Divergências entre os diferentes segmentos sociais ligados à questão foram reforçadas, mais uma vez, no seminário “TV digital: futuro e cidadania”, realizado pela Câmara dos Deputados

BRASÍLIA – O aumento da pressão das emissoras para que o governo federal defina logo o padrão tecnológico da TV digital tem se refletido também no aprofundamento das divergências entre os diferentes setores (radiodifusores, fabricantes, entidades da sociedade civil, universidade, governo, empresas de telecomunicação) ligados à questão, como se viu no seminário “TV digital: futuro e cidadania”, realizado pela Câmara dos Deputados na última terça-feira (16).

Representantes de organizações civis, acadêmicos e parte do governo, liderada pelo Ministério da Cultura (MinC), fizeram a defesa de que as oportunidades abertas pela construção do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) sejam aproveitadas em uma ampla reforma no setor de rádio e TV. Foram sugeridas políticas de fortalecimento da produção audiovisual nacional e um novo marco regulatório que possa democratizar a distribuição dos canais para incluir mais agentes de forma a promover a diversidade cultural e informativa existente no País.

Por outro flanco, radiodifusores defendem apenas um processo de adaptação tecnológica. Os conglomerados estabelecidos da mídia nacional querem transmitir com melhor definição e qualidade de áudio e vídeo, sem mudanças no modelo, para garantirem sua influência ideológica e sua fatia de mercado. Ainda do lado empresarial, as empresas de telecomunicação buscam aproveitar a implantação da TV digital para tirar vantagens comerciais das novas possibilidades de convergência tecnológicas entre as diversas tecnologias existentes, principalmente entre o celular e a televisão.

O primeiro grupo prega a inversão da ordem do processo de a condução por parte do governo, que vem privilegiando as definições tecnológicas e relativas à política industrial. “A discussão não se deve ater à melhor tecnologia. Esta Casa [a Câmara] quer discutir o papel social desta mudança tecnológica. Como fazer com que a população não fique excluída como é hoje a tv por assinatura e a internet? Como garantir que sejam respeitados os objetivos do SBTVD constantes no Decreto 4901/03 de inclusão social e promoção da diversidade cultural?”, questionou o deputado Inocêncio de Oliveira (PL-PE), presidente da Comissão de Altos Estudos da Câmara, organizadora do evento.

Para Juliano Carvalho, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a inversão das prioridades se justifica também pela importância da televisão para a população brasileira. Ele lembrou que a TV aberta é a principal fonte de informação e cultura da população (chegando a mais de 90% dos lares brasileiros) e destacou que o conteúdo veiculado pelo meio precisa ganhar a mesma prioridade que os aspectos técnicos. “As potencialidades culturais que a TV Digital traz devem ser tratadas com a mesma atenção que a tecnologia e a industria vêm recebendo, pois as plataformas são a decorrência do modelo formulado e não o contrário”, comentou.

Na avaliação do representante do FNDC, o aproveitamento destas potencialidades passa pela mudança radical na estrutura concentrada do Rádio e da TV. “É preciso desverticalizar a cadeia do audiovisual, criando novos nichos de mercado e incluindo novos agentes na transmissão de conteúdo”, defendeu. Já a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) chamou atenção para a possibilidade de ampliação de canais que a TV digital e defendeu a abertura de mais espaço para novos produtores. “Vamos dar a outorga para os mesmos, ou vamos dar para novos agentes? Temos que decidir se o espectro da TV digitalizada servirá a novos difusores ou se iremos botar mais do mesmo”, provocou.

Na opinião do presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), a TV digital tem que funcionar com o objetivo de democratizar a comunicação a serviço dos interesses do país, não apenas permitindo um ambiente de liberdade de expressão mas garantindo que esta liberdade seja efetivamente praticada. A posição foi compartilhada por Manoel Rangel, do Ministério da Cultura, que considerou a otimização do espectro (espaço por onde trafegam os sinais de TV e Rádio) como “a questão central”. No entanto, para Rangel esta ampliação tem que contemplar a abertura de mais espaço para novos canais e também a garantia de condições para que estes novos programadores consigam operar.

Para garantir mais espaço, ele defendeu a mudança do paradigma do canal para o de programação. Na lógica do canal, cada concessionária manteria o mesmo espaço no espectro que ela hoje possui (6MHz), mesmo que o avanço tecnológico a permitisse transmitir a mesma programação, até em alta definição, ocupando um espaço menor. Este é o modelo defendido pelos radiodifusores, que não querem mudanças no “direito adquirido” da repartição concedida do espectro, para que dele façam o uso que preferirem, seja transmitir conteúdo para celular e para receptores em movimento ou colocar outra programação. No paradigma da programação, segundo Manoel Rangel, as concessionárias do serviço de radiodifusão teriam apenas o espaço necessário para a transmissão de suas respectivas programações. A “sobra” não ocupada dos 6MHz poderia, segundo ele, multiplicar o espaço até para 504 programações diferentes na TV.

“O paradigma das programações precisa ser contemplado por que é nele que posso trabalhar com a entrada em cena de novos agentes, novos atores, mesmo em áreas onde tenho algo congestionamento do espectro”. Para esta nova lógica funcionar, o representante do Ministério da Cultura defendeu que o modelo de TV Digital separasse a produção (que agora ficaria com a programadora) e a transmissão dos sinais, que se transformaria em um novo serviço a ser executado pelo ‘operador de rede’, que funcionaria quase como uma antena única. “O operador permite diminuição dos custos, maior rapidez na cobertura do país e maior racionalidade no uso do espectro, condição para garantir a diversidade”, defendeu. Manoel Rangel lembrou que com esta solução resolveria o problema da entrada de programadoras públicas, educativas e comunitárias, cuja existência estava ameaçada por conta dos altos custos de transição da transmissão analógica para a digital.

Para Rangel, é a criação destes novos canais que pode impulsionar a indústria brasileira do audiovisual, que em 2003 rendeu 3,8 bilhões de dólares enquanto o mercado mundial movimentou 255 bilhões de euros. No entanto, na opinião de Juliano Maurício, do FNDC, é preciso pensar tanto na quantidade quanto na qualidade do conteúdo que será transmitido pela tv digital. Esta qualidade deve passar pela existência na TV de diferentes finalidades do conteúdo, como: entretenimento e lazer, formação cultural, educação e capacitação, promoção da cidadania e estímulo à capacidade crítica da população. Ronaldo Mota, do Ministério da Educação, completou defendendo a importância da TV digital como meio educativo da população, lembrando que as crianças e adolescentes no Brasil assistem a 4,5 horas de TV por dia enquanto a média mundial é de apenas duas horas. “É preciso ir além da qualidade e introduzir a interatividade, que irá transformar a tv em algo distinto do que temos hoje”.

Para a maior parte dos debatedores, para que todas estas potencialidades sejam efetivamente incorporadas no Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) em um novo modelo de radiodifusão, é preciso desamarrar dois nós: o modelo de financiamento e o marco regulatório, pois estas mudanças terão custos que alguém terá de pagar e são impossíveis na atual legislação brasileira. Em relação ao financiamento, o debate do seminário voltado a este tema mostrou mais uma vez a grande briga entre radiodifusores e empresas de telecomunicações. Os donos das emissoras argumentam que a margem para mudanças é pequena pois não haveria mais recursos uma vez que a TV aberta é sustentada com verbas oriundas de receitas publicitárias. Um novo modelo de negócio, em especial com a entrada das empresas de telecom, significaria a transformação da TV em um serviço pago e entregue a empresas internacionais, uma vez que os atores deste ramo não têm limite de capital estrangeiro como a radiodifusão (máximo de 30%).

Em resposta, os representantes das operadoras argumentam que o avanço tecnológico é inevitável e que então seria vantajoso às emissoras um modelo de negócios em que todos ganhassem, no qual elas produzissem o conteúdo mas a distribuição ficasse a cargo das telefônicas em um regime pago. Na avaliação deste setor, o vídeo para receptores móveis é o futuro que os radiodifusores somente conseguiriam atingir os celulares em um modelo negociado com as operadoras. Em meio a este fogo cruzado, acadêmicos e representantes da sociedade civil criticaram o que seria uma falsa dicotomia entre os dois setores empresariais e defenderam um debate mais aberto do financiamento da produção independente e diversa, sobretudo nas programadoras públicas, universitárias, comunitárias e educativas, que poderá ocupar o espaço aberto pela TV digital.

Mas se não se faz sem recursos, um novo modelo também não se faz sem novas regras. “Não há como avançar da perspectivamente meramente tecnológica sem que tenhamos uma política pública e não há política pública sem uma lei que a anteceda”, cobrou o professor e pesquisador da UnB Murilo César Ramos. Ara Apkar Minassian, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), lembrou que a legislação brasileira da área de radiodifusão data da década de 60 e defendeu a urgente atualização das normas. A deputada Jandira Feghali afirmou que é impossível implantar a TV e o Rádio Digital sem passar pela legislação e citou como exemplo a transmissão simultânea em analógico e digital (simulcasting), que se configuraria em duas outorgas em uma mesma região, o que é proibido por Lei.

O deputado Walter Pinheiro (PT-BA) afirmou que a TV digital é somente ‘a ponta do iceberg’ de um processo de regulação muito mais complexo, que envolverá a produção de conteúdo para as mais diversas plataformas (como telefonia móvel, TV por assinatura, Internet, Rádio e TV) e a integração entre estas. “O que vai ser veiculado no celular não é a transferência pura e simples da TV, mas uma nova mídia, um novo serviço. Quem regula isso? quais são as condições de competição e oportunidade?”, questionou. Para Pinheiro, é preciso combater o direito adquirido sobre os 6MHz hoje utilizados pelas concessionárias rumo à uma nova lógica de distribuição dos canais, mudança que só pode ser feita no âmbito legal. Esse processo incluiria a discussão do processo de outorgas, distribuição do espectro e as condições para os novos agentes. “Temos que garantir o mesmo tratamento para os novos que daremos aos atuais operadores”, defendeu.

(Matéria publicada originalmente em 19/05/06, pela Agência Carta Maior, e reproduzida em copyleft)

Jonas Valente, para a Agência Carta Maior


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