Brasil lidera a Agenda do Desenvolvimento para a OMPI, visando flexibilizar o debate sobre propriedade intelectual
* Pedro de Paranaguá Moniz é Mestre em Direito da Propriedade Intelectual pela Universidade de Londres. Líder de projetos do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV DIREITO RIO e professor do curso de pós-graduação em propriedade intelectual da mesma Escola.
Praticamente tudo em que encostamos, usamos ou simplesmente vemos ou até mesmo ingerimos, está direta ou indiretamente protegido por o que se convencionou chamar de propriedade intelectual (PI). Quase tudo está protegido: a fórmula química da tinta na parede, a música que escutamos no rádio ou no player digital, o próprio player digital, os livros que lemos no avião – e as dezenas ou centenas das partes desse avião, tais como turbinas, sistema de pouso etc. – os remédios que tomamos, os alimentos geneticamente modificados, bem como os fertilizantes e inseticidas utilizados nas plantacões, a fotografia de um cartão postal que enviamos à nossa família, o método one-click de compras online, o software dentro de nossos celulares, o filme que vemos no cinema, bem como o projetor de tal filme, e assim por diante. A lista é quase infinita. É o conhecimento humano sendo apropriado.
Como se convencionou chamar isso tudo? Direitos de propriedade intelectual, colocados todos num mesmo cesto: patentes, autorais, marcas, software, banco de dados, indicação geográfica etc. É a apropriação do intelecto, do volátil ou até mesmo das idéias. É a proteção do investimento. Não haveria nada de errado em se proteger tais campos do conhecimento, por determinado prazo, não fosse o abuso desses direitos que se tem observado. Até mesmo o prazo de proteção tem sido extendido: direitos autorais já foram protegidos por 14 anos. Agora, no Brasil, são protegidos durante a vida do autor, mais 70 anos após sua morte. Quem o Estado está incentivando a criar cultura? O autor já morto é que não é!
Nesse sentido, é curioso notar que nunca na história da humanidade foi preciso haver incentivo por meio de concessão de monopólios jurídicos limitados no tempo (basicamente, direitos autorais e patentes) para que houvesse expansão das artes, da ciência e da cultura. Os grandes filósofos da antigüidade não tinham suas idéias protegidas por direitos autorais e nem por isso deixou-se de haver grande evolução intelectual. Na área industrial, Thomas Jefferson, um dos redatores da Constituicão dos EUA, ex-presidente daquele país e primeiro presidente do Escritório Americano de Marcas e Patentes, dizia no início do século XIX que países que não ofereciam proteção por patentes eram tão frutíferos quanto os que davam proteção. Será, então, que realmente seria essencial existir proteção via patentes? Qual o equilíbrio?
Mais recentemente, economistas do calibre de F. Machlup, E. Penrose, P. David e J. Stiglitz, questionaram o funcionamento do sistema de propriedade intelectual como um todo. Tudo indica que países hoje ricos tentam impôr uma proteção maximalista ao restante do mundo. Ocorre, todavia, que tais países somente tiveram a oportunidade de enriquecer e se desenvolver justamente porque há alguns anos atrás, quando não eram desenvolvidos, não ofereciam proteção a criações na área artística (autorais) e a inventos industriais (patentes).
A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) foi criada em 1967 para “proteger” direitos de propriedade intelectual. Foi concebida por advogados que tinham como clientes empresas interessadas em tal proteção. Poucos anos mais tarde, em 1974, a OMPI passa a ser uma das agências especializadas da Organização das Nações Unidas (ONU) e, portanto, não deveria mais tão somente “proteger” a propriedade intelectual, mas sim “promover a criatividade e a atividade inventiva” de modo a promover o desenvolvimento – aliás, é justamente o que diz a Constituicão dos EUA. Assim, a OMPI não mais tinha a propriedade intelectual como fim em si mesma; mas sim como um meio para se atingir o desenvolvimento.
Como a maioria dos países membros da OMPI é de países em desenvolvimento, os países ricos estavam em minoria. Uma grande jogada desses últimos foi vincular propriedade intelectual ao comércio, o que ocorreu a partir da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. Com a crescente necessidade de todos os países fazerem parte do comércio global, quando da adesão dos mesmos à OMC, por tabela levam junto o Acordo TRIPS, sobre propriedade intelectual, que prevê os patamares mínimos de proteção à propriedade intelectual, bem como – e talvez aqui esteja a grande sacada dos países dominantes – sanções por descumprimento das regras. Ou seja, caso algum país não cumpra com o previsto em TRIPS, pode ser acionado perante a OMC e ficar sujeito a sanções e embargos comerciais por parte do país detentor de direitos de propriedade intelectual.
Mas não bastassem tais patamares mínimos previstos em TRIPS, países como os Estados Unidos vem exercendo pressão por meio de tratados bilaterais: é muito mais fácil pressionar um único país pobre (ou mesmo rico) por vez, do que tentar impôr algo a vários países ao mesmo tempo. E tal estratégia tem surtido efeito: há tratados bilaterais e regionais, todos prevendo patamares mais elevados de proteção do que o estabelecido no TRIPS, já fechados entre os EUA e Jordânia, Austrália, Cingapura, Chile e Marrocos, entre outros. Outra forma de pressão política que não pode ser negligenciada são os relatórios do Departamento de Comércio dos EUA (USTR), a famosa “priority watch list”, que enumera países que estão na lista negra daquele governo, por entender que não têm seus direitos de propriedade intelectual devidamente protegidos. No recente relatório anual, de final de abril de 2006, o Brasil é novamente posto no grau máximo de alerta: quem sabe alguma coisa à ver com a iniciativa brasileira na OMPI, para equilibrar o debate? (veja abaixo)
Essa política maximalista afeta não apenas países pobres, mas também países ricos. Relatório de 2005 da Business Software Alliance (BSA), que representa, dentre outras, a Microsoft, relata que empresas do grupo têm sofrido com o sistema de patentes, que vem sendo utilizado de forma a fazer reserva de mercado, ao invés de promover a inovação. Patentes são tidas como instrumentos de pressão e ameaça, ao invés de serem efetivamente exploradas. O que se gasta com brigas judiciais milhonárias poderia ser gasto com pesquisa e desenvolvimento. Mas países pobres sofrem ainda mais, uma vez que royalties pelo uso de propriedade intelectual são enviados aos países ricos aos milhões de dólares, o que cria um grande déficit na balança comercial daqueles.
No caso de acesso à informação, educação, cultura, medicamentos e conhecimento em geral, países pobres sentem o grande impacto. Preços de livros, CDs e DVDs são exorbitantes, assim como ocorre com preços de medicamentos patenteados ou de software proprietário. No final das contas, por abuso de interesses privados em contrapartida a interesses públicos, o direito de exclusividade de exploração do produto industrial ou da criação intelectual acaba significando não apenas uma exclusividade, mas sim, uma exclusão dos demais, que ficam à margem, sem acesso a conhecimento.
Hoje, caso alguém escreva algo, automaticamente está protegido por direitos autorais – desde que original. Não há necessidade de registro. E os direitos são reservados na sua integralidade. Agora pergunto: protegidos de quem? Parece que somos um bando de bárbaros que, sedentos por cultura e informação, quebramos tudo o que encontramos pela frente de modo que as criações do intelecto têm de ser protegidas e mantidas à distância de nós. No Brasil, caso um livro esteja fora de catálogo, ou seja, não esteja à venda e, portanto, a editora não recebe qualquer remuneração, mesmo assim ninguém poderá fotocopiá-lo. E como fica a função social da propriedade, garantida por nossa Constituição? Na Alemanha não é assim, caso o livro esteja fora de catálogo por 2 anos, pode-se fotocopiá-lo na íntegra. Ou seja, o Brasil não implementou todas as flexibilidades previstas em tratados internacionais. Será a pressão da “priority watch list”? Por exemplo, o Creative Commons, forma de licenciamento de obras artísticas, criado pelo professor Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, e que é representado no Brasil pelo Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV), é baseado nos direitos autorais, mas ao invés de “todos os direitos reservados”, é um instrumento de “alguns direitos reservados”, o que promove a disseminação do conhecimento, através de um maior equilíbrio entre o interesse público e o privado.
É justamente nesse panorama maximalista, de cada vez mais protecão e menos acesso, que a Agenda do Desenvolvimento para a OMPI, uma iniciativa de 15 países em desenvolvimento, liderados por Brasil e Argentina, foi proposta. A Agenda do Desenvolvimento procura promover a flexibilização no debate sobre propriedade intelectual de forma a trazer equilíbrio entre o interesse público e o privado.
Com o intuito de seguir de perto e também de participar dos debates, a FGV DIREITO RIO, Centro de Tecnologia e Sociedade – CTS criou o Projeto Cultura Livre, para monitoramento do órgão da ONU especializado em propriedae intelectual, a OMPI. Desse modo, tenho ido acompanhar pessoalmente todas as reuniões desde início de 2005, em nome da FGV, que possui credenciamento oficial perante a OMPI. Outro Projeto nosso é o Acesso a Conhecimento, ou A2K, como ficou conhecido (access to knowledge). O principal objetivo é trazer a discussão para o público leigo e informar o que realmente está ocorrendo. Tratamos de casos extremamente interessantes e que afetam a vida de todos nós, tais como fotocópia de livros, bem como o uso de DRM, travas tecnológicas que impedem e/ou limitam o acesso a filmes, música etc. Por exemplo, a maioria das lojas virtuais para download legal de música e vídeo utilizam algum sistema de DRM, o que impede, por exemplo, que gravemos o conteúdo digital diretamente no player digital da Apple, o iPod.
É curioso mencionar que, apesar de muitos dizerem que a participação pessoal in loco, lá em Genebra, na OMPI, não trará qualquer benefício efetivo ou possibilidade de modificação do atual cenário político, é certo que com tal presença temos real conhecimento do que se passa e, mais do que isso, de que forma os assuntos são conduzidos. A crescente participação de organizações não governamentais (ONGs) de interesse público, bem como da academia, tem ampliado os debates e trazido, aos poucos, o assunto para o público em geral – um assunto que antes não era sequer conhecido. Decisões de interesse público eram tomadas sem o devido conhecimento da população.
O que se observa em todas essas reuniões na OMPI é que em muitos momentos as discussões são informais, na sala B, uma sala menor ao lado da sala A, a sala principal. E o que isso significa? Que muitas discussões ocorrem a portas fechadas, sem que ONGs possam ao menos ouvir o que é debatido. Curioso notar que nada do que é discutido informalmente consta do relatorio oficial da reuniao. Em outras palavras, oficialmente é como se nunca tivesse ocorrido. Não há documentação. Nâo entra para a história oficial. Não faz parte do relatório oficial. Faz lembrar a época da ditadura militar.
Em determinados momentos até é interessante, por motivos diplomático-estratégicos, seguir com reuniões informais. Mas quando as discussões informais passam a se tornar regra, ao invés da exceção, é porque provavelmente há algo de errado.
Na sexta e mais recente reunião sobre a Agenda do Desenvolvimento para a OMPI, ocorrida no final de junho de 2006, o clima terminou tenso, inclusive com provocações do diplomata austríaco (que representou a Comunidade Européia) dirigidas ao Brasil – e aos outros 14 países membros do Grupo dos Amigos do Densenvolvimento, que mais uma vez receberam apoio da Índia e do Chile. Do lado austríaco estavam, principalmente, os EUA, Japão, Canadá, Austrália, China, Rússia e Quirguistão.
Assim, devido à grande tensão e falta de transparência, não houve consenso sobre o que deveria ser recomendado à Assembléia Geral da OMPI, que ocorrerá de 25 de setembro a 03 de outubro de 2006. Ou seja: nada foi concluído e tudo será discutido na Assembléia Geral. E tudo leva a crer que haverá barganha, uma vez que outros assuntos cruciais tambem serão discutidos na Assembléia. Resultado: o futuro da Agenda do Desenvolvimento continua incerto.
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Pedro de Paranaguá Moniz