No I Congresso Internacional da Propriedade Intelectual, o ministro afirmou que o MinC vai considerar não apenas os aspectos econômicos, mas os sociais e culturais do direito autoralPor Sílvio Crespo
31/03/2003

?O ordenamento jurídico reclama o direito de autor como parte dos direitos humanos fundamentais e que pode ser elemento importante para os conceitos modernos de liberdade e igualdade?. A frase, proferida pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil, na abertura do I Congresso Internacional da Propriedade Intelectual, resume o olhar do novo governo sobre o direito autoral: deve considerar não apenas seus aspectos comerciais, mas também a sua importância social.

Congresso
Realizado nos dias 31 de março e 1º de abril, o Congresso reúne especialistas do Brasil, Argentina, Portugal e Estados Unidos para discutir o temário ?Questões Atuais sobre Propriedade Intelectual no Âmbito do Direito Brasileiro e Internacional?. Além de Gilberto Gil, que abriu o evento, também estão participando importantes profissionais, como o coordenador de direito autoral do MinC (Ministério da Cultura), Otávio Afonso, o jurista argentino Carlos Alberto Villalba, o professor da Universidade de São Paulo, Newton Silveira, e o juiz federal do Tribunal Distrital de South Dakota (EUA), Lawrence Piersol.

Preocupações
Gilberto Gil apontou uma ?aparente contradição? na Declaração Universal dos Direitos Humanos: o Artigo 27, ao mesmo tempo em que ?defende o direito de autor sobre sua obra, […] consagra o direito (do cidadão) ao acesso a essa mesma obra?. O ministro afirmou que o MinC trabalhará para gerar um ?equilíbrio? entre esses dois lados aparentemente opostos ? o do autor e o do consumidor.

Outra preocupação do ministro é ?a tendência a tratar o tema do direito autoral no âmbito das negociações em fóruns internacionais sobre aspectos comerciais, levando-o ao nível de mera arma de negociação?. Com isso, diz Gil, relega-se ?a um plano secundário os aspectos referentes à cultura e aos direitos humanos?.

Projetos
Gil identificou uma ?completa omissão do Estado nesta área?. De acordo com ele, o MinC reverterá tendência, ?seja eliminando a crônica escassez de informações sobre direitos autorais, seja implementação de políticas públicas no que concerne ao ensino sobre direitos autorais nas instituições de ensino superior, promovendo acordos de cooperação entre países em desenvolvimento e a imprescindível capacitação técnica aos agentes negociadores, no âmbito multilateral?.

Para facilitar o acesso da sociedade aos produtos intelectuais, o ministro defendeu a ampliação do ?conjunto de atos que terceiros possam realizar sem a autorização dos autores e titulares de direitos autorais?. Isso contribuiria, na sua ótica, para a democratização da informação e também para a inclusão ?digital e analógica?.

Dois discursos
Gilberto Gil preparou um discurso especialmente para o Congresso, que chegou a ser divulgado na grande imprensa. Mas, na hora “H”, Gil preferiu utilizar um texto já lido no dia 17 de março, quando o ministro abriu o seminário sobre direito autoral no Rio de Janeiro. Leia abaixo o discurso de Gil no I Congresso Internacional da Propriedade Intelectual. Para saber qual foi o discurso que o ministro deixou de lado, clique aqui.


Discurso do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, no I Congresso Internacional da Propriedade Intelectual

SÃO PAULO, 31 DE MARÇO DE 2003

É com imenso prazer que participo da abertura deste Seminário sobre Direito Autoral, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, mediante o seu Centro de Estudos Judiciários. O interesse do Judiciário pelo tema da propriedade intelectual, ainda que tímido em nosso país, vem aumentando gradativamente, sinalizando a sua importância no conjunto das concepções jurídicas.

O direito autoral, no último decênio, vem sofrendo modificações estruturais numa velocidade nunca vista anteriormente. Seja em função do impacto das novas tecnologias que permitem o uso cada vez mais globalizado das obras protegidas pelo direito autoral, seja pela importância econômica que a indústria cultural representa em função de investimentos e ingressos de recursos advindos da exportação desses produtos.

Impossível dissociar o progresso tecnológico do aperfeiçoamento da proteção legal conferida aos criadores de obras intelectuais. Tem sido assim desde a invenção da imprensa por Gutemberg até o presente momento da pirotecnia dos sinais por satélites e dos “bits” que navegam pela “Internet”. O que não podemos aceitar é que a evolução do direito positivo perca de vista a exigência de que o ordenamento jurídico reclama o direito de autor como parte dos direitos humanos fundamentais e que pode ser elemento importante para os conceitos modernos de liberdade e igualdade.

É fato que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 1948, consagrou explicitamente o direito de autor e o direito à cultura como um direito humano, ao afirmar no seu Artigo 27, que:

” 1. Toda pessoa tem o direito a participar livremente na vida cultural da comunidade, a gozar das artes e a participar no progresso científico e dos benefícios que dele resultem. 2. Toda pessoa tem direito a proteção dos interesses morais e materiais que lhe correspondam por razão das produções científicas, literárias ou artísticas de que sejam autora”.

A aparente contradição desses dois incisos, um que defende o direito de autor sobre sua obra e o outro que consagra o direito ao acesso a essa mesma obra, nos remete ao equilíbrio que deve existir entre esses valores na elaboração de leis e tratados para a proteção dos direitos intelectuais.

Equilíbrio que, na conformação de novos mercados como o da Área de Livre Comércio das Américas – ALCA, por exemplo, não está sendo levado em consideração. A tendência a tratar o tema do direito autoral no âmbito das negociações em fóruns internacionais sobre aspectos comerciais, levando-o ao nível de mera arma de negociação, parece ser uma aspiração dos países desenvolvidos preocupados com a geração de riqueza desses ativos, relegando a um plano secundário os aspectos referentes à cultura e aos direitos humanos.

O Ministério da Cultura vê com preocupação essa tendência.

É evidente que os interesses econômicos neste ramo de direito são consideráveis. No entanto, é importante salientar que os direitos de propriedade intelectual sempre se pautaram pela busca de um equilíbrio entre os direitos do criador, que deve receber uma justa compensação pelo seu esforço criador, e o conjunto da sociedade, que deve ter garantido o seu direito de acesso à informação, à tecnologia e ao patrimônio cultural comum. Obviamente, também é necessário oferecer garantias aos produtores, cujos investimentos são necessários para dinamizar a indústria cultural e possibilitar assim a difusão da cultura, mesmo quando questionamos determinadas estratégias mercadológicas, que muitas vezes privilegiam a massificação em prejuízo da promoção da diversidade cultural.

Tenho afirmado que não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou mentefatos. O acesso à cultura é um direito básico de cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num ambiente saudável. Neste sentido, reveste-se da maior importância – no âmbito dos direitos autorais – a busca de uma legislação equilibrada e que tenha como objeto principal a efetiva proteção dos criadores nacionais.

O direito de autor continua sendo um grande desconhecido no contexto da cultura brasileira. O desinteresse pelo assunto talvez seja justificado pela quase inexistência de cadeiras específicas nos cursos de Direito (das 655 Faculdades de Direito existentes no país nem 10 oferecem aos seus alunos a disciplina Direito Autoral) e pela fragilidade na qual está sedimentado o chamado sistema autoral brasileiro.

O Ministério da Cultura dará maior atenção às questões relativas aos direitos de autor e direitos conexos. Há um campo propício para que se reverta a completa omissão do Estado nesta área, seja eliminando a crônica escassez de informações sobre direitos autorais, seja implementação de políticas públicas no que concerne ao ensino sobre direitos autorais nas instituições de ensino superior, promovendo acordos de cooperação entre países em desenvolvimento e a imprescindível capacitação técnica aos agentes negociadores, no âmbito multilateral.

Este seminário tratará de questões importantes na área de propriedade intelectual, como os aspectos controvertidos da atual legislação autoral brasileira.

Uma das questões que a sociedade como um todo reclama são os mecanismos que impedem o acesso a determinadas obras protegidas. Na esteira da utilização de obras protegidas no ambiente digital, existe um tema que com certeza merecerá a atenção dos palestrantes que são as chamadas medidas tecnológicas, que impedem a possibilidade do usuário de realizar uma cópia para seu uso pessoal de uma obra legalmente colocada e adquirida no mercado. Como sabemos, sob determinadas condições, a legislação faculta a terceiros a reprodução de obras sem a prévia e expressa autorização do autor, mediante o capítulo relativo às limitações e exceções. Merece, assim, do meu ponto de vista, uma análise adequada às sanções civis constantes do Artigo 107 da lei autoral e as limitações impostas pelo mesmo instrumento jurídico, sua relação com o direito dos consumidores e o alcance real do dispositivo em detrimento ao acesso cultural. Ademais, e não menos importante, as condições permitidas para que terceiros venham a utilizar livremente as obras protegidas também merecem ampla revisão. Hoje, face a restrições existentes, se torna praticamente impossível, por exemplo, a realização de cursos à distância via Internet sem que se viole – de alguma forma – os direitos dos autores dos textos, das fotografias e das obras audiovisuais presentes nos cursos. É necessário ampliar o conjunto de atos que terceiros possam realizar sem a autorização dos autores e titulares de direitos autorais, com vista a estabelecer um real equilíbrio entre esses direitos e os da sociedade como um todo, especialmente nos casos em que não exista finalidade de lucro e que não cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos criadores de obras protegidas.

Uma visão horizontal dessas questões, como aquela utilizada pela Comunidade Européia no seu processo de Mercado Comum, parece-me equivocada. Há que se enfatizar que o desenvolvimento econômico e social dos países são distintos e que a consolidação dos direitos autorais devem ocorrer em consonância com os aspectos macros da economia do país, sob pena de transferir a este, pesados investimentos que no momento – não podem ser realizados.

A questão da democratização do acesso à informação assume importância fundamental no atual estágio de desenvolvimento do país. A exclusão hoje no Brasil é digital e analógica. Se torna incompreensível o excessivo prazo de proteção conferido às obras intelectuais. A legislação confere 70 anos após a morte do autor, como regra geral, e propostas no âmbito da ALCA sinalizam, especificamente para as obras audiovisuais, um lapso de tempo superior a 90 anos!

A justificativa da temporalidade dos direitos sempre foi fundamentada no interesse geral ou público. E sabemos muito bem que a forma mais corrente em nossos dias de uma obra entrar em domínio público é a extinção do prazo de proteção a ela conferido. Uma parte muito significativa do substrato cultural de uma sociedade em um momento histórico concreto é formado pelas criações intelectuais que se encontram em domínio público. Imagino, assim, que também se deve refletir sobre uma forma de regulação do domínio público, por ser de um valor incalculável e que não pode estar sujeito às regras do mercado, uma vez que existe o risco de mutilações, deformações e alterações das obras multiplicando e colocando em perigo o que constitui nossa memória coletiva artística.

Estes aspectos devem merecer a atenção dos especialistas face ao aparecimento de movimentos como o “gift economy”, “copyleft” e outros que buscam alternativas menos onerosas para ter acesso à informação e à cultura. A busca desenfreada de direitos exclusivos sobre os ativos da criação intelectual podem gerar ações nocivas contra os próprios autores como, por exemplo, a reprodução não autorizada de suas criações.

Outros temas presentes na agenda deste encontro contribuirão para a construção de uma massa crítica mais ampla para o processo de reforma legislativa que o setor reclama, como os direitos dos jornalistas e escritores, os direitos autorais das obras audiovisuais e a utilização da Internet como ferramenta de difusão de obras protegidas.

Eram essas minhas palavras para a abertura deste evento, finalizando que não devemos subestimar nem perder de vista a dimensão cultural da proteção ao direito de autor. Todos os produtos protegidos por direitos autorais, como as obras audiovisuais, as músicas e as obras literárias, possuem uma importância cultural fundamental.

Muito obrigado

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