A cultura capaz de gerar ativos econômicos, sem compromissos com a escala industrial, é aquela que nasce nas comunidades brasileiras com as festas populares “As cifras obrigam a refletir. Aproximadamente um de cada dois latino-americanos está abaixo da linha da pobreza. A situação das crianças é ainda pior: seis de cada dez são pobres. Os jovens se encontram numa situação difícil. (…) Sob o embate da pobreza, as famílias entram em crise e muitas vezes se desarticulam. A criminalidade cresce fortemente. É quase seis vezes o que se considera internacionalmente uma criminalidade moderada. Estes dados significam sofrimento humano em grandes proporções.(…) O que está acontecendo? Por que não se cumpriram os prognósticos feitos no início dos anos 80, que afirmavam que, seguindo certas políticas, os resultados econômicos e sociais estavam assegurados? Por que um continente com recursos naturais privilegiados, com fontes de energia baratas e acessíveis em grande quantidade, com grandes capacidades de produção agropecuária, tem indicadores sociais tão pobres? (…) O pensamento convencional parece Ter esgotado sua possibilidade de dar respostas a interrogações como as indicadas. Faz-se necessário recuperar o que foi uma das maiores tradições deste Continente, a capacidade de pensar de forma criativa e por conta própria, aprendendo da realidade e buscando caminhos novos.” (KLIKSBERG,2001)
O Brasil, maior país latino-americano, contribui para fazer deste triste quadro uma realidade irrefutável. Somos o quarto país que mais concentra renda do planeta, conforme o índice de GINE, e apresentamos índices sociais incompatíveis com o Produto Interno Bruto que a população brasileira é capaz de gerar. Para um PIB qualificado entre as primeiras 11 maiores economias do mundo, registramos indicadores de desenvolvimento humano (IDH, PNUD 2002) que não ultrapassam a 64ª posição, uma das piores da América Latina.
Dessa forma, pensar sobre a potencialidade da cultura do ponto de vista econômico, exige pensar sobre a capacidade distributiva de um projeto dessa natureza, partindo da idéia de que qualquer projeto de fomento econômico num país marcado pela desigualdade social, principalmente no âmbito da cultura, deve ser uma possibilidade concreta de inversão de prioridades. De promover, através de garantias institucionais e financeiras, a posse dos recursos advindos da produção cultural de amplas camadas e setores da sociedade brasileira que hoje não se encontram incluídos, ou se quer reconhecidos, como agentes importantes para o desenvolvimento da política cultural do país.
O ponto de partida é separamos a noção de uma produção cultural, independente de origem, suporte ou escala, capaz de gerar ativos econômicos, da indústria do entretenimento, essa marcada pela produção industrial e pelas regras do mercado. Essas duas vertentes formam aquilo que entendemos por economia da cultura, ambas devidamente protegidas pelo direito de autor se a legislação sobre o tema avançasse. Nenhuma dessas vertentes isoladamente constitui o que entendemos por economia da cultura e portanto uma política pública de fortalecimento de setores culturais com vistas a gerar dividendos econômicos deve estar atenta a necessidade de um trabalho integrado que respeite as especificidades de cada setor e os propósitos que a impulsionam. Um projeto de incremento da indústria cinematográfica e audiovisual brasileira, tão importante de ser realizado pelo país hoje, não pode se valer dos mesmos mecanismos de gestão ou instrumentos de financiamento daqueles que irão fomentar o desenvolvimento do artesanato no interior do país, ou a produção musical fora dos grandes centros urbanos. Evidentemente que há um entrelaçamento entre esses dois eixos, já que a lógica de uma economia globalizada força a compreensão dos limites das políticas de desenvolvimento, principalmente em regiões de carência, frente a mercados consumidores globalizados e globalizantes. Assim, é inteligente pensar maneiras de ao incentivar certas produções locais, transformá-las em informação (vídeos, programas de TV, Cd roms, catálogos etc.) capaz de circular por todos os locais, atraindo o interesse e potencializando suas fontes de recursos financeiros.
Outra área fundamental, é a da circulação de exposições e eventos de porte nas grandes e médias cidades brasileiras. O dinamismo, a força criadora e o próprio histórico de contribuição da produção cultural brasileira ao resto do mundo – na música, dança, audiovisual e realização de importantes eventos nacionais e internacionais de arte e cultura – colocam o Brasil como epicentro de uma gestão de desenvolvimento sustentável baseada em ações culturais, que articuladas com outra áreas como turismo e o mercado de feiras e congressos, a potencializam na geração de oportunidades de trabalho e renda neste segmento e como caixa de ressonância natural das ações e eventos realizados em outras partes do mundo. Neste sentido, a realização de grandes eventos como o Carnaval e o Reveillon, assim como as recentes exposições e concertos internacionais que o país vem sediando ou promovendo fora do país, são acontecimentos importantes para a concretização desta estratégia, desde que se esteja atento a oportunidade de se criar políticas de qualificação de trabalhadores nesses campos, com a oferta de cursos e programas de treinamento.
A cultura como ativo econômico (1)
A cultura capaz de gerar ativos econômicos, sem compromissos com a escala industrial nem com o patamar de lucros proporcionados pelo mercado, é aquela que nasce nas comunidades brasileiras com as festas populares, com a renda de bilro, nos barracões das escolas de samba nas comunidades pobres do Rio de Janeiro, nos sítios arqueológicos e na cultura do cangaço as margens do Rio São Francisco na região do Xingó, no artesanato do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. É a cultura produzida nos territórios que o geógrafo Milton Santos intitulou de zonas opacas, invisíveis a lógica financeira dos mercados e a cegueira do Estado. Essas culturas exigem reconhecimento nas agendas de política cultural, não só como ferramenta de auto-estima ou como símbolo folclórico, mas como alternativa inteligente para gerar bônus econômicos, distribuição de renda e consequentemente desenvolvimento sustentável. O que está em jogo é reconhecer a necessidade de incluir nas políticas culturais a posse dos recursos, a garantia de assegurar às comunidades locais “iguais possibilidades de acesso aos bens da globalização” (CANCLINI, 1996).
Reconhecer esse espaço estratégico de ação do Estado é abrir o campo de oportunidades das políticas culturais ao desafio da inversão das prioridades e do enfrentamento a desigualdade social e a concentração de renda, partindo de uma renovação do conceito clássico de cidadania, que opera pela lógica do direito à igualdade, para assegurar o direito às diferenças no plano político de ação do Estado.
Um bom exemplo de como podemos iniciar essa reflexão é o carnaval carioca que atrai ao Rio de Janeiro em torno de 320 mil turistas. O gênio criativo do povo, residente em sua maioria nas favelas cariocas, tece no ruído ritmado das costureiras dos barracões a arte que invadirá o sambódromo no verão carioca. No rebolar das garotas do morro, na bateria geniosa , nas alegorias e na profusão de cores, luzes e magia provinda dessa miscigenação brasileira que irrompe o cenário cultural do país todo o verão. Pois bem, o carnaval carioca gera em aumento de arrecadação algo em torno de U$ 555 milhões (2). Hotéis, restaurantes, boates, lojas, companhias aéreas e toda a sorte de comércio informal se beneficiam da maior festa popular que o Brasil produz. No entanto o aumento de arrecadação, principalmente por órgãos públicos, não representa a melhoria da qualidade de vida dos responsáveis pela produção dessa festa. Há que se perguntar por que? Os autores – as comunidades da Mangueira, de Nilópolis, da Serrinha- fazem a festa, mas não recebem o proporcional lucro de seu trabalho.
Melhorou a vida dessas pessoas, suas ruas, escolas, postos de saúde? Com quem ficam os recursos provindos do carnaval carioca? O que diferencia, ou o que deve diferenciar, um programa de desenvolvimento econômico gerado por investimentos diretos ou indiretos em áreas distintas, e um desenvolvimento econômico gerado por ou a partir daqueles aspectos que identificam a própria maneira de um povo e uma sociedade se expressar e se manifestar coletivamente, como é o caso da cultura? Ao transformar o Carnaval carioca num mega-evento internacional capaz de atrair mais de 320.000 turistas à cidade do Rio de Janeiro e gerar U$ 555 milhões de movimentação financeira, como promover a justa distribuição destes dividendos entre todos os atores sociais envolvidos nessa produção? Que tipo de impacto desejamos e quem devem ser os beneficiários deste? Estas são algumas reflexões que uma política cultural voltada para o desenvolvimento econômico suscita.
Reconhecimento: o primeiro passo
O que está em jogo aqui, e a política cultural passa a ter papel central de denúncia e esclarecimento, é que pensar em redistribuição ou em equidade de oportunidades de renda é antes de tudo reconhecer o outro como sujeito pleno de direitos iguais. Redistribuição e justiça estão intimamente ligados ao movimento de reconhecer e nesse sentido a cultura na sua ação política ganha o lugar de tornar isso possível, de incluir num plano de “dignidade igual para todos” segmentos diversos e tradicionalmente marginalizados. A justiça, como afirma o Informe Mundial de Cultura 2000-2001, “necessita atualmente tanto de uma política de redistribuição como uma política de reconhecimento”, é esse o lugar das políticas de cultura: tornar isso viável.
A injustiça cultural, segundo o mesmo Informe, é obrigar grupos e manifestações culturais diversos a se submeterem a normas e configurações políticas estanques e imutáveis. À lógica da via única e da política homogênea. Qualquer política de cultura a ser adotada pelo país, deve garantir a abertura dos canais institucionais e financeiros, através da reforma do sistema nacional de cultura, a amplos setores tradicionalmente atendidos pelas “políticas de recorte social ou assistencialistas”. É simbólico que o país não possua uma política de cultura para os indígenas, para o artesanato, para estimular a diversidade cultural das várias regiões brasileiras, para os grupos culturais atuantes nas favelas e bairros de periferia dos grande centros urbanos. E é sintomático que não empreenda, num mundo marcado pelo trânsito incessante de informações, uma política de comunicação cultural capaz de gerar produtos informativos de qualidade para a enorme rede nacional de educação e também para os mercados televisivos e editoriais. Faz-se a política para os empresários e para os artistas renomados, nada desprezível, mas insuficiente para o tamanho e a força criadora do país.
A insuficiência do projeto cultural adotado pelo MINC com a política de incentivos fiscais
Desde 1985, data de seu nascimento, o Ministério da Cultura adotou, primeiro através da Lei Sarney e depois pela Lei Roaunet, o mecanismo do incentivo fiscal à empresas, como principal fonte de financiamento à cultura nacional. A ausência de um projeto estratégico para o setor e de mecanismos reguladores estabelecidos pela legislação ou de outras fontes diferenciadas de financiamento, geraram resultados pouco animadores.
Com dados fornecidos pelo próprio MINC, para o ano de 1999, 84% dos recursos captados por projetos culturais, beneficiaram as grande capitais brasileiras: Rio de Janeiro e São Paulo, onde estão instaladas as maiores empresas nacionais e o poder de mídia dos veículos de comunicação. Os 10 maiores beneficiários dos incentivos proporcionados pela Lei Roaunet, foram as atividades e programas das grandes fundações privadas, com origem nos setores bancários, de teles ou de grandes conglomerados. Sem analisar o mérito e a qualidade das ações empreendidas, é possível afirmar que financiou-se no país uma ação regionalmente e setorialmente concentradora, de renda inclusive, que sob a égide do gosto dos homens de marketing e comunicação das empresas, ditaram aquilo que a população brasileira poderia ver financiado ou nas casas de espetáculos dos centros urbanos.
Não se tem registro na história das políticas culturais no país, nem no período da ditadura militar, de tal privilégio as elites nacionais. O resultado é uma série de ações fragmentadas, patrocinadas pelas principais empresas brasileiras, concentradas no eixo Rio-São Paulo, sem expressão regional ou garantia de contrapartida pública, em forma de diversidade, circulação ou de gratuidade, à população brasileira que, ao longo desses últimos 17 anos, abriu mão do seu direito a recursos provenientes de impostos para co-patrocinar um projeto de incentivo ao setor cultural. Institui-se como via unilateral de relação com o Estado a figura do projeto, peça intelectual, capaz de ser desenvolvida por poucos em um país semi-alfabetizado. Na planilha proposta o MINC defende com clareza a quem pretende beneficiar com sua política: aqueles capazes de realizarem estratégias de comunicação competentes para atraírem a atenção das empresas e garantirem o retorno de marketing esperado. Nada parecido do que se espera de uma política voltado para o fortalecimento do estado democrático de direito. O projeto é um instrumento autoritário e reducionista, impensável como único mecanismo institucional de diálogo do poder público com sua população, na medida que restringe o acesso dos mais pobres e fragilizados à esfera pública e não realiza o movimento adequado a ação pública que é mapear, diagnosticar, incentivar, e com isso ampliar o campo das oportunidades aos tradicionalmente excluídos.
Esse espírito público que deve orientar qualquer escolha dos órgãos competentes do estado, preservando o direito às diferenças e o acesso as fontes estatais em condições de igualdade, é excluído da cartilha adotada pelo MINC em 1995 “cultura é um bom negócio”. Privatizou-se o poder decisório e com ele o papel exigido de um Ministério e de uma política pública, reduzindo-se a política cultural a uma ação casuística e de pouco interesse público ou formador.
Hoje, já há um consenso que essas são bases frágeis para se empreender uma mudança de eixo na política cultural brasileira, destacando-se aquelas direcionadas a indução de processos de desenvolvimento.
Algumas pistas do que e como começar
Bernardo Kliksberg, em seu livro, “Falácias e mitos do desenvolvimento social” (2001), dedica todo um capítulo para os temas do capital social e cultural, como áreas importantes de serem retomadas nos processos de desenvolvimento econômico, em destaque da América Latina. Lembrando Enrique Iglesias, presidente do BID, em pronunciamento na Assembléia-Geral da UNESCO, em 1997:
“há múltiplos aspectos na cultura de cada povo que podem favorecer o desenvolvimento econômico e social; é preciso descobri-los, potencializá-los, e apoiar-se neles, e fazer isto com seriedade significa rever a agenda do desenvolvimento de um modo que resulte, posteriormente, mais eficaz, porque tomará em conta potencialidades da realidade que são de sua essência e que, até agora, foram geralmente ignoradas”.
Potencializar o capital social e cultural de um povo, é uma tarefa complexa que exige o alargamento das possibilidades das políticas culturais de se integrarem ao esforço de desenvolvimento do país. Isso, naturalmente, implica num esforço de potencializar as áreas de planejamento e gestão de um segmento identificado pela aversão a essas áreas de ação pública, com o investimento sistemático em formação de quadros públicos habilitados a operar com a gestão cultural. Planejamento requer pesquisa, mapeamento, diagnósticos continuados, avaliação e monitoramento, quadros públicos e não-públicos qualificados, desenho de programas estratégicos e menos táticos.
No caso do Brasil, a aposta na via da cultura como possibilidade de desenvolvimento impõe uma ampla reforma do sistema nacional de cultura, com a proposta de estruturas intermediárias entre os estados e municípios e o governo federal. A inclusão de um orçamento condizente com esse esforço na LDO e a luta pela reforma administrativa devem ser travados desde o primeiro dia do novo governo. Sem isso, qualquer programa continuará a ser um documento de boas intenções. A descentralização regional deve implicar na institucionalização de fundos regionais, que podem ser fomentados através dos mesmos subsídios fiscais que hoje financiam projetos isolados (alguns excelentes, é bom que se diga) nas grandes metrópoles e da participação proporcional de estados, municípios e governo federal. Para isso, é importante promover o debate amplo na sociedade, convocando a participação os setores empresariais, os poderes públicos, artistas e produtores e a sociedade como um todo. Mas, há que se partir para esse debate como uma noção estratégica clara do que se pretende fomentar e desenvolver.
Também há que se recuperar no Brasil a dimensão do incentivo à formação artística e o acesso a pequenos recursos que promovam a pesquisa e o trabalho individual, aos moldes dos programas incentivados pelas fundações de amparo à pesquisa científica no país. Incluir a participação das instituições bancárias como BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica, através da oferta de linhas de financiamento são fatores cruciais para se aumentar a base de investimentos à cultura nacional. O BNDES já vem promovendo alguns programas nessa direção que merecem análise para possível incremento.
O importante é compreendermos que a política cultural obedece a uma lógica de política pública, que deve estar comprometida com a universalização de seus serviços- como bibliotecas interativas, centros culturais, teatros etc.- ,através da extensão dos serviços públicos de cultura (3), com a organização de instrumentos legitimadores de participação social e comunitária, da formação e qualificação de agentes e gestores capazes de formularem e empreenderem projeto e planos de ação, do diagnóstico e da avaliação permanentes, de um rol de instrumentos financiadores diferenciados e suficiente em volume de recursos.
O desafio é enorme. Mas pode e deve ser feito, com o espírito desarmado, com atenção ao que já foi construído e vem apresentado bons resultados e por último, a vontade política de tornar a cultura uma ação inteligente e duradoura no processo de desenvolvimento do Brasil, de fortalecimento da democracia, do estado de direito e consequentemente da justiça social ampla.
(1) Termo cunhado por Joatan Vilela Berbel, ex-secretário da Música e Artes Cênicas do Ministério da Cultura (1998-2001).
(2) Dados obtidos no Relatório do Plano Maravilha/ Observatório Turístico – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000. Conversão em US$ e compilação dos dados Maria Paula Gomes dos Santos (Cultural Consultoria e Projetos).
(3) O que naturalmente não significa construção de equipamentos novos, idéia já superada, mas pela identificação e organização de espaços multisetoriais e multifuncionais, com escolas e bibliotecas.
Marta Porto:Consultora Internacional para Políticas Socioculturais e coordenadora da UNESCO no Rio de Janeiro.
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Marta Porto