A divulgação dos resultados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil II é uma oportunidade para que se discutam questões de política pública relativas ao acesso ao livro e os modos dos brasileiros lerem.

A pesquisa é divulgada quase oito anos depois da sua primeira versão, que teve os dados recolhidos no final de 2000 e apresentados no primeiro trimestre de 2001.

Ambas são pesquisas de opinião, feitas por institutos especializados. A primeira pela A. Franceschini Análise de Mercado e a segunda pelo Ibope.

Não é coisa simples comparar duas pesquisas, ainda que sobre o mesmo tema. As duas agiram sobre universos distintos e aplicaram técnicas de amostragem diferentes.

Quando nossas fontes de dados são pesquisas de opinião, o cuidado nas comparações deve redobrar. Ninguém deixa de responder às perguntas feitas e há sempre uma margem de imprecisão nas respostas – que não deve ser confundida com a margem de erro da pesquisa, que considera tão somente a repetição em condições iguais das mesmas perguntas. Exemplo: tudo que apela à memória é muito impreciso. Mesmo nas questões mais corriqueiras. Se perguntarmos a cada um de nós qual foi o cardápio de todas as refeições que tivemos em uma semana, o grau de imprecisão das respostas pode variar muito segundo diferentes fatores: se almoçamos regularmente em casa ou em restaurantes; se comemos no refeitório de empresas; se temos restrições alimentares ou não, etc. Se tabularmos essas respostas e se eventualmente estas fossem comparadas com anotações feitas no ato das refeições certamente haveria diferenças.

Na comparação de pesquisas sobre hábitos de leitura, acesso e consumo aos livros vários fatores podem ser diferentes entre diversas pesquisas, pois cada uma pode procurar respostas para problemas distintos e raramente seguem o mesmo padrão.

No âmbito das pesquisas sobre leitura, por exemplo, podemos encontrar diferenças assim:

– Pesquisas que buscam o número de livros comprados X Pesquisas que buscam o número de livros lidos;

– Pesquisas que buscam o número de livros lidos em geral X pesquisas que buscam o número de livros não escolares lidos.

Outras diferenças podem acontecer também na idade de corte do universo.

Exemplos:

A pesquisa Retratos da Leitura 2.000 – 14 anos em diante e pelo menos três anos de escolaridade.

Retrato da Leitura 2.007 – 5 anos de idade em diante.

Um recorrido por pesquisas feitas em outros países mostra também a variação da idade de corte do universo pesquisado:

França – 15 anos em diante.

Europa (síntese das pesquisas) – 15 anos em diante.

Itália – A partir dos seis anos.

Essas escolhas não são arbitrárias. Refletem estratégias diferenciadas para que se alcancem objetivos específicos.

Quando a pesquisa diferencia entre livros adquiridos e livros lidos, essa distinção geralmente é feita quando se procura detectar a questão da leitura e do acesso ao livro com ênfase nas situações de mercado (livros comprados) ou acesso em geral e índices de leitura (livros lidos).

Quando a pesquisa diferencia entre livros não escolares e livros escolares, outros fatores estão em jogo. Em primeiro lugar a referência à obrigatoriedade da leitura escolar; entretanto há dificuldades em se distinguir o livro propriamente didático do livro de literatura/ensaios/informações gerais usados na escola. Na França, por exemplo, uma das raízes do sucesso de muitos livres de poche é seu uso extenso nas salas de aula. Mesmo aqui no Brasil verificamos que as chamadas edições escolares vendem muito mais do que se pensa de títulos de clássicos da literatura brasileira.

As discussões sobre a idade também refletem estratégias de pesquisa diferentes. A principal razão para se pesquisar a faixa da adolescência em diante é o reconhecimento da autonomia relativa do leitor na escolha dos livros – maior a partir dessa idade e mais reduzida ou nula na faixa anterior, já que as crianças lêem o que os professores ou pais lhes entregam ou mandam ler.

Essas diferentes abordagens de pesquisa se refletem nas técnicas de amostragem e, portanto, na definição do universo a ser considerado, exigindo dos pesquisadores um exaustivo trabalho de desglosamento dos dados.

Vale a pena mencionar também alguns dados que muitas vezes ficam “ocultos” nas apresentações das pesquisas. Ocultos não por omissão ou inexistência desses dados, e sim em função da economia e síntese necessária nas apresentações.

Por exemplo, quando falamos de escolaridade, temos um conjunto de problemas:

1 – Quantidade de alunos matriculados em cada nível de ensino;

2 – Quantidade de pessoas, em cada grupo de idade, que alcançou um determinado grau de instrução. A quantidade de pessoas entre 25 e 30 anos com escolaridade superior, por exemplo, pode refletir um aumento dos níveis de escolaridade nos últimos quinze anos, e isso não aparece da mesma maneira quando se verifica os índices de escolaridade da população com mais de 50 anos. Ou seja, nos últimos anos aumentou sensivelmente a escolaridade da população, e isso se refletirá de diferentes formas no futuro, alterando projeções. Se incluirmos aí a variável renda já multiplicamos os fatores a serem considerados. Ao incluirmos local de moradia (metrópoles, cidades grandes, cidades médias, cidades pequenas, zona rural, por exemplo), essas variáveis compostas se multiplicam vertiginosamente.

A análise científica e comparativa dos dados, portanto, há de ser feita com muito cuidado.

Como estamos tratando aqui, principalmente, das duas versões da Retratos da Leitura no Brasil (I – 2000 e II, 2008), precisemos o contexto de cada uma das duas.

A pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil I” foi encomendada pelas três entidades do livro – CBL, SNEL e ABRELIVROS, com o apoio da BRACELPA, a associação dos fabricantes de papel e celulose. O objetivo principal da pesquisa era identificar a penetração da leitura de livros no Brasil e o acesso a livros. Também buscava levantar o perfil do leitor de livros; coletar as preferências do leitor brasileiro; identificar as barreiras para o crescimento da leitura no Brasil; levantar o perfil do comprador de livros no Brasil.

O uso na pesquisa do termo penetração era bem específico: penetração é a quantificação da parcela de um determinado universo que consome um produto.

O universo da pesquisa de 2.000 era: população de 14 ou mais anos e com pelo menos três anos de escolaridade.

A escolha desse universo partiu do seguinte:

– Sabia-se a quantidade de livros adquiridos pelo governo para o ensino fundamental. Naquele momento o PNLD – Programa Nacional do Livro Didático, só adquiria livros para o segmento de 1ª. a 5ª. séries, mas ainda não estava universalizada a atenção para os segmentos de 5ª. a 8ª. séries. O ensino médio não era contemplado e muito menos os cursos de EJA, pré-escola, etc.

– Os estudos sobre letramento mostravam também que o mínimo de escolarização – mínimo mesmo – necessário para compreensão da leitura era de três anos. As pesquisas como a do Alfabetismo Funcional e Pisa corroboram essa hipótese. Ainda que os objetivos da pesquisa não incluíssem a compreensão do lido, optou-se pelo descarte da população que sabia-se não ter condições de leitura nem mesmo a partir dos 14 anos de idade. Daí a opção por excluir do universo quem não tivesse pelo menos três anos de escolarização.

– O corte de idade, como já disse antes, derivava do reconhecimento da falta de autonomia relativa para decidir que livro ler por parte dos menores de 14 anos, supondo-se que, de forma quase absoluta, estes liam o que a escola ou os pais mandavam ler, quando liam.

Era, portanto, um universo radicalmente distinto do abrangido pela atual pesquisa.

A pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil II”, de 2008, foi encomendada pelo Instituto Pró-Livro, que é uma entidade financiada principalmente pelos editores. Mas, ao contrário das entidades corporativas (CBL, SNEL, ABRELIVROS), o IPL, nominalmente, tem como objetivo o apoio a iniciativas de difusão da leitura, não necessariamente centradas nos interesses mercadológicos dos editores.

O “Retratos da Leitura no Brasil II” abrangeu um universo muito maior: o universo da população brasileira com cinco anos de idade ou mais, incluindo os analfabetos. Destinava-se, portanto a “diagnosticar e medir o comportamento leitor da população, especialmente com relação aos livros, e levantar junto aos entrevistados suas opiniões relacionadas à leitura”.

Assim, ainda que os objetivos das duas pesquisas tenham semelhanças muito grandes, é necessário considerar sempre que: a)  existem diferenças de objetivos; b) principalmente, uma diferença substantiva na amostra, ambos derivados de estratégias diferentes.

A título de exemplo, portanto – e sem ânimo de estabelecer polêmicas “quantitativas” entre as duas pesquisas – vejamos alguns índices bem gerais.

A pesquisa de 2.000 dava como índice de penetração do livro no universo estudado a porcentagem de 62% de respostas positivas à pergunta se “costumam ler livros”. A pesquisa de 2.007 levantou que 55% do universo pesquisado “é leitor de livros”. O que temos aí? De cara, a pesquisa informa que 54% desses leitores (da pesquisa de 2007) são estudantes que lêem livros indicados pelas escolas, inclusive os didáticos. É óbvio que as porcentagens não podem bater nem ser comparadas, pois tratam de respostas diferentes para perguntas diferentes em universos também diferentes.

Quando se buscam números de outros países as diferenças metodológicas ficam ainda mais evidentes:

O Ministério da Cultura da França[i] informa que, em 2005, 58% dos franceses compraram pelo menos um livro naquele ano. Dá para comparar com a porcentagem de pessoas que compraram livros no Brasil conforme as duas pesquisas Retratos de Leitura? Não, porque na França a compra inclui os livros escolares e no Brasil os livros das escolas de ensino público são maciçamente adquiridos pelo PNLD.

A União Européia, em um estudo que compila o conjunto das estatísticas dos países membros[ii] informa que 71% das pessoas com mais de 15 anos leu pelo menos um livro em 2007. Mas faz questão de assinalar que 91% desses 71% de leitores “ainda são estudantes”.

A estatística italiana elaborada por sua associação de editores[iii] informa que 44,1% da população maior de seis anos de idade leu pelo menos um livro não escolar em 2006. Mas não diz exatamente o que é esse livro não escolar.

Por aí se vê que as comparações são complicadas.

Isso não nos impede, entretanto, de examinar algumas tendências que aparecem claramente – no caso, nos dois “Retratos da Leitura”.

Em primeiro lugar observe-se a correlação entre hábitos de leitura e escolarização.

Em 2000 a pesquisa assinalava que 55% do universo que possuía educação superior era comprador de livros. A relação com classe econômica, ainda que forte, era menor: 48% da classe “A” havia adquirido pelo menos um livro em 2.000.

Esse tipo de correlação se confirma e reforça na pesquisa de 2.007: um total de 92% dos que têm educação superior são leitores, e do total dos que lêem, 57% lêem livros não indicados pela escola. A classe “A”, por sua vez, tem um índice de penetração de 86% e, felizmente, a porcentagem dos que lêem livros não indicados pela escola é de 56%.

Para que essa análise alcance todo seu significado certamente será necessário subdividir esses dois segmentos por idade, local de moradia, etc. etc. para que se possa entender melhor essa dinâmica. Até porque os 92% de escolaridade superior estão entre os 9% do total da população, enquanto os mais ricos estão apenas entre os 2% do total da população.

Esse é apenas um exemplo e um exemplo que abrange uma parcela relativamente pequena da população nos dois casos. A grande massa de leitores e compradores está nos segmentos de renda média e escolaridade média e analisar em detalhes o que os números nos trazem nos dois casos – inclusive sua evolução, sua dinâmica – não é trabalho pequeno.

No relatório da pesquisa “Retrato da Leitura no Brasil II”, na etapa final, se ensaia uma comparação entre os dados de 2.000 e 2007.

Ali se assinala que, no ano 2.000, para o universo de 26 milhões de leitores do recorte feito na pesquisa se identificava o índice de 1,8 livro lido por leitor/ano. Já em 2007, para 66,5 milhões de leitores, o índice chegava a 3,7 livros lidos por ano. E assinala, corretamente, as dificuldades de comparação.

Os dois índices realmente mostram a dificuldade de comparar. No índice geral de leitura (sem fazer o recorte do universo que foi feito para a comparação), a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil II” informa que o índice de leitura em 2007 – geral – é de 4,7 livros por habitante/ano para o universo estudado, mas que o número de livros indicados pela escola (que inclui os didáticos) é de 3,4 livros lidos por ano, o que daria um saldo de “leitura voluntária” de 1,3 livros lidos por habitante/ano.

Ou seja, as duas pesquisas confirmam uma tendência comum: maior escolaridade, mais leitura. Isso é indiscutível. Mas a evolução do índice de leitura per capita é problemática. Em tese, se considerarmos apenas a leitura extra-escolar, teria acontecido até mesmo uma pequena diminuição no índice. Entretanto as diferenças nas amostras não permitem que essa observação seja precisa.

Vale a pena ressaltar alguns outros pontos da pesquisa de 2000, seus pontos de contato com a pesquisa de 2.007 e diferenças entre as duas.

Ao contrário do que se possa pensar do fato da pesquisa de 2000 ter sido financiada diretamente pelas entidades de editores e pelos fabricantes de papel, seu foco não se resumia às chamadas “questões de mercado”.

A primeira preocupação da pesquisa foi a de avaliar precisamente a percepção da importância da leitura na sociedade contemporânea. E então se constatou que: a) a leitura é muito valorizada em função da importância da palavra escrita; b) apesar disso, as dificuldades para a leitura de livros são imensas – as conhecidas deficiências de letramento no processo educativo; c) por isso mesmo as respostas sobre o que as pessoas “COSTUMAM LER” coloca o livro em sexto lugar, depois de cartazes, placas de ruas, letreiros de ônibus, revistas e jornais.

Mas desde aí se coloca a questão da educação como fator de importância: quanto maior a escolaridade, maior a leitura de livros. E a pesquisa desglosava esses dados por porte de cidades, regiões, situação profissional, etc.

Apesar do reconhecimento da importância social da leitura, esta não era reconhecida fundamentalmente como prazerosa, e sim decorrente de exigências da escola, do emprego e da igreja. Ou seja, era mais percebida como necessidade do que como fonte de prazer.

Essas atitudes foram tabuladas com diferentes variáveis: educação, idade, porte da cidade e região, sexo, condição de trabalho (população ativa, estudantes, inativos, etc.), poder econômico.

Foram também analisadas as barreiras à leitura: questões de acesso – dificuldades econômicas, preço do livro, falta de bibliotecas, dificuldades de leitura (compreensão), além de outras alternativas de conhecimento como a televisão, jornais, rádio, atribulações da vida, dificuldades de visão, falta de tempo e coisas do tipo.

A essas dificuldades se contrapunham as perguntas que identificavam os fatores que em tese poderiam favorecer o aumento da leitura: desde melhor visão, disposição de mais tempo, ter filhos jovens para os quais ler, disponibilidade de acesso (mais livrarias, mais bibliotecas) e fatores econômicos – livros mais baratos. Tudo isso cruzado com as variáveis já mencionadas: idade, escolaridade, situação laboral, porte das cidades, etc. etc.

Um ponto em comum entre as duas pesquisas foram as respostas que colocavam a questão das indicações de leitura passíveis de serem feitas pelos mais diferentes tipos de mediadores de leitura – resenhas de jornais, professores, amigos, etc. – como um fator de estímulo à leitura.

Depois dessa longa introdução é que a pesquisa de 2.000 entrava nas questões do mercado leitor, com a definição geral de leitor como aquele que tinha lido pelo menos um livro nos últimos três meses. Esse público leitor, entretanto, era objeto de observações em maior profundidade.

Em primeiro lugar determinou-se o que chamamos de “leitor corrente”, que era aquele que estava lendo pelo menos um livro no momento da pesquisa. Uma diferença metodológica entre 2.000 e 2007. Em 2000 se perguntou especificamente se o pesquisado estava lendo, e que livro ou livros eram esses, e não simplesmente qual o último livro que tinha lido ou estava lendo, pois essa pergunta estava no contexto de saber se “tinha lido algum livro nos últimos três meses”. É uma diferença aparentemente sutil, mas que tem conseqüências, a mais importante das quais é evitar o apelo à memória dos três meses e recolher um dado mais imediato e daí identificar o “leitor corrente”.

A partir do “leitor corrente” é que se procurou identificar duas outras categorias. A primeira foi chamada de “leitor efetivo”, que era aquele que declarou ter lido pelo menos um livro nos últimos três meses. A outra categoria era a do “comprador de livros” (que adquiriu pelo menos um livro no decorrer do ano 2000). Enquanto o “leitor corrente” correspondia a 14% do universo estudado, o “leitor efetivo” correspondia a 30% do universo e o comprador de livros correspondia a 20% do universo, proporção praticamente idêntica à revelada pela pesquisa de 2007.

Finalmente se procurou identificar uma categoria mais “frouxa”, que era a daqueles que declararam “costumar ler” ou “gostar de ler” e declararam ter lido pelo menos um livro no último ano, embora não o identificassem. Essa categoria correspondia a 62% do universo estudado.

As conseqüências mercadológicas do estudo eram inferidas a partir desses dados: as barreiras, o gap entre os leitores correntes, leitores efetivos e os que “costumam ler” e a população do universo considerado é que levavam a considerações sobre estratégias e políticas – tanto políticas públicas quanto possíveis estratégias mercadológicas – para que esse gap fosse superado ou diminuído. Ou seja, para que diminuísse a distância entre a população alfabetizada e o leitor corrente e o comprador de livros.

Mas livros não são apenas comprados. E sua leitura não se origina somente nos livros comprados. A questão do acesso ao livro é muito mais complexa.

Um dos pontos interessantes da pesquisa de 2000 – e que é confirmada pela de 2007, é a da concentração na posse de livros. O quadro da concentração mostrava que 1% da população tinha a posse de 22% dos livros em suas residências, índice que crescia até se mostrar que 20% da população possuía 96% do total de livros nas residências, e que 14% da população não tinha livros em casa.

Em 2007 essa concentração era menor, embora ainda muito alta: 19% dos livros estão nas mãos de 1% da população; 49% estão nas mãos de 10% da população e 66% dos livros estão nas mãos de 20% da população. 8% da população não tem nenhum livro em casa e 4% da população só tem um único livro em casa.

A posse e a compra dos livros não resumem as questões. Realmente as questões do acesso são ainda mais dramáticas para que se considere a questão dos índices de leitura.

As bibliotecas públicas são consideradas, por todos os estudiosos, como um meio fundamental de acesso ao livro.

A pesquisa de 2.000 levantou que dos livros lidos pelo “leitor corrente” (que estava lendo no momento da pesquisa), apenas 8% tinham sido retirados de bibliotecas. Na identificação das “barreiras” para a leitura, principalmente no estrato médio da população (onde se concentra o maior número de leitores) a pesquisa concluía que a baixa presença das bibliotecas aliava-se ao baixo poder aquisitivo da população para compor a mais forte “barreira”. A questão do poder aquisitivo refletia-se em respostas tipo “o livro é caro” e “não tenho dinheiro para comprar mais livros”. Esse impedimento objetivo somava-se a dificuldades de compreensão do texto e a preferência por outros meios para adquirir conhecimento. Os três elementos compunham “barreiras efetivas” para o aumento do índice de leitura. A pesquisa de 2000 não perguntou sobre grau de satisfação do entrevistado em relação à biblioteca que eventualmente freqüentava.

A pesquisa de 2007 fez mais perguntas sobre bibliotecas:

12% dos leitores declararam ter o costume de ler em bibliotecas;

34% dos leitores declararam que lêem livros emprestados por bibliotecas (inclusive as escolares). A pergunta, entretanto, estava formulada de modo a que o entrevistado a respondesse com duas alternativas (sempre e às vezes) e junto com mais sete alternativas: emprestados por outras pessoas; comprados; presenteados; distribuídos pelo governo ou escolas; baixados gratuitamente na internet; fotocopiados/xerocados e não informou. As duas primeiras alternativas foram as mais citadas.

De acordo com classe social (critério ABEP), as respostas sobre as bibliotecas como forma de acesso aos livros foram assim: classe A: 24%; classe B: 31%; classe C: 37%; classe D: 33% e classe E: 22%.

Uma tabela mais ilustrativa é a que revela a idade dos freqüentadores de bibliotecas: de 5 a 10 anos: 49%; de 11 a 13 anos: 53%; de 14 a 17 anos: 47%; de 18 a 24 anos: 36%; de 25 a 29 anos: 20%; de 30 a 39 anos: 26%; de 40 a 49 anos: 20%; de 50 a 59 anos: 19%; de 60 a 69 anos: 10% e de mais de 70 anos: 8%. Ou seja, as bibliotecas são freqüentadas basicamente pela população escolar.

Perguntou-se aos freqüentadores de bibliotecas (freqüentes ou ocasionais), qual a sua avaliação sobre atendimento, cuidado da biblioteca; facilidade de acesso; se gosta ou não gosta da biblioteca; se encontra os livros que procura; se é atendido por bibliotecários ou por outro tipo de funcionários; se encontra ou não os livros que procura e se quem os atende sugere outros livros. Essas perguntas foram feitas por quem usa frequentemente as bibliotecas, que são apenas 10% dos leitores. A pesquisa identificou que apenas um em cada quatro brasileiros usa bibliotecas e os que as freqüentam são basicamente estudantes, ainda que 46% dos alunos não tenham esse hábito. E apenas um em cada quatro estudantes freqüenta as bibliotecas públicas municipais.

Ou seja, os que frequentam as bibliotecas são basicamente os estudantes, e usam principalmente as bibliotecas escolares. Isso ilumina outras respostas: os estudantes vão às bibliotecas para cumprir tarefas escolares bem definidas – e encontram os livros para suas “pesquisas” – e tem, no geral, uma avaliação positiva.

A pergunta que não pode ser respondida – por nenhuma das duas pesquisas – é a que explicaria porque 73% do universo estudado (126 milhões de brasileiros) simplesmente não freqüenta as bibliotecas.

Dentre os entrevistados na “Retratos da Leitura II” 67% declaram “saber da existência” de uma biblioteca em seu município. Como já vimos, apenas 10% dos brasileiros – na maioria escolares – as freqüentam. Será que os demais têm alguma espécie de ojeriza às bibliotecas, justificando a afirmativa de que “brasileiro não gosta de ler”?

Para tentar entender isso precisemos: 67% dos brasileiros dizem saber da existência de bibliotecas em seus municípios. Ou seja, 33% desconhecem a existência desses equipamentos. Sabemos que ainda hoje, em 2008, aproximadamente 10% dos municípios brasileiros não tem nenhuma biblioteca. O Ministério da Cultura anuncia que ainda este ano haverá pelo menos uma biblioteca em cada município.

Mas o que são essas bibliotecas? Não existe um censo – e nem mesmo uma pesquisa por amostragem – sobre a sua situação real. A experiência de quem lida com o assunto mostra que a maioria absoluta – e põe absoluta nisso – são simples depósitos de livros velhos, há anos não adquirem acervos novos, não estão informatizadas e o pessoal é pouco ou nada capacitado – nem como bibliotecários, nem como mediadores de leitura – para um atendimento correto do conjunto da população, e não apenas dos garotos que vão copiar trechos de enciclopédias para suas tarefas escolares.

As bibliotecas que o Ministério da Cultura tem instalado nos últimos anos – e louve-se esse esforço, que é o mais significativo feito no Brasil há muitos anos – têm um acervo padronizado de 2.000 títulos. São títulos escolhidos por especialistas e idênticos para todas: o acervo que eventualmente vá para Urucurituba, no meio da floresta amazônica, é o mesmo que será enviado para a campanha gaúcha, para o cerrado do centro-oeste ou para a região de canaviais do nordeste. Haja pontaria para acertar nos eventuais interesses de leitura de populações tão diversas!

O contraste com a situação de outros países é brutal.

Mencionei antes que 58% dos franceses compraram um livro em 2005. A mesma pesquisa informa, entretanto, que no mesmo ano os franceses retiraram 164,9 milhões de impressos nas 2.913 bibliotecas municipais. Que não constituem o total da rede de bibliotecas da França, composta em 2005 de 4.319 bibliotecas públicas – municipais e anexos, departamentais e de status especial (Biblioteca Nacional, Biblioteca Pública de Informação, Mediateca da Cidade das Ciências e a Biblioteca Infantil de Clamart).

Em 2004 a Direction du Livre et de La Lecture da França estimou a compra de 4,9 milhões de livros, 222,910 assinaturas de periódicos, 606.059 fonogramas, 198.546 cassetes de vídeo num total de 92,5 milhões de euros em aquisições. O pessoal trabalhando nas bibliotecas (que inclui mais de onze mil voluntários) alcançava quase cinquenta mil pessoas e o gasto de pessoal alcançou 686 milhões de euros.[iv]

Isso para uma população de 63,5 milhões de pessoas.

O acervo disponível nas bibliotecas do Reino Unidos (Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do Norte), em 2005, era de 107.619.000 livros (sem contar outros materiais audiovisuais, etc), sendo 79.511.000 para empréstimo e 28.108.000 de títulos de referência e reserva de acervo. No mesmo ano de 2005 foram adquiridos 12.021.000 livros para as bibliotecas públicas (não se contam aqui as bibliotecas acadêmicas ou especializadas, e não encontrei também as referências quantitativas de descarte). As estatísticas sobre circulação são altamente complexas, pois incluem tabelas sobre acessos virtuais, solicitação de informações, uso dos equipamentos de informática e empréstimo de materiais audiovisuais. Uma estimativa aproximada é dada pelo número de visitas anuais às bibliotecas, que em 2005 alcançou um total de 339.676.000, com uma média de 5,7 visitas per capita em uma população total de cerca de 60 milhões de habitantes. Como os bebês só visitam no colo das mães é de se supor que o número de visitas de leitores nas bibliotecas britânicas tenham sido na verdade superior a essa média. Visitas que foram feitas em um total de 4.715 pontos de serviço.[v]

Os Estados Unidos têm mais de 130.000 bibliotecas (entre públicas – que incluem todos as sucursais e pontos de acesso -, escolares, especializadas, das forças armadas, indígenas, etc.), que geraram, em 2003, um total de 1.248.175.000 visitas, o que significa que a população do país esteve 4,6 vezes por ano nas bibliotecas[vi].

Mas esses são dados provenientes de países que levam a sério a questão das bibliotecas públicas, que investem na mesma proporção da seriedade com que encaram o problema, e que dispõem de um sistema de bibliotecas públicas.

Nesses países, em função de um processo histórico específico (veja-se, para entender esses processos, o excelente livro do Matthew Battles[vii]), as bibliotecas passaram a ser uma demanda social. Um equipamento cultural/educativo indispensável para a cidadania.

Essa percepção da necessidade das bibliotecas não é espontânea. Nasce de ações políticas ditadas pelas circunstâncias históricas. Na Inglaterra foi o utilitarismo de John Stuart Mills, ideólogo do cartismo, do movimento sindical inglês e utilitarista in extremis: era preciso que os proletários pudessem saber o que fazer para se contrapor à ideologia radical preconizada por Marx. E façam-se bibliotecas. Idéia recolhida nos EUA por Dewey e outros, que viam nas bibliotecas o local por excelência da educação popular para apreensão do conhecimento organizado (e não é a toa que Dewey é o autor de um sistema de classificação dos livros que tenta reproduzir a classificação do conhecimento).

No Brasil, da década de 1920 para cá, a idéia da escola como exigência social se consolidou definitivamente. Hoje é impossível que um prefeito inaugure um conjunto habitacional sem que nele haja uma escola: são as exigências do capitalismo.

Mas a concepção da biblioteca como instrumento democrático de difusão do conhecimento, acesso à informação e lazer, ainda é muito frágil[viii]. Daí não existir pressão social para que estas sejam construídas, equipadas e atualizadas[ix].

O desafio que se coloca para as administrações públicas: encarar a questão das bibliotecas como algo estratégico para o desenvolvimento econômico, social e democrático do país. Agir, sob a forma de políticas públicas, para criar essa demanda por bibliotecas, tal como o movimento da Escola Nova, idealizado por Anísio Teixeira, fez em relação à educação pública no Brasil.

Também faz falta no Brasil ampliar muito mais o âmbito, a quantidade e a variedade das pesquisas sobre a leitura. E também dispor de recursos e meios técnicos para reunir o conjunto das informações.

Um exemplo do que pode e precisa ser feito é dado pelo recém publicado “To Read or not to read – A Question of National Consequence”, elaborado pelo National Endowment for the Arts do Governo dos Estados Unidos[x]. A pesquisa – que mostra uma lamentável tendência decrescente da penetração da leitura nos EUA – correlata dados de dezenas de organismos públicos (federais, estaduais e locais) e privados (associações profissionais, centros de pesquisa, etc.) de forma coerente e conseqüente, oferecendo um painel que teria que ser feito também aqui no Brasil. Já dispomos de dados recolhidos pelo IBGE, pelo INEP, pelas entidades do setor editorial, além de farta bibliografia produzida por pesquisadores – essas muito mais ensaísticas – que deveriam ser correlacionados.

Acredito que o principal resultado da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil II”, tal como já havia sido assinalado por sua antecessora do ano 2000, é – mais uma vez – chamar atenção dos responsáveis pelas políticas públicas de acesso ao conhecimento – e aí temos não apenas o MEC como também o MinC e o MCT – da necessidade de atuar conjuntamente para estabelecer uma política pública de Estado que possa efetivamente permitir que os brasileiros tenham acesso ao conhecimento, à informação cidadã e ao lazer nas bibliotecas públicas do nosso país.

[i] Jeannine Cardona/Chantal Lacroix – Ministère de La Culture et Communication. Délégation au Development et aux affaires internationaux. Département des etudes, de la prospective et des statistiques, “Statistiques de la culture, chiffres clés 2007”, Paris, 2008.

[ii] Marta Beck-Domżalska, “Statistiques Culturelles em Europe” – Eurostat – Office des statistiques de l’Union européenne. Unité F4 – Statistiques de l’éducation, des sciences et de la culture.

[iii] “Panorama Of Italian Readers”, in Giornale Della Libreria, Outubro de 2007. doi: 10.1390/gdldoi: 1007UK_Reading.

[iv] Jeannine Cardona/Chantal Lacroix – Ministère de La Culture et Communication. Délégation au Development et aux affaires internationaux. Département des etudes, de la prospective et des statistiques, “Statistiques de la culture, chiffres clés 2007”, Paris, 2008.

[v] Claire Creaser, Sally Maynard, Sonya White, LISU Annual Library Statistics 2006 – Featuring trend analysis of UK public and academic libraries 1995-2005. Museums Libraries Archives Council/Loughborough University, Loughborough, 2006.

[vi] ALA – American Librarians Association (WWW. Ala.org) e sites correlatos, para os dados.

[vii] Battles, Matthew, A Conturbada História das Bibliotecas, Planeta, S. Paulo.

[viii] Note-se que, nos EUA, as bibliotecas públicas ainda são as responsáveis por 70% do acesso gratuito à Internet, segundo estudo patrocinado pela fundação Bill e Melinda Gates. Na Inglaterra todo o sistema de e-government foi montado em cima da estrutura das bibliotecas públicas. No Brasil, como não se faz nada coordenado em termos de governo, o MCT gasta rios de dinheiro implantando telecentros fora das bibliotecas…

[ix] Exceções existem. A modernização do sistema de bibliotecas públicas do município de Guarulhos (SP) gerou demanda contínua e acabou se tornando um dos temas de campanha para a reeleição do prefeito Elói Pietá.

[x] “To Read or not to Read – A question os National Consequence”, Research Report # 47. National Endowment for the Arts, Washington, USA, disponível gratuitamente em  www.arts.gov, o site da NEA.

O relatório da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” – edição 2008 está disponível no site s://www.prolivro.org.br.


Antropólogo, jornalista e consultor de políticas públicas para o livro e leitura, é autor do livro "O Brasil pode ser um país de leitores?"

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