“Temos tudo para fazer com que o mundo olhe para nós”, diz a curadora Ana Francisca Ponzio. “Havendo o investimento, a dança brasileira explode, no melhor sentido”
Entre os dias 9 e 18 de fevereiro, 4.000 pessoas das mais variadas idades e níveis sócio-culturais de São Paulo puderam acompanhar gratuitamente mais um Panorama SESI de Dança. Em sua sétima edição, o evento consolida-se como importante espaço de difusão e troca de informações para a área. Há três anos sob curadoria de Ana Francisca Ponzio, o foco deste mês foi para produções de Minas Gerais, representadas por cinco companhias e dois intérpretes.
“É importante lançar um olhar sobre a cena mineira, pois ela é um reflexo das outras regiões do Brasil”, diz a jornalista e curadora de eventos de dança. Mas o que há de tão especial em Minas Gerais? Além de ser o berço de duas das mais respeitadas companhias brasileiras de dança – Grupo Corpo e 1º Ato – o Estado une uma ótima política cultural a um ambiente fértil de artistas inquietos e inovadores. Além disso, é onde acontece, há dez anos, o FID, Fórum Internacional de Dança, e há 13, o FIT, Festival Internacional de Teatro Palco & Rua.
Cenário fértil
Foi justamente uma amostra desse cenário fértil que pôde ser vista no Panorama. A jovem e promissora Quik Cia. de Dança, criada em 2000 por Rodrigo Quik, ex-integrante do Grupo Corpo, apresentou “Formas e Linhas”. Com influência da dança de Merce Cunningham[1] (1919) e de Rudolf Laban (1879-1958)[2], o espetáculo propõe uma discussão em torno dos conceitos aparentemente abstratos que dão título à obra. Com movimentos lentos e repetidos, quatro bailarinos aos poucos desenham no espaço linhas simétricas e assimétricas, que ao final passam a sugerir novas possibilidades de movimento.
Em seguida foi a vez da Meia Ponta Cia. de Dança, fundada há 16 anos em Belo Horizonte, que apresentou “Do contrário assim seria o mesmo”, fruto do trabalho de direção coreográfica de Tuca Pinheiro e do elenco formado por quatro intérpretes-criadoras. O espetáculo aborda o universo amoroso e seus diversos estados de espírito numa composição sincera, mas ainda com pouco peso e dramaticidade gestual.
Fora de eixo
Um dos destaques da programação, o espetáculo “Quatro”, da Camaleão Grupo de Dança, com coreografia de Mário Nascimento e música de Fábio Cardia, faz uma ode ao desequilíbrio feminino, tanto físico quanto emocional. Com gestos precisos e circulares, ora mais lentos, ora mais ágeis, inspirados na capoeira e na dança africana, o espetáculo parte da busca do equilíbrio representada pelo algarismo quatro para sublinhar a necessidade de seu oposto. Surge daí uma dança cambaleante e nua que sugere um retorno ao útero materno, espaço de criação por ele mesmo.
Há quatro anos Mário Nascimento trocou São Paulo por Minas Gerais, onde atualmente dá aulas de dança contemporânea para diversos grupos importantes. “A política cultural de Belo Horizonte é muito boa. As companhias de dança são todas patrocinadas e as de teatro vivem bem”, afirma. “Já São Paulo e Rio de Janeiro vivem um momento de saturação. Deveríamos sofrer uma política de descentralização, como a que ocorreu na França com Jacques Lang[3]. Sair do eixo Rio-São Paulo. Continuamos na dependência de ações pontuais e belíssimas como as do Teatro do SESI, Itaú Cultural e Centro Cultural Banco do Brasil, mas eles não vão nos salvar. Vejo com bons olhos as iniciativas que partem dos próprios artistas. Acho complicado deixar nas mãos da Secretaria de Cultura, eles não têm visão nenhuma”, analisa.
Integrante da companhia de Mário Nascimento, Vanilton Lakka apresentou “Interferência inacabada…preste atenção no ruído ao fundo”. Como o próprio título sugere, as diferentes interferências sonoras feitas por Fernando Prado são capturadas por Lakka e revertidas em movimentos que lembram a dança de rua e revelam um grande domínio corporal do intérprete-criador.
Eu, você e todos nós
[[36]]
Outra presença de destaque foi a da bailarina e coreógrafa Dudude Hermann, uma das precursoras da dança contemporânea em Belo Horizonte. Seu trabalho sensível e autêntico pôde ser visto no solo-monólogo “Maria de Lourdes em Tríade” e na direção do Benvinda Cia. de Dança, com o espetáculo “Na planície, logo montanha, aparece o mar…”. No primeiro, ao assumir papéis aparentemente banais de confeiteira, revendedora de produtos cosméticos e “desvairada” em uma danceteria, Dudude leva o espectador a refletir sobre a importância de se pensar o corpo. “Eu trabalho em tríade: eu, você e todos nós”, diz a personagem Maria de Lourdes. Dudude utiliza o palco da melhor forma possível: como espaço de expressão e provocação. No segundo trabalho, apresenta um belo espetáculo em que três ótimas intérpretes mostram seus corpos poeticamente para a platéia.
Para encerrar o panorama mineiro, a Cia. de Dança Palácio das Artes, fundada em 1971, apresentou “Transtorna” com 21 bailarinos em cena. “Trazer um elenco completo com toda a estrutura de palco e de produção necessária e a preços populares é uma iniciativa louvável do SESI e um fato muito positivo para a dança”, diz Ana Ponzio.
Cenário árido
Apesar do foco em Minas Gerais, os paulistas também foram representados. A Borelli Cia. de Dança abriu a temporada com a estréia de “Kafka in Off”, mais um trabalho consistente da carreira de Sandro Borelli, que comemora dez anos de companhia. “O Sandro representa a persistência dos grupos independentes”, diz Ana Ponzio. “Deixar a carreira no Balé da Cidade de São Paulo, ter a coragem de se tornar criador-intérprete numa praça competitiva como a paulista e conseguir criar uma identidade estética sem fazer concessões é realmente digno de nota. Abrir esta edição do Panorama com o Sandro é um ato de respeito ao trabalho dele”, afirma.
[[37]]
Borelli é conhecido por suas coreografias densas e profundas, marcadas pela poesia de Augusto dos Anjos (1884-1914) e pela literatura de Franz Kafka (1883-1924). “Foi por necessidade que criei uma nova identidade estética. Quando saí do Balé [da Cidade] me vi num mercado totalmente diferente, muito competitivo e ao mesmo tempo marginal. Mas prometi para mim mesmo que eu não iria desaparecer e para isso precisei experimentar no meu corpo possibilidades de movimento que me interessassem”.
Para Borelli, a curadoria de Ana Ponzio é de primeira qualidade. “Ela faz o trabalho como tem que ser feito: um panorama mesmo, sem ser tendencioso. A dança brasileira é de ponta, mas vivemos ainda em um cenário árido de propostas consistentes para a dança. A maioria das companhias independentes acaba pagando para participar de festivais e eventos”, diz.
Marketing e Cultura
Tereza Grell, diretora da Diretoria de Desenvolvimento Sociocultural do SESI-SP, vai além: “Em uma cultura na qual prevalecem sempre elementos de marketing, isto é, o que vende ou aparece mais é o que vale, todas as manifestações artísticas que não ocupam um espaço privilegiado na mídia ou não são amplamente populares enfrentam dificuldades de obter patrocínio ou investimentos. Segundo ela, “o Panorama é uma contribuição no sentido de divulgar trabalhos experimentais ou de companhias emergentes para um público que não tem acesso a espetáculos de dança, seja em função do preço dos ingressos ou pela ausência de programações mais populares”.
Ainda nos paulistas, a experiente Zélia Monteiro apresentou o solo “Improvisações para Música e Dança”, em que improvisa a partir de estímulos sonoros e de memórias corporais, inspirada nos movimentos do cotidiano. Por fim, a Cia. Siameses apresentou “Fabbrica”, concebido por Maurício de Oliveira, brasileiro que voltou a morar em São Paulo em 2005 depois de trabalhar na Europa por 11 anos. O espetáculo, originalmente uma produção conjunta entre o Frankfurt Ballet e o Korzo Theater, da Holanda, retrata o corpo como um ateliê de experimentos alquímicos do espírito. O risco da experimentação, neste caso, resulta em dois corpos que se fundem habilidosamente em dança.
“Na metade dos anos 70 e início dos 80 houve uma grande diáspora de artistas brasileiros para a Europa”, diz Ana. “Hoje eles começam a voltar. Com as mudanças na economia mundial, existe um movimento muito forte acontecendo. Havendo o investimento, a dança brasileira explode no melhor sentido”, aposta Ana. “Temos tudo para fazer com que o mundo olhe para nós, pois o brasileiro é muito talentoso e mostra hoje que é capaz de se equiparar aos melhores bailarinos do mundo”. É o que o Panorama reitera mais uma vez, com qualidade, diversidade e profissionalismo. Vale a pena aguardar o próximo.
[1] Bailarino e coreógrafo norte-americano, criador da “Cunningham technique”, estilo de dança experimental e vanguardista. Precursor da videodança e da utilização software “Dance Forms” como ferramenta de criação.
[2] Dançarino, coreógrafo e pesquisador húngaro, criador do “Labanotation”, um dos principais sistemas de notação de movimentos em dança utilizados atualmente. Suas teorias sobre movimento e coreografia estão entre os principais fundamentos da Dança Moderna.
[3] Ministro da Cultura da França que fomentou a dança nos arreadores de Paris com a criação dos Centros Coreográficos.
Deborah Rocha
5Comentários