A importância da sistematização das práticas sociais relacionadas à promoção da cultura popular em Salvador

A globalização hegemônica pode ser descrita como um movimento econômico, cultural, político e ideológico que, sobretudo desde os anos 1990, vem buscando defender uma concepção economicista das relações entre as pessoas e das nossas relações com a natureza e a cultura. A tendência, nesse fenômeno, é considerar os serviços públicos (educação, saúde, saneamento e, evidentemente, o acesso a bens culturais) como serviços de mercado regidos pela lei da oferta e da procura. Dizendo de forma rápida e simples, os serviços públicos, de acordo com este discurso, seriam produzidos somente quando e se forem rentáveis e consumidos somente por quem possa pagar. É hegemônica, assim, a globalização que defende os postulados da eficiência, da produtividade, da competitividade sem relacioná-los com a cidadania e a ética pública, sem questioná-los ou criticá-los na perspectiva de diferentes contextos culturais e históricos. É hegemônica a globalização que ignora os atores locais, seus objetivos, suas necessidades básicas.

A contrario, a globalização contra-hegemônica pode ser definida como o movimento de idéias e ações culturais, políticas e econômicas cujas origens ideológicas são muito diversas (associações, movimentos sociais, sindicatos, cooperativas, centros de cultura, ONGs, etc.). Dentro do pluralismo político que caracteriza esses movimentos contra-hegemônicos, rediscute-se e contextualiza-se o que a globalização pode produzir de positivo de acordo com o contexto de cada sociedade. A globalização contra-hegemônica é, em última instância, uma cultura de resistência e suas palavras de ordem são a cidadania ativa, a contestação, o questionamento, a mobilização social e política, a solidariedade, assim como a democratização dos processos de tomada de decisão no campo das políticas públicas e das políticas culturais.

Nos dias de hoje, muitos desses movimentos contra-hegemônicos atuam em rede, organizando-se de forma horizontal e, freqüentemente, menos hierárquica. Os indivíduos assumem suas responsabilidades dentro das redes em que atuam e interagem. Uma rede de cultura é o resultado da mobilização dos homens e mulheres, jovens e idosos, que consideram importante não ser a cultura um bem acessível somente a alguns poucos. Uma rede de cultura de resistência não nega a pluralidade das culturas nos bairros da cidade: os livros, o cinema, o teatro, a música clássica são evidentemente expressões culturais importantes, mas também fazem parte da cultura o samba de roda, a arte-educação, o teatro popular, o hip-hop, o grafitti, entre as inúmeras manifestações que podemos encontrar em Salvador.

É claro que trabalhar em rede e agir no campo da cultura faz com que a gente deva perguntar-se sobre os valores que embasam os projetos culturais, os atores que sustentam tais valores, as representações sociais na construção da cultura que é promovida e da cultura que é desconsiderada. Sim, há diferentes expressões culturais e algumas delas podem ser mais aplaudidas com financiamento e a presença do público do que outras. Às redes da cultura de resistência cabe a responsabilidade de buscar respostas aos desafios da cultura como bem de todos, a cultura como bem comum.

Nesse sentido, a cultura é definida como um conjunto de significados que são compartilhados pelos membros de uma coletividade (uma sociedade, uma comunidade). Estes significados são utilizados pelos homens e mulheres em suas interações e relações. A cultura apresenta variações e evolui dinamicamente. A cultura assim entendida não aceita modelos nem fórmulas universais de uma única globalização que nos transforma todos em consumidores de uma cultura pasteurizada, sem gosto, sem variação.

Diante dos inúmeros desafios que nos apresenta a globalização, o que podem fazer os movimentos sociais e os grupos organizados em redes em Salvador a fim de promover uma cultura de resistência? As respostas não devem vir exclusivamente da Universidade, mas podem ser trabalhadas, sobretudo, no âmbito dos próprios movimentos. Cabe à Universidade, penso, colaborar nesse processo, com interrogações, pesquisa realizadas em parceria e com metodologias inovadoras. Portanto, concluímos este texto com uma sugestão: que os grupos e as redes de cultura trabalhem, por exemplo, na sistematização crítica de suas práticas.

Sabemos que muitos são os motivos que podem ser enumerados para explicar por que redes de cultura encontram, freqüentemente, dificuldades no seu planejamento e na vida quotidiana: a escassez de recursos (de financiamento, mas igualmente em pessoas), a necessidade de cumprir com os prazos das agências financiadoras para obter projetos, a falta de uma formação contínua de seus gestores, a prioridade que deve ser dada às urgências de curto prazo, a distância que pode existir entre a Universidade e estes grupos sociais. É claro que tais fatores variam de acordo com o contexto de cada cidade, de cada bairro.

A sistematização pode ser uma resposta a tais dificuldades. Sistematizar é construir a memória de uma experiência, divulgar saberes relacionados a práticas culturais (lições e ensinamentos), estimular o intercâmbio e a confrontação de idéias, bem como contribuir a reconstituir visões integradas dos processos de intervenção social. Ou seja, sistematizar é contar o que uma rede de cultura faz na sua prática a fim de ajudá-la a aprender com seus próprios processos e poder, então, melhor negociar com os diversos setores envolvidos na promoção da cultura na Bahia e em Salvador.

Com o objetivo de colaborar nesse processo, desenvolvemos um roteiro de sistematização de práticas sociais, disponível gratuitamente no Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Escola de Administração da UFBA (www.gestaosocial.org.br). Este roteiro visa a auxiliar o processo de construção da memória associada às inúmeras práticas culturais e experiências de gestão social atualmente em curso na Bahia.

Carlos Milani


editor

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