidados escolhidos a dedo, grandes contingentes de servidores públicos presentes na plateia e a participação ruidosa de entidades amigas, que abriam faixas e repetiam palavras de ordem em coro bem ensaiado.
Manejando um power point para lá de eclético, que misturava gráficos econômicos e dados estatísticos com trechos pinçados da obra do pensador Maquiavel, o ministro denunciou a ‘perversidade’ do sistema atual, e os eternos ‘privilegiados’ do processo foram desmascarados de forma tão definitiva que quase se ouvia o despencar de lâminas. Aplausos pontuaram a conclusão de cada raciocínio ‘revelador’ do senhor ministro.
A exposição de Ferreira foi sucedida pela fala de seus convidados, sem que houvesse contraste de opiniões e no mesmo tom de ‘biópsia social’.
Ao todo, cerca de duas horas e meia foram consumidas nesse balanço geral. Em seguida, foi anunciada a segunda etapa do evento, com a participação da plateia e para a qual restou pouco tempo.
Entre mais de 400 pessoas presentes, a palavra seria dada a cerca de dez sortudos que se inscrevessem primeiro. Antes que alguém pudesse levantar a mão, filas já se formavam diante dos microfones colocados nos corredores entre as poltronas. Muita gente ia ficar de fora. Tumulto.
O acesso à palavra não seguiu nenhum critério. Um estagiário de produção no seu primeiro contato com o ofício ‘democraticamente’ teve o mesmo espaço que um presidente de entidade que representa toda uma categoria. Os servidores públicos subordinados ao ministro e que iam ao microfone penhorar o seu apoio à proposta de reforma do governo não foram obrigados a se identificar.
A ninguém foi concedido o direito a réplica ou tréplica, excetuando-se, claro, os ilustres integrantes da mesa, quando contestados nos seus números, dados ou opiniões. Alguns artistas só conseguiram contra-argumentar na base do grito.
Foi a isso que o Ministério da Cultura deu o nome fantasia de debate. As opiniões do governo sobre a Lei Rouanet são bem conhecidas de todos há mais de seis anos, e elas entraram e saíram desse processo sem nenhuma alteração importante. Os ‘Diálogos Culturais’ só serviram para dar visibilidade nacional a um político desconhecido até chegar ao poder.
Questionado, em algumas oportunidades o ministro já garantiu que não concorrerá a nada nas próximas eleições -e não há razão para duvidar. Porém, se, movido pelo seu senso de dever para com o país ou cedendo aos apelos veementes de seu partido, Juca Ferreira sair candidato a qualquer cargo eletivo em 2010, a área cultural se saberá usada e vítima de uma vergonhosa trapaça intelectual.
Não será uma sensação agradável.
Irá preferir a indiferença e o descaso oficiais aos quais já se habituara.
Paulo Pélico é produtor de cinema e teatro e diretor de assuntos institucionais da Apetesp (Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo).”
*Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 14 de julho de 2009.
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