Vitória política que pode tirar muitas rádios da clandestinidade, o processo de habilitação das comunitárias em São Paulo é precioso às vésperas da implantação do sistema digital de radiodifusão
Terminou ontem, dia 5 de março, o prazo para postagem dos documentos de inscrição de entidades civis sem fins lucrativos para a habilitação aos serviços de radiodifusão comunitária na cidade de São Paulo. As inscrições foram abertas em 7 de dezembro, por meio de aviso de habilitação expedido pelo Ministério das Comunicações.
Trata-se, principalmente, de uma vitória política do “movimento” em prol das rádios comunitárias no município. O movimento congrega entidades de variadas origens e bandeiras que vêem na abertura do canal em São Paulo um avanço rumo a um sistema de comunicação mais democrático e plural. Recentemente diversas entidades da sociedade civil criaram a Rede de Apoio à Regularização das Rádios Comunitárias em São Paulo, contando ainda com o apoio de parlamentares do legislativo estadual e municipal.
Entre 1998 e 2006, 330 entidades manifestaram interesse em obter autorização para radiodifusão comunitária no município. Em outubro, o Ministério das Comunicações as avisou da possibilidade de publicação do edital. De acordo com dados obtidos junto ao Ministério pela Oboré, escritório de comunicação envolvido com a questão e localizado em São Paulo, 109 entidades manifestaram-se novamente, e 32 entregaram a documentação necessária até o começo de fevereiro.
Um pouco de política
São Paulo foi um dos últimos municípios do Estado a regularizar suas rádios, apesar de contar com diversas associações comunitárias e movimentos sociais favoráveis a tal. Pesaram nessa protelação o grande número de emissoras comerciais no município e a geografia urbana difícil, além das dimensões da metrópole.
Em setembro, funcionários do Ministério já planejavam a publicação do aviso. Em contato com a Oboré, surgiu a idéia de que fossem realizadas mesas de trabalho para discutir e acordar critérios e detalhes do processo, inclusive com a participação das associações que pretendiam ter as rádios. Das sete mesas realizadas resultaram meios de tornar a concessão mais transparente.
A defensora pública estadual Renata Tibyriçá acompanhou as mesas de trabalho, e as entendeu como uma mudança positiva: “O Ministério se envolveu de forma bastante intensa desde o começo até a publicação do edital. Muitas comunidades viveram a apreensão de equipamentos, mas ainda acreditam que este sonho pode tornar-se verdade”. “São Paulo conseguiu ser ouvida e construiu junto, e isso é um grande ganho”, comenta Cristina Cavalcanti, da Oboré. Complementa: “O Ministério liberou porque a pressão política era muito grande, assim como a desinformação”. A 8ª Mesa de Trabalho, na Câmara Municipal, será realizada dia 20 de Março, às 10h. Pretende fazer um balanço dos apoios às rádios, e analisar as metas e a continuidade dos trabalhos.
Apesar das discussões, a definição do canal ainda não está de todo fechada. De acordo com a legislação, um canal único se destina a todo o município, diminuindo potencialmente o número de rádios comunitárias. Em São Paulo, as comunitárias ocuparão o canal 198, primeiro do dial (87,4 Mhz). No município, o canal 200, que normalmente se destina às rádios, tem “proprietário”. Estudos do CPQD e da Politécnica da USP no canal intermediário, o 199, tentam mostrar meios de explorá-lo.
Por que rádios comunitárias?
A radiodifusão comunitária, regida pelo decreto federal 2.615, de junho de 1998, consiste na exploração da radiodifusão por associações de moradores ou entidades sem fins lucrativos, de forma gratuita e sem patrocínio, prestando serviços de informação e debate sobre temas de relevância pública, como saúde, educação e saneamento. Sua função difere da das rádios comerciais e está focada em um grupo menor, por isso têm também uma restrição de área, em geral de 3,5 a 4 Km.
Conforme informação do Ministério, de 330 entidades que manifestaram interesse pela habilitação para radiodifusão comunitária, apenas 109 reafirmaram o interesse. Mas “não é um número tão exato. Algumas das entidades que apresentaram documentação agora não haviam manifestado interesse. Outras desistiram, preferindo continuar fora das regulamentações. Não estão interessados nas habilitações, por não terem condições de se adequar às exigências do Ministério ou por considerarem pequeno o alcance ou baixa a potência permitidos. Há ainda grupos religiosos que usam do rádio, e sabem que não terão a concessão como comunitários”, diz Anna Claudia Zazzoler, advogada do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, da PUC SP, que presta assessoria jurídica a aproximadamente 60 associações que atuam ou têm interesse em atuar com radiodifusão no município. “Há também casos em que a associação não é localizada, ou não tem mais interesse em manter uma rádio”, reforça Cristina Cavalcanti.
Localizada na zona norte, próxima à Santana, a Sociedade Amigos da Vila Constança, Savic, foi uma das primeiras rádios a se inscrever em 1998, após a homologação do decreto 2.615. Seu processo foi o sétimo recebido em todo o país, mas somente agora a entidade, aos 53 anos, pode tentar instituir uma rádio. “Funcionamos sem autorização de 1998 a 2005, e então fomos fechados pela Polícia Federal, quando fui processado. O rádio é a única forma de chegar ao povo daqui, muitos dos quais são bastante humildes. E assim levar inclusão, a partir de cursos, de esportes e de cultura.”, diz Nivaldo Cardoso, presidente da associação, já em seu terceiro mandato.
A entidade, que também atende o Jardim Brasil, tem ao todo 23 projetos, alguns mantidos com verbas governamentais, específicas para cada projeto, além de doações. Entre os projetos, um jornal comunitário. “Se o rádio vai dar prejuízo? Não sei, mas vai chegar onde a gente não consegue, vai entrar na favela, onde não dá para entrar toda hora, e vai agregar valor, vai somar com as outras atividades da associação”. Além de fazer propaganda da entidade, de campanhas públicas e de veicular programas de entretenimento, principalmente de música nacional, a Savic FM também tem outro “destino”: um dos projetos é utilizar os estúdios da rádio, ainda existentes, para formar radialistas dentro da comunidade, para entreter e para informar a própria comunidade.
Enquanto a Savic já tem sete anos de transmissão no “currículo” e mais de 50 de estrada, centralizando em sua sede uma série de iniciativas para o bairro, o Pequeno Mundo de Élen, no Jardim Lajeado, Guaianazes, vem de outra realidade. Enquanto pleiteia a doação de um terreno público para sua sede, funciona em espaço cedido. Atende exclusivamente jovens e adolescentes, desenvolvendo programas de educação, recreação e esportes, em espaços cedidos por outras entidades, em especial igrejas, e por moradores. Carmen Gomes é a coordenadora da ONG, desde a fundação, há 12 anos.
O foco da entidade não é a comunicação, mas esta não deixa de ser uma ferramenta para seu trabalho, definido como o de livrar crianças e adolescentes do destino de soldados e mulas do tráfico, empregados do “4° setor”. O Pequeno Mundo pleiteia a rádio por ser a única entidade da região em condições burocráticas para fazê-lo, mas a operação e a gestão seriam conjuntas com outras 17 entidades. “A rádio é plano da gente faz tempo. Entramos com os documentos em 2002, mas não operamos com medo da Polícia Federal, que fechou uma série de rádios não autorizadas na região. Faz falta uma rádio no bairro, para informar sobre as coisas do bairro, para articular, e até mesmo para alertar, em situações de emergência. Algo parecido com a Rádio Favela, que faz algo fantástico”, diz a líder comunitária.
Mas o esforço não terá resultados se as rádios não se sustentarem, ou se não atuarem propriamente como comunitárias. Para Cristina Cavalvanti, “a proposta, o ideal, é por um modelo [de rádio comunitária] que não reproduza as FMs. Mas, para isso, a verdadeira guerra é sustentar, produzir, ter conteúdo. As comunitárias tem um imenso potencial, seja de educação popular, informação ou mesmo como mercado de trabalho”.
Por sua representatividade e pelo respaldo junto às comunidades, as rádios são uma ferramenta de divulgação e informação que começa a chamar a atenção do poder público. Remontam à gestão Marta Suplicy os esforços para capacitar radiodifusores comunitários a passar informações sobre saúde pública e saneamento.
A recente Defensoria Pública estadual procurou estabelecer contato com as associações de bairro que estão por trás das rádios, através da Oboré. O objetivo, conta Renata Tibyriçá, é estabelecer ao mesmo tempo uma relação de confiança com as associações, que têm grande demanda jurídica reprimida, e difundir noções de Direito entre as comunidades carentes, por meio das rádios. Acrescenta: “As rádios são importantes meios de mobilização e importantes veículos, favorecendo inclusive a mobilização política, com informações diferentes das TVs e rádios comerciais”.
Interesses comerciais
Um dos grandes “inimigos” das comunitárias são os interesses das rádios comerciais, em especial dos grupos que operam rádios FM. Estas empresas, ligadas em geral a conglomerados de mídia com influência em outros municípios, quando não em escala nacional, exercem influência respeitável nas discussões sobre a legislação do setor, especialmente em relação à regulação e fiscalização. Há inclusive parlamentares com conhecida propriedade de concessões de radiodifusão, como apontam estudos do Observatório da Imprensa.
Fora o público ouvinte, poucas são as concorrências entre comerciais e comunitárias: estas não podem buscar anunciantes, apenas apoiadores, e têm um alcance bem mais restrito, além de objetivos de informação e mobilização públicas bem mais enraizados e, quando políticos, bem mais claros. Apesar disso, há uma ameaça real à sobrevivência das comunitárias: a digitalização. O sistema que as rádios comerciais já utilizam, em fase de testes, o americano IBOC, torna o sinal mais “robusto”, o que compromete a transmissão das comunitárias, que em alguns lugares já é comprometido nas circunstâncias atuais. A legislação não apresenta solução para o problema. O único sinal “protegido” é o das comerciais. “Depois de conseguir a habilitação e a sustentabilidade, tem a questão da digitalização. E aí será outra batalha”, comenta Cristina Cavalcanti.
A pressão se faz ainda no sentido de impedir o funcionamento de leis favoráveis às comunitárias. Exemplo é a lei municipal 14.013, aprovada em meados de 2005 e suspensa em 2006 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em atendimento a um pedido de inconstitucionalidade da ABERT. A lei dava bases para regulamentar a radiodifusão comunitária em São Paulo, regulando suas práticas.
Por sua vez, na falta de habilitação de comunitárias no município, e cumprindo a legislação federal, a Anatel, agência reguladora da área, deflagrou em conjunto com a Polícia Federal a Operação Sintonia e outras ações de fiscalização e lacramento em 2006, responsáveis ainda pela apreensão de equipamentos e por instaurar processos contra entidades e líderes comunitários que hoje pleiteiam a regularização.
Mas há um outro lado. Entre as poucas entidades dispostas a comprar a briga pelas comunitárias nos tribunais, o Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns atua há cerca de três anos em parceria com as associações, com contato com aproximadamente 60 delas. Até a publicação do aviso, a partir do qual ajudou as entidades a regularizar sua documentação, o escritório fazia a defesa das entidades, no Ministério Público Federal, após o lacramento efetuado pela Polícia Federal, quando as rádios eram fechadas. “A questão tem tido uma aceitação melhor por parte de alguns juízes. Em São Paulo, há dois juízes que deram pareceres favoráveis às rádios. Apesar disso, quando o Ministério recorre, não vencemos em segunda instância”, lamenta a advogada Anna Claudia.
Mais informações:
www.mc.gov.br, do Ministério das Comunicações.
www.obore.com.br, da Oboré.
Guilherme Jeronymo