“É preciso considerar a produção cultural das favelas. Há cultura em seus modos de vestir e falar”O poeta espanhol Gabriel Celaya, quando defendia que ”a poesia é uma arma e tem que tomar partido até manchar-se”, por certo argumentava que a cultura, entendida, no caso, como produção do belo, de expressão de desejos, linguagem dos sentidos, tinha chão no seu tempo – o fascismo -, e que poderia contribuir para combatê-lo, disparando ideais, mobilizando vontades, minando indiferença e exultando os combatentes. Mas seria simplista assumir que, para o poeta, a metáfora se metamorfoseasse na referência, e que poesia e guerra se confundissem ou que a poesia se reduzisse a apêndice de uma causa, perdendo sua linguagem própria, a intimidade com angústias existenciais.
No Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, promovido pela Unesco, sai-se do campo de debate sobre o que é ou não cultura, deixa-se de lado a questão de hierarquias na produção cultural, se alta ou baixa cultura, e se ela seria um fim em si, separada da economia política ou a ela subordinada. Nesse documento, divisor de águas, que se tornou conhecido como Relatório Perez de Cuellar, publicado em 1999, reflete-se sobre a diversidade de sentidos, a multiplicidade de formatações, sendo a cultura debatida por possibilidades, isto é, como instrumental para o desenvolvimento, a expressão de medos, fantasias, desejos, formas de ser e sentir.
Não se mesclariam, portanto, avaliações sobre produções culturais com suas finalidades coletivas e sociais, mas se reconheceria sua potencialidade para o reencantamento do mundo, a construção de uma cultura de paz, o exercício da liberdade criativa em favor de coletividades, projetos de civilização antagônicos a violências.
Como produção humana, a cultura não escaparia de ser parte de um projeto de civilização, principalmente quando tal projeto se impõe em um mundo de violência. Por outro lado, tanto na produção como na sua formatação como bem cultural, o mercado imprime limites, legitima artistas e colabora para o aborto de talentos. Nesse caso, somente haveria demarcações de classe no acesso a bens culturais e ocorreria a construção de um imaginário social que consideraria algumas expressões culturais como algo de elites, o que teria raízes históricas e seria legitimado por uma educação diferenciada quanto a hábitos, por exemplo, de ida a bibliotecas. Centros culturais e teatros seriam atividades que não fariam parte do horizonte cultural oferecido aos pobres, ou de sua socialização cultural.
Essas reflexões vêm a propósito de uma nova fase que o Brasil começa a viver com esperanças que se reacendem na perspectiva de um dos compromissos mais importantes dos países-membros da Unesco, que é o de cultura para todos. Declaração recente do ministro Gilberto Gil ao jornal La Nación sinaliza em direção a uma política cultural de alcance coletivo. Afirma o ministro que é necessária uma visão política da cultura. A cultura precisa acompanhar o projeto político. As comunidades de risco, por exemplo, poderiam ser resgatadas mediante sua inclusão cultural. Os habitantes de favelas podem ter acesso a centros culturais e a bibliotecas. Além disso, é preciso considerar a produção cultural das favelas. Há cultura em seus modos de vestir e falar. Levar e trazer coisas das favelas pode ser importante para afastar crianças e jovens do crime organizado. Como sabiamente reconhece o Relatório da Unesco sobre Cultura e Desenvolvimento, não existem culturas superiores, mas diferentes. Nessa diferença reside a riqueza de uma nova política cultural construtora de uma cultura de paz.
Com a sinalização dada pelo ministro Gilberto Gil, a democratização dacultura no Brasil tende a se ampliar de forma considerável. Nesse sentido, oprojeto da secretária Claudia Costin, de São Paulo, de combater violênciaspor intermédio de atividades culturais é alentador e tem respaldos emestudos e experiências realizados pela Unesco. As experiências de abrirescolas nos fins de semana em áreas de maior incidência de crimes eviolências, por exemplo, conduzidas no Rio de Janeiro e em Pernambuco,mostram redução altamente significativa de vários tipos de violência entreos jovens.
Uma política de inclusão cultural pode converter-se em fator estratégico deuma política mais ampla de governo. Ela ajuda as pessoas, especialmente os jovens, a internalizarem um sentimento vitalizador de pertencimento e não mais de exclusão que, com freqüência, tem sido a causa da interrupção prematura de tantas vidas em nossa sociedade.
Jorge Werthein, Doutor em Educação pela Universidade de Stanford (EUA), é representante da Unesco no Brasil .
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