Na última semana – por uma dessas curiosas coincidências da vida – topei com um texto de João Baptista Herkenhoff muito pertinente e esclarecedor. Nele, o jurista capixaba, que se autodefine como um “jurista marginal”, afirma que a função da utopia é estimular uma visão crítica da realidade. E não apenas isso. Seria também um instrumento de transformação social que visa a “desmascarar a falsidade da ideologia estabelecida” e provocar um movimento dos indivíduos em busca de uma sociedade mais justa.
O pensamento utópico seria então uma espécie de visão libertária, de projeção de possibilidades relacionadas à construção de uma sociedade mais igualitária e mais feliz? Como sabemos, utopia, etimologicamente, significa o “não lugar”, aquilo que não existe em lugar algum ou, segundo Ernst Bloch, o que “ainda não” (noch nicht) existe, mas que pode ser vislumbrado, antevisto por aqueles que intuem ou desejam concretamente um mundo melhor. O escritor alemão referia-se a uma utopia concreta, proativa, que projeta para o futuro alternativas reais, forjadas no presente. Não se trata de ficar à espera do paraíso, mas de identificar as “mentiras do presente” e descobrir “as verdades possíveis” para além de tudo o que existe hoje. É preciso constatar que não vivemos no melhor dos mundos e que “outras verdades” nos espreitam mais adiante; vislumbrando-as poderemos alargar o horizonte de nossas vidas. Adorno, porém, discordando de Bloch, lamentou que, aparentemente, as pessoas tivessem perdido a capacidade de imaginar a totalidade como algo que pudesse ser completamente modificado.

Bloch entrevia tais possibilidades presentes no pensar humano como potência e como promessa. A arte conteria então os anseios de um mundo melhor, projetando relações comunitárias, pautadas por valores éticos universais. Para ele, a arte, sobretudo a música, é capaz de relacionar a memória do que passou com aquilo que virá, com o imprevisível e o imprevisto, sendo, ao mesmo tempo, um lamento e uma esperança, um refúgio e um protesto, a dinâmica do movimento e a intuição do porvir. A música seria uma espécie de sismógrafo, refletindo frestas sob a superfície social, expressando desejos de transformação e convidando à esperança.

Não é coincidência portanto que a arte hoje, bem mais que as ideologias políticas, tenha se tornado o espaço catalisador para onde confluem forças que apontam para um mundo a ser desvendado. Para Herbert Marcuse, por exemplo, as artes e a cultura em geral manifestam com clareza um instinto de felicidade e de liberdade, fundamental no inconsciente humano. Ele imagina a partir daí uma “sociedade não repressiva, sem o trabalho alienado, aberta ao lazer e à sexualidade”.

Resta saber, contudo, como este instinto humano, que embasa o pensamento utópico, pode conduzir efetivamente o conjunto da sociedade a antever outras verdades e a inventar um futuro. Mas fica a certeza de que o artista e a arte, em sua dimensão atual, têm um papel importante a desempenhar nesses tempos pós-modernos, em que as criações coletivas e as individuais, a realidade e a ficção se mesclam e muitas vezes se confundem.

O projeto artístico internacional Utopia Station, por exemplo, inicia seu manifesto afirmando que estamos na iminência de viver de uma maneira nova as relações entre arte e práticas sociais. Estarão os artistas realmente intuindo as verdades possíveis?


Gestor Cultural, diretor de teatro, dramaturgo e tradutor. Foi gerente na Secretaria de Políticas Culturais do MinC e é sub-secretário da cultura do Espírito Santo.

2Comentários

  • Carlos Henrique Machado, 22 de agosto de 2008 @ 11:58 Reply

    Belíssimo texto Erlon!
    Gostaria de destacar este último parágrafo.
    “O projeto artístico internacional Utopia Station, por exemplo, inicia seu manifesto afirmando que estamos na iminência de viver de uma maneira nova as relações entre arte e práticas sociais. Estarão os artistas realmente intuindo as verdades possíveis?”

    Não, os artistas não estão se dando conta das mudanças, principalmente no caso da música que alcança um universso de extensão ilimitada. No entanto, o enquadramento comercial e as aspirções técnicas tomaram o lugar na pauta central de uma música livre, por um formato cerebral.O manifesto de Camargo Guarnieri contra essa lógica matemática que vinha embutida no cerebral dodecafonismo já alertava que os rumos de um pensamento livre caminhavam, a passos largos para a estagnação. A criação, no caso da música, vem perdendo bastante campo. Depois da derrocada da indústria fonográfica, em função das novas tecnologias, e não como muitos afirmam, por culpa da camelotagem, as reedições, regravações e as releituras estão em pauta na raspagem do que sobrou deste prato raso. Muitos artistas ainda insistem em buscar um lugar ao sol numa canoa que está afundando e com uma velocidade impressonante, sem a menor chance de reversão, nos obrigando a pensar na música de forma como realmente é, pois, se comporada à indústria fonográfica, a mesma é um grãozinho de areia, inclusive em relação à música que acompanha a humanidade desde os seus primórdios. Esses novos chãos que virão, terão que ser reeditados com uma nova lógica. Qual? Não sabemos exatamente. Esta que nós vivemos, sob o comado da indústria fonográfica do século XX, é que não será.

    Acho que a coisa é ainda pior, pois, sem percebermos, estamos entregando nossas almas em troca de uma plástica técnica, fundamentada num conceito mais atlético que artístico, mais muscular que espiritual. Pior que isso, são as certezas impostas de que certas formas técnicas, como no caso das “eruditas”, são a primasia, o céu da lisura e da vanguarda técnica, não observando portanto, que há um retrocesso na libedade criativa. É só compararmos com o próprio Brasil, onde caminhavam as discussões dos nossos grandes compositores nas décadas de 20, 30 e 40 e por onde caminha hoje todo um pensaento constituido que dá ao músico, a brecha, a fresta de se apresentar única e exclusivamente como uma alegoria técnica, uma bijuteria falsificadora em lugar da criação. A música oficializada pelas instiuições no Brasil, tem transformado o músico num código de barra, com suas tabelinhas na construção de modelos pré-definidos em relação ao que é classificado absurdamente como técnica de improvisação, pior ainda, uma estética acadêmica erudita, unilateral e arbitrária, atribuindo ao músico, a condição de foca equilibrista de parque temático ou, quando veloz, é comparado aos riscos de um motociclista no globo da morte. Este espetáculo de incoerência tem produzido uma legião de obedientes seguidores, numa falsa noção de sobrevivência, limitando o artista, assim como o atleta, todo o seu conceito, toda a sua técnica, em prol de uma precisão física juvenil.

    No caso do Brasil que tem uma história de criação musical tão extraordinária, é uma apunhalada certeira no coração da sua principal linguagem artística, a que dá mais identidade aos sentimentos do seu povo, a música.

  • PatiSo, 22 de agosto de 2008 @ 15:14 Reply

    “Acredito que ao “acordar” para a utopia, as pessoas possam começar a perceber exatamente isso que vc falou nessa brilhante coluna sobre a arte e a cultura. Na minha humilde visão, compartilho com vc desse “novo mundo” e extrapolo essa convicção evocando que cada vez mais pessoas busquem aprofundar nas questões culturais como forma de emancipação dos valores éticos, para construção de um mundo “relarte”.” :0)

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