Projeto de Vera Fischer recebe autorização de captação de R$500 mil e esquenta os ânimos em Santa Catarina. Transparência na gestão do Funcultural é o foco
Transbordamento no setor cultural catarinense. Nesta semana veio à tona o que já era muita conversa de bastidor. Os resmungos e indignações ganharam outras tonalidades depois que a imprensa noticiou que a atriz Vera Fischer recebeu autorização para captar R$500 mil para a peça “Porcelana Fina”, um dos projetos de valor mais elevado entre os 320 aprovados em 2006 pelo Funcultural, o mecanismo de incentivo à cultura de Santa Catarina. A Fundação Catarinense de Cultura (FCC), responsável pela condução do assunto na Secretaria Estadual de Cultura, Turismo e Lazer (Sol), teve de se defender.
A Associação de Produtores Teatrais da Grande Florianópolis (Gesto) e a Associação Profissional de Dança do Estado (Aprodança) divulgaram nota de protesto para denunciar supostas distorções na gestão do Sistema Estadual de Incentivo ao Turismo, Esporte e Cultura (Seitec), que libera a captação de recursos para a área por meio de renúncia fiscal de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Além disso, as duas entidades encaminharam o documento à Assembléia Legislativa e com outros grupos de artistas já foram ao Ministério Público de Santa Catarina.
A Gesto e a Aprodança reclamam com relação às modificações realizadas pela reforma administrativa que “só reforçaram o uso político e pouco transparente na distribuição dos recursos”. Há, segundo os seus integrantes, uma lista de irregularidades que vêm ocorrendo de forma sistemática no sistema, a começar pela criação do comitê gestor, a quem cabe julgar os projetos avalizados pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC) e que tem alterado as decisões anteriores “estacionando” aqueles que não fazem parte das prioridades do governo. “Nos dois últimos meses, várias propostas foram aprovadas, integral ou parcialmente, pelo CEC. No entanto, ao procurar acompanhar o seu andamento, os proponentes foram comunicados que não havia mais verbas, inviabilizando a execução dos mesmos”, situa o documento.
Os produtores e agentes culturais também denunciam propaganda enganosa, alertando que o dinheiro anunciado não é o efetivamente liberado. Os conselheiros não são comunicados sobre as verbas disponíveis nem sobre os vetos feitos pelo comitê gestor, que redefine os valores a partir de seus próprios critérios. A publicação no “Diário Oficial” dos projetos aprovados segue interesse partidário ou de interesse pessoal e os recursos são retidos nos cofres do governo por meses. Há proponentes com recursos já captados e depositados e que estão impedidos de cumprir com os prazos estabelecidos.
“Sendo a única fonte de recursos disponível para a produção cultural no Estado, a sua má ingerência causa mais danos a toda a sociedade e configura mau uso do dinheiro público. O que se vê aqui é um total desrespeito à lei ou ainda, o que é pior, um uso ‘adaptado’ de acordo com as circunstâncias. Estamos vivendo um verdadeiro coronelismo cultural, que revela um grande retrocesso em algumas conquistas feitas no decorrer dos últimos anos”, lamentam as duas associações.
Reclamam também de extravio de documentos e, o principal problema, afirmam os produtores, são as informações contraditórias e erradas dentro da própria Secretária. “Há uma complicação danada que nem eles conseguem mais compreender”, afirma o produtor Abel da Silva, que classifica a situação como uma grande falta de respeito com relação à classe artística. Não há, segundo ele, mais nenhuma possibilidade de discussão com o governo. “É uma pena ver em Santa Catarina uma lei de incentivo criada em 1998 om o empenho da classe artística e do próprio governo, agora tratada com tanto desrespeito, adotando as mesmas regras que acabam diferentes para entidades como a Gesto e Vera Fischer”, lamenta o produtor.
Para outros, a equação é simples. O Funcultural virou um balcão de negócios. Os interesses se sobrepõem aos artísticos e comunitários. O artista plástico Roberto Moreira Jr. considera que a aprovação do espetáculo da atriz pelo Funcultural é o maior exemplo de uma “política de fachada e de espetáculo” do governo catarinense. Para ele, o fomento da produção artística do Estado parece não estar nos planos dos que “mandam” nas comissões de avaliação. Definiu a situação atual como uma barbárie no setor: “Enquanto muitos dos produtores culturais estão com seus projetos parados no comitê gestor, ou pior, têm o dinheiro retido na conta do governo só esperando a aprovação, muitos espetáculos e carnavais já passaram – todos completamente equivocados”.
O escritor e editor Fabio Brüggemann abordou o tema em sua coluna no Diário Catarinense. Com o título “O problema não está na Vera Fischer”, ele escreve que “a bronca existe pelo fato de a classe produtora estar à míngua, sem uma política clara para a área de cultura”. Para ele, as mudanças na lei de incentivo foram um desrespeito sem precedentes aos artistas locais, porque durante mais de dois meses técnicos da Secretaria debateram a regulamentação com os produtores e, quando ela foi lançada, muitos acordos foram descumpridos. Critica ainda o comitê gestor, composto por Edson Machado, diretor-geral da FCC, Hilário Fred Voigt e o secretário de Cultura, Turismo e Esporte, todos, segundo Brüggemann, indicados pelo governo, “mesmo com a classe tendo reprovado tal estupidez”.
A defesa – Com matérias sobre o assunto e notas em quase todas as colunas dos jornais catarinenses, a Fundação Catarinense de Cultura saiu em sua própria defesa. Edson Machado, diretor-geral da FCC, também presidente do Conselho Estadual de Cultura (CEC) e integrante do comitê gestor que avaliza os projetos do Funcultural, discorda das reclamações da Gesto e da Aprodança. Diz que não há atropelamento ou qualquer privilégio a nenhum proponente. Relata que o Funcultural recebeu, em 2006, mais de mil projetos, todos mereceram o mesmo trâmite e passaram pelas análises do conselho e do comitê gestor, seguindo o mérito de relevância e oportunidade.
“Do montante de R$37 milhões, 40% atende as propostas de âmbito governamental, como a da catarinense Vera Fischer, e o restante 60% é destinado aos produtores independentes e entidades representativas”, explicou ele em nota, esquecendo que, de acordo com alteração proposta pelo atual governo no decreto 3.604, de 23/01/04, os percentuais são 70% e 30%, respectivamente. Só neste ano foram mais de 800 projetos, dos quais cerca de 400 mereceram atendimento. Informou também que o comitê gestor acata em 90% as recomendações do CEC. Em alguns casos, é necessário, segundo Machado, reavaliar custos, o que pode resultar em maior ou menor valor para o projeto. Disse também que algumas propostas emperram por falta de documentação ou porque o proponente entra com recurso para que a possibilidade de captação de verba seja ampliada.
Com relação ao projeto de Vera Fischer, que mora no Rio de Janeiro, o que infringe o artigo 2 do decreto 3.115, que define como proponente “a pessoa física ou jurídica domiciliada há, no mínimo, três anos, diretamente responsável pelo projeto a ser beneficiado com recursos do Funcultural”, Machado disse que existe “uma síndrome de autofagia, onde algumas pessoas estão sempre buscando alguém com sucesso para apedrejar. “A Vera nasceu em Santa Catarina, tem um imóvel aqui, representa o nosso potencial artístico.”
A semana começou e terminou quente. Três novos integrantes foram empossados no Conselho Estadual de Cultura – Jaime Telles, Caio Cavichiolli e Simone Harger. Os telefones no Centro Integrado de Cultura (CIC), principal equipamento cultural gerenciado pelo Estado em Santa Catarina, tiveram suas linhas telefônicas cortadas supostamente por falta de pagamento. E João Manoel de Borba Neto, que responde pela Secretaria de Cultura, Turismo e Esporte, foi hospitalizado em decorrência de um enfarte.
Néri Pedroso
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